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Going Bananas e Alqueire

Maíra das Neves

 

Será que sei falar a sua nova língua, Maíra?
Maria do Mar Fazenda

Faz hoje pouco mais de um ano que cheguei a esse lado do oceano pela primeira vez.
Faz hoje pouco mais de um ano que eu senti, mais do que nunca, que tinha que pensar no que dizia para me fazer entender; servia-me da mesma língua mas da sua fala emergiam consecutivos atritos de sentido. Falar tornava-se uma aventura intelectual refeita todos os dias. Um dia, no Rio, introduziste-me ao teu trabalho, e mostraste-me o vídeo, que entretanto intitulaste de Going Bananas. Falaste-me que essa peça pretendia agarrar um pouco dessa circunstância da qual eu também sentia que participava: o estar na convergência de novos significados em resultado do mergulho na diversidade. O resgatar dessa turbulência ou desse desassossego, para soar mais português, foi assim que li a tua peça-vídeo. As referências surgiam-me ao compasso da acção: sobre uma parede de concreto ela come bananas, uma a seguir à outra, impávida, com um pensamento mudo e disso resulta uma inscrição.

Um plano fixo registra um fundo: uma parede de cimento manchada pela humidade. Entre saber o local onde se realiza a acção – um lugar onde a ruína acelerada do material de construção é sintoma do ímpeto modernista sobre a natureza – e a aptidão de uma operação estética (enquadramento) sobre um determinado pedaço de realidade resultar numa abstracção expressionista: um Soulages, um Tàpies ou um Kline que nos faz lembrar? Em pano de fundo histórico corre a panorâmica desse nosso entendimento. Uma personagem entra em campo. É com ela que ficamos até ao final da narrativa. Como No quarto da Vanda, Pedro Costa concentra-se (quase) unicamente numa única personagem (a Vanda) e num interior (o seu quarto), mas somos constantemente reenviados para um exterior, maior, mais amplo – que nos inclui. À medida que o tempo é construído em compasso com os diálogos minimais que se dão entre o que se passa na (mínima) acção e nós, espectadores emancipados, o nosso pensamento transcende aquele quarto, aquela pessoa, aqueles movimentos lentos.
Foquemo-nos agora na personagem. São vários os trabalhos anteriores em que a Maíra se coloca como centro de uma determinada acção. Não no sentido comum da personagem que executa uma performance, como o faz o actor, mas mais próximo da acepção performativa do bailarino. No entanto Maíra nunca dança, nem tão pouco se movimenta segundo uma coreografia pré-definida. Pelo contrário. É à coreografia (do ónibus em andamento, da passagem dos carros, do gesto do vento) proposta por aquilo que circunda o corpo da artista a que o seu movimento corresponde. Em Going Bananas, o movimento é mínimo e é imposto pelo equilíbrio que se torna o eixo de todas as acções: retirar uma banana de uma cesta, descasca-la, comê-la, ingeri-la. E olha em frente, para nós, poucas vezes os seus olhos se fecham, desviando o olhar – apenas uma vez: quando segue com o olhar o som de um avião que passa (ou seja, a tal correspondência ao exterior). Assim como o que a levou a uma determinada acção (comer bananas) foi resposta a um movimento maior do qual a artista participava. Partilhando esta coreografia com o observador, a artista agencia um outro diálogo. A expressão “going bananas” associa-se às acções do bobo que inserido na tradição da commedia dell’arte despoleta um momento de zombaria no público. Em palco é entregue ao bobo o papel do desequilíbrio, da queda, do fazer rir que invariavelmente surge em consequência de um incidente, como por exemplo escorregar numa casca de banana colocada estrategicamente no chão. Todos sabemos que a casca está no chão, e o actor dissimulando que não a vê, cai. É a antevisão, a previsão que nos cria cúmplices do actor. Por um lado somos cínicos, rimo-nos do acidente, por outro sabemos que se trata de uma representação e que ele (também) sabe que vai cair, mas mesmo assim rimos porque a queda em consequência do “incidente” partilha do mesmo movimento incontrolável que acontece no riso. Há uma descoberta do (nosso) outro no riso. Em Going Bananas somos deixados com o som (do nosso riso) que produzimos ao ver o vídeo quase sem propriedade de som e com a qualidade de filme mudo. O jogo de tensão entre o título, e o seu significado idiomático, e a acção que se desenrola partilha desta mesma antevisão, ou tensão estabelecida com o observador. Ficamos à espera que se escorregue na banana, ou que fruto da acção doida resulte uma doidice. No entanto, enquanto o riso não nos assola por completo, entre a acção e o seu tempo, o suspense instala um teor trágico. Que nem Joana D’Arc interpretada por Falconetti no filme de Dryer, em que o realizador recusou o uso de maquilhagem e fez com que a actriz actuasse sobre o efeito de exaustão física para que a sua expressão fosse mais credível.

