Ligia Nobre: arquitetura de espaços discursivos
Como criar espaços para práticas discursivas em museus? Qual a durabilidade de um projeto? Como negociar com a instituição? Em torno desses temas relacionados ao eixo Arte-Projeto da exposição Temporada de Projetos na Temporada de Projetos que a arquiteta Ligia Nobre, responsável juntamente com os curadores Luiza Proença e Roberto Winter de projetar o espaço expositivo, conduziu sua fala no dia 04 de dezembro de 2009 no Paço das Artes.
Ligia inicia dizendo que gosta de pensar a exposição a partir do título Temporada de Projetos na Temporada de Projetos pois ele propicia uma dobra interna aonde existe uma crítica acompanhada de um desejo de troca pois discute questões fundamentais que se vive em arte contemporânea no Brasil como a construção de um projeto e de um edital.
Nesse sentido, ter o pensamento de Boris Groys como referência para é muito interessante, principalmente porque sua teoria parte de uma vivência dos EUA e Europa mas que, trazida para a experiência brasileira, tal como fez o projeto, vincula-se à questões daqui, principalmente, segundo Ligia, com relação às dificuldades de formalização de um projeto. Por este motivo, um dos méritos dessa exposição está no fomento de discussões como essas, que apontam possibilidades de transformação e reflexão sobre esses temas.
Dentro desse contexto, passa a falar especificamente sobre sua atuação, como arquiteta convidada a formular o espaço. Comenta que o primeiro problema enfrentado foi como abrir os projetos para o público, como criar esse espaço, como mostrá-los? A questão era catalogar, arquivar, como fazer com que o público da exposição se sentisse à vontade em manusear esse material? Como ilustração dessa dificuldade mostrou uma imagem com todos os projetos recebidos pelo Paço das Artes em um amontoado de pastas depositado dentro de um armário de ferro típico de um órgão público.
O ponto de partida para encontrar soluções foi pensar quais as ferramentas e os modos de se trabalhar numa exposição que possui uma instância discursiva e que abriga oficinas e lugar de leitura. Estante, cadeira e mesa são a base e, a partir disso, passou-se a pesquisar quais as qualidades que propiciam uma ativação do espaço trazendo acessibilidade ao público.
Para isso buscou-se um repertório de experiências bem e mal sucedidas em diversas instituições no mundo para usar de base para se pensar o mobiliário, a cor e a formatação do espaço expositivo. Vale lembrar que o Paço das Artes não é um cubo branco, possui elementos arquitetônicos que interferem visualmente como os dispositivos de iluminação e o teto, o que constitui uma dificuldade. Além do mais, a ausência de salas separadas gera a necessidade de se pensar de que modo a exposição se relacionará com o resto do espaço, aonde construir paredes, isolar-se do resto da instituição construindo um cubo ou tentar inserir-se deixando espaços permeáveis?
O primeiro exemplo do que seria um espaço negativo em termos de acessibilidade foi o da Judd Foundation, no Texas, onde é exposta a biblioteca do artista somente para a contemplação do público, pois os objetos e livros não podem ser tocados. Isso gerou uma discussão entre o grupo sobre como ações desse tipo geram uma possível fetichização do espaço e como contraponto foi citado o projeto da artista Martha Rosler para o e-flux (Martha Rosler Library), no qual sua biblioteca foi disponibilizada para uso público podendo os livros serem manuseados e copiados.
Nesse momento o curador Roberto Winter comenta que essa questão foi muito discutida por eles, que tinham um grande medo de criar um ambiente semelhante ao de uma exposição de mineralogia, com os projetos intocáveis, como rochas em um mostruário, acessadas apenas por um público especializado, e isso foi um ponto norteador para o que evitar na construção do espaço expositivo.
