O FILME-OBJETO, por Paula Alzugaray
O filme-objeto
Se o projeto moderno empenhou-se no desmonte dos sistemas de representação e culminou, com o minimalismo e a arte conceitual, em uma arte sem referentes, agora estamos diante da renovação das relações entre arte e realidade. Ao assumir a mundanidade, a arte passa a escolher seus temas em terrenos tradicionalmente ocupados pelas ciências sociais e a negociar com as estratégias do cinema documental. Essa relação suspeita, que à primeira vista poderia indicar um reencantamento com os sistemas de representação, prova-se, nas poéticas de Maurício Dias & Walter Riedweg e de Paula Trope, um ato de resistência, que desarranja os dispositivos documentais, manipulando-os, reprogramando-os e lançando-os ao centro dos acontecimentos da esfera cotidiana.
Ao ocultar a identidade do entrevistado atrás de uma máscara com as feições do entrevistador, Dias & Riedweg estabelecem uma modalidade de contato que denominam de "encontro encenado" e que desarticula o esquema da entrevista jornalística. Quando orientam sua câmera não para o entrevistado, mas para a confusão de identidades que se cria num jogo de espelhos e para a alteridade, ou "a relação de distanciamentos e aproximações com o outro”[1], eles subvertem uma condição básica do programa do documentário, que é registrar aquilo do qual não se participa. Finalmente, quando reproduzem o cenário dessa experiência - um quarto de hotel barato - no espaço físico da videoinstalação Voracidade Máxima, a dupla expõe e reflete sobre seu mecanismo de representação.
Guardadas as distâncias que separam o atual artista-documentarista das operações das vanguardas históricas, o que se faz hoje no campo da experimentação documental é uma espécie de tensionamento do que o cubismo fez com a representação: estilhaçar o espelho da perspectiva linear e deslocar pontos de vista. Não só Voracidade Máxima, montada na galeria Vermelho, em outubro/novembro de 2005, mas todo o corpo do trabalho de Dias & Riedweg funciona como um giro de espelho sobre o próprio eixo - reversão de enfoque presente em algumas das pesquisas mais radicais do documentário brasileiro da década de 1970. Mais especificamente, no anti-ilusionismo de Congo, de Arthur Omar, que surge em 1972 (num contexto de quebras da linearidade narrativa cinematográfica) para negar e problematizar o esquema documental.
Ao se apresentar nos letreiros iniciais como “um filme em branco”, Congo parece querer ressoar o Quadrado branco sobre fundo branco, de Malevich, no terreno do cinema documental. Incidindo contra a definição de documento (do latim docere: ensinar, mostrar), o filme não mostra e não representa nada, mas quer ser, ele mesmo, um objeto do mundo. No texto O Antidocumentário, provisoriamente[2], que faz uma auto-análise da experiência de Congo e traça um projeto provisório para o documentário, Arthur Omar argumenta que um filme é sempre um objeto cultural com função social, seja ela de espetáculo ou de crítica. O antidocumentário deve ter, como questão central, não a cultura que lhe serve de conteúdo, mas sua própria existência como objeto. "A questão do real dentro do cinema é a questão do cinema dentro do real"[3].
Congo é uma alegoria e não uma representação da congada. É um filme sobre a linguagem e não sobre o real. Ao invés de mostrar imagens e entrevistas captadas diretamente do contexto em questão, bombardeia a tela com uma edição não-linear de fragmentos de informações culturais já produzidas sobre a festa popular. Oferece-se como enigma, como “objeto em aberto para o espectador manipular e refletir”[4]. Além de sintonizar com a crise da representação indicada pelo suprematismo e pelo cinema desconstrutivista de Dziga Vertov, o antimodelo deve se deixar “fecundar pelo tema”[5]. Nesse sentido, ele seria manipulável como um Bicho de Lygia Clark. Aberto e articulável como um objeto relacional.
Projetos como Voracidade Máxima (2004) e Devotionalia (1995-2003), de Dias & Riedweg, de alguma forma realizam o que foi fecundado por Congo, trinta anos atrás. Devotionalia não só é uma videoinstalação, mas um aparelho de comunicação entre comunidades carentes e poderes públicos. Não pode ser definido apenas como obra de arte, mas como instrumento de articulação e mobilização social, o que o coloca na condição de objeto do mundo.
O projeto, um ateliê móvel que envolveu 600 crianças de rua do Rio de Janeiro, gerou 80 horas de gravações que documentam a fabricação de ex-votos de pés e mãos e os relatos de seus sonhos e expectativas de vida. Em oito anos de processo, Devotionalia foi montado em quatro museus do mundo, um congresso de Arte/Educação da Unesco e no hall de entrada da Câmara dos Deputados. Por onde passou, gerou discussões públicas e agregou novos participantes. Em Brasília, mobilizou o debate por vídeo-conferência e internet móvel entre deputados, Ongs e crianças, e suscitou promessas de bolsas educativas que nunca foram cumpridas. Na instalação do Museu de Arte Moderna do Rio, o imaginário das crianças contido nos vídeos e nos 1286 ex-votos de pés e mãos produziram uma espécie de corpo coletivo, que em essência não fica distante das experiências de dissolução do eu de Lygia Clark.
Desenvolvendo linha de pesquisa semelhante, Paula Trope instaurou, em seus Retratos dos Meninos de Rua (1990), Contos de Passagem (2001) e Os Meninos do Morrinho (2004/2005), um aparelho de comunicação social via câmera fotográfica e câmera de vídeo. Em suas entrevistas de rua, Paula Trope prescinde da objetividade para instaurar uma dinâmica relacional com seus interlocutores. Fotografia e vídeo funcionam como dispositivos de negociação social: o retrato do menor carente é exposto ao lado de uma fotografia feita pelo mesmo menino. O resultado é o deslocamento da autoria.
Ao conceber a obra de arte como uma ação em rede, esses artistas-agentes-documentaristas colocam em ação a gênese de uma estética de procedimentos. A obra é o aparelho. Não se cristaliza em um só resultado, mas faz sua existência a partir de linguagens heterogêneas que buscam não representar, mas interagir – e documentar essa interação – com o real.