Falemos sobre o que se come no vídeo: muitas bananas muito coloridas, anagrama semântico de Um Sanduíche Muito Branco de Cildo Meireles. Aqui e agora o monocromático é feito colorido. Assim como a representação da banana já se desdobrou em diversos sentidos: é documento quando representada ao lado da mulher Tupi de Eckhout, é fantasia num quadro metafísico de Chirico; é símbolo sexual na saia de Josephine Baker, é arquétipo do exótico na cabeça de Carmen Miranda que por sua vez é emblema económico da marca Chiquita, é substituição do falo em campanhas pedagógicas, etc, etc. Cada banana que é ingerida, ingere, em simultâneo, um desses preconceitos. Antropofagia de mitos. No entanto, posicionamos, o tão evocado termo de antropofagia, algures numa linha pós-Oswald de Andrade, pós-Oiticica, pós-Herkenhoff, e mais próximo daquilo que Eduardo Viveiros de Castro nos tem vindo a chamar à atenção sobre o ritual. Relembrando-nos que no processo antropófago, para além da visão de inclusão (de ingestão) do outro, há uma outra etapa: aquele que era escolhido para ser devorado era morto por alguém que não o ingeria, mas que o tatuava no seu corpo. E a baba antropofágica deixou a língua de Maíra tatuada.


Referências segundo a ordem em que aparecem no texto: os filmes, O quarto da Vanda (2000) de Pedro Costa, A Paixão de Joana d'Arc (1928) de Carl Theodor Dreyer; as pinturas, Mulher Tupinambá com criança (1641) de Albert Eckhout, The Uncertain of the Poet (1913) de Giorgio de Chirico; as peças, Um Sanduíche Muito Branco (1966) de Cildo Meireles e Baba antropofágica (1973) de Lygia Clark.


Lisboa, Dezembro de 2010

Maria do Mar Fazenda (n. 1977, Lisboa) é curadora independente e crítica de arte baseada em Lisboa. Viveu no Rio de Janeiro e em São Paulo nos últimos quatro meses do ano de 2009, no âmbito da residência CAPACETE. Voltou para o antigo continente convencida de que era outra pessoa.

 

texto publicado no catálogo da exposição entre-vistas, eav-parque lage, rio de janeiro, 2011



Maíra das Neves

Natural de São Paulo, 1978, vive no Rio de Janeiro

Maíra das Neves desenvolve ações para contextos específicos. Ela se interessa em como as pessoas se organizam e se relacionam com o tempo-espaço na era pós capitalista. Ela aprecia as miudezas e procura intervir com o menor gesto possível, o menor tamanho, custo, esforço, etc. Ela aluga um ateliê de 1m2 e trabalha principalmente com textos, ações e intervenções. Maíra costuma trabalhar em colaboração com outros artistas e outras linguagens: o ateliê 1m2 já acolheu vários eventos, ela foi ao palco em uma colaboração em dança, e começou a jogar futebol e montou um time para um campeonato em uma residência artística nas montanhas.

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