Anotações sobre o Parangolé
O Parangolé desenvolvido como um “suavizar” dos planos estruturais do trabalho; como escreve Hélio Oiticica, "Tudo o que era antes fundo, ou também suporte para o ato e a estrutura da pintura, transforma- se em elemento vivo."1 O espectador/participador, envolvido num trabalho de arte cuja estrutura mergulhava em um jogo dinâmico de relações sociais e espaciais, estava agora pronto para vestir seus planos estruturais no corpo, ou ver outros fazerem isso, de forma que os elementos do trabalho eram sempre criados pela ação corpórea direta. O Parangolé tomava a forma de uma roupa maleável que podia ser vestida, parecida com uma capa ou manto, feita de uma ou mais camadas de material brilhantemente colorido que requer movimento direto do corpo e se revela nesse ato. O trabalho de arte, não mais uma coisa separada, transforma-se em algo no qual a pessoa imerge: um “ciclo de participação” no qual observador e observado, “espectador” e “usuário”2, são emaranhados em padrões circulatórios, modificadores. Como a superfície plana da interface do computador, o Parangolé é suavizado e avolumado pela interação: ele leva o participador para dentro do espaço do trabalho de arte de forma parecida com a maneira como a interface conduz o participador para dentro de um espaço ou situação híbrida, alternativa. “Vestir” o Parangolé ou a interface do computador (ou o ambiente que aparentemente está por trás dela) é fundir corpo e tecnologia, a fim de estender corpo e sociabilidade e integrar sujeitos, corpos e formações sociais em um processo de construção e habitação do espaço.
Vestir-se com um Parangolé implica, de acordo com Oiticica, uma “transmutação expressivo-corporal”3, aguçando-se a própria consciência de corpo, movimento, ambiente e suas inter-relações – como se, por exemplo, a pessoa estivesse num palco, onde toda ação é magnificada e toma uma nova significação. À medida em que um “outro” assiste ao movimento dessa pessoa, uma consciência do self e dinâmicas sociais são colocadas em ação, criando um espaço inter-corporal que o Parangolé media ativamente. Tanto o “usuário” quanto o “observador” percebem o desdobrar desse espaço: o espectador vê o “plano espaço-temporal objetivo da obra” enquanto que, no outro estado de vestimenta, esse plano é “dominado pelo subjetivo-vivencial”. Esse espaço intersticial ou fase intermediária entre sujeito e objeto, observar e vestir, ação e inação, corpo e ambiente, movimento e estrutura é delimitado pelo Parangolé em sua corporificação de "estrutura-ação." O Parangolé constitui um elemento mediador fluido, através do qual procura-se desnudar a “modelagem perceptiva” da estrutura socio-ambiental -- estrutura-ação no espaço. Sua forma não é firme, mas maleável, tensionada, suspensa nos vãos do espaço inter-corporal, cujos mecanismos e dinâmicas ele revela, ainda que fugazmente, como o resvalar suave de uma silhueta que passa na periferia da visão.
Anteriormente material do plano pictórico, o Parangolé desdobra-se e entrelaça-se com o ambiente espacial e social, rompendo e agitando a situação controlada da experiência artística, instigando relações alternativas ao mesmo tempo em que, conseqüentemente, torna essas relações visíveis. No entanto essa visibilidade não é ambiciosa e controladora, não é direcionada à possessão ocular; como Lygia Clark, uma contemporânea de Oiticica, escreve, é direcionada ao “corpo-olho” e não ao “olho-máquina” e está sempre em um processo de transformação. Escapa, então, de totalizações do olhar e suas relações binárias, vetoriais, e ao contrário, resulta num tipo de olhar intersticial, labiríntico. Esse olhar abre os canais entre corpo e ambiente na medida em que “olhar” não é originalmente cartesiano e linear, mas sim um fenômeno advindo de uma rede transacional: um lugar descentralizado, configurável, de negociações contínuas onde corpos, corpos de códigos e ambientes estão ativamente interligados.
Oiticica pretendia estabelecer “´relações perceptivo-estruturais´ do que cresce na trama estrutural do Parangolé..." e o que é ´achado´ no mundo espacial ambiental.”4 Considere a descrição que Oiticica faz da favela, uma estrutura que para ele tinha um caráter Parangolé implícito: “a organicidade estrutural entre os elementos que o constituem e a circulação interna e o desmembramento externo dessas construções, [significam que] não há passagens bruscas do ´quarto´ para a ´sala´ ou ´cozinha´, mas o essencial que define cada parte que se liga à outra em continuidade."5 Tais ordens “não estão estabelecidas ´a priori´ mas se criam segundo a necessidade criativa nascente.”6 Apropriando seus “elementos objetivos-constitutivos ao tomar corpo, ao plasmar-se na sua realização”7, essa estrutura se forma contingentemente através do percurso e das ações do sujeito ambulatório, que se engaja num processo de habitar o espaço. Nesse sentido, o Parangolé constitui técnicas interfaciais de resistência contra uma geografia totalizadora – uma paisagem de segmentação, homogeneização, comercialização – e ao contrário, alimenta o que Michel de Certeau chama de “organicidade móvel” no ambiente, um tipo de discurso transeunte que tece “sequência[s] de topos fáticos.” O constructo totalizado, cujas relações estão refletidas no lustro de seu brilho de fábrica, dissolve-se. Através dessas fissuras, lugares alternativos de agenciamento e discurso explodem.
(Tradução de Paula Braga. Originalmente publicado em Blast 4: Bioinformatica, New York, X-Art Foundation, 1994.)
1 Oiticica, “A Transição da Cor do Quadro para o Espaço e o Sentido de Construtividade” in _______ . Aspiro ao Grande Labirinto, Rio de Janeiro: Rocco, 1986. p.50 (nota da tradutora)
2 O autor utiliza no original o termo “wearer”, aqui traduzido por “usuário”, palavra freqüente no léxico das ciências tecnológicas e que se adapta muito bem ao argumento do autor por derivar de “usar”, sinônimo, em português, de “vestir”. (n.t.)
3 Oiticica, “Anotações sobre o Parangolé”, op. Cit. p. 70 (n.t.)
4 Oiticica, “Bases Fundamentais para a definição do Parangolé”, op. Cit. p. 68 (n.t.)
5 Ibid. (n.t.)
6 Ibid, p. 67 (n.t.)
7 Ibid, p. 68 (n.t.)
Jordan Crandall é artista e teórico da comunicação, editor-fundador da Blast e diretor da X Art Foundation, Nova Iorque.