Outros exemplos de espaços que abrigam arquivos ou instâncias discursivas foram o do Atlas Group, e exposições do Curating Degree Zero, onde uma das estantes utilizadas serviu como inspiração para o espaço da Temporada. O projeto dos arquitetos da Herzog & DeMeuron para a Cottbus University Library na Alemanha foi citado como alternativa no uso das cores onde uma das referências conceituais para divisão do espaço é a TV da década de 70 que tinha as sete cores na tela e que para o projeto foram aplicadas de cima do espaço na horizontal para definir os espaços da biblioteca. Outro projeto mostrado foi o Library of Congress aka the reading room do artista Thomas Mulcaire onde ele construiu um cubo dentro do museu para abrigar o material consultado pelo público e a questão que surgiu em torno desse projeto foi a construção de um espaço dentro de um outro espaço, que foi uma sugestão de Ligia para a exposição, mas por fim decidiu-se mantê-lo aberto na tentativa de criar um ambiente que se integrasse de alguma forma à instituição.
Sobre esse fato, os curadores comentaram que após a experiência[1] da exposição, acabaram se arrependendo de não terem seguido essa sugestão de Ligia, pois gostariam que tivesse ficado mais evidente que o espaço ocupado pela Temporada de Projetos na Temporada de Projetos realmente constituía um outro espaço dentro do espaço do museu pois, como ficou aberto ocorreu muitas vezes uma confusão por parte do público sobre o que era aquele espaço, alguns chegaram a pensar que era um anexo da exposição da Pippilot Rist[2]. Dentro desse mesmo problema, também entram as dificuldades com a instituição Paço das Artes, questões que iam de uma ausência do educativo, por uma questão de tempo dos educadores, da falta de divulgação por parte do museu e da frustração com o fato da diretoria se encontrar dentro do MIS, estando totalmente distante do cotidiano da exposição. No fim sentiram como se houvessem criado uma instituição dentro da instituição, dada a quantidade de tarefas que acabaram se ocupando e, e nesse sentido, se o espaço estivesse totalmente fechado seria mais explícita essa relação de isolamento, de um quase parasitismo do projeto com o Paço das Artes. Além disso, uma das maiores frustrações foi ver que outra seleção de projetos para a Temporada de Projetos do Paço das Artes havia ocorrido da mesma forma como no ano anterior, como se a exposição deles não tivesse levantado nenhuma questão para a instituição, que acabou não se revendo em nenhum aspecto.
Em relação a isso, Ligia comenta que são questões impossíveis de se prever, e que, é na experiência que se pode sentir como a instituição abrigará o projeto. Fala de sua trajetória no projeto Exo Experimental, que ocorreu de 2002 a 2007, e diz que até hoje existem questões em relação a esse projeto que reverberam e, nesse sentido, os desdobramentos e efeitos se sentem com o passar do tempo. Além disso, é o primeiro ano que se faz uma Temporada de Projetos após a exposição, e que essas mudanças, muitas vezes, possuem uma outro temporalidade. Mas uma questão que fica para os curadores refletirem é se a Temporada de Projetos na Temporada de Projetos é um projeto que tem começo, meio e fim, e portanto, se encerra com o fim da exposição, ou um programa, que tem um tempo maior, e se estende por outros locais. Porém, de qualquer forma, o interessante de toda essa trajetória é que eles estão ajudando a criar muitas referências pra todo mundo e que por enquanto é difícil medir qual o alcance que elas terão.
E de fato são inúmeras questões que o projeto abrange, e isso se sentiu no dia da conversa, que durou mais de 3 horas com uma participação ativa do público ali presente, porém, a instituição tem o seu horário de funcionamento e em algum momento tem que fechar as portas mas o debate segue para discussões futuras, em outros programas, projetos e fóruns de discussões.
Notas
[1] A conversa foi realizada na última semana da exposição
[2] Exposição que dividia o espaço da instituição com a Temporada de Projetos na Temporada de Projetos.
O encontro ocorreu no dia 04/12/2009, sexta-feira, às 19h, no Paço das Artes, como parte do programa "Arte-projeto" da curadoria "Temporada de Projetos na Temporada de Projetos"