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A NARRATIVA DO REAL NO CINEMA DE LUCRECIA MARTEL, por Fernanda Pitta

A narrativa do real no cinema de Lucrecia Martel
                                                                                                                                                                                                                                                                                     Para O.C.

Para um espectador brasileiro que segue com maior ou menor interesse a produção cinematográfica argentina recente, não deixa de impressionar a trajetória de coerência e equilíbrio dos diversos filmes que chegam às nossas telas, com realizações de grande valor, em gêneros como o thriller, o drama e a comédia, com um especial pendor, como não poderia deixar de ser, ao realismo fantástico.
Se, como Antonio, personagem de Ulises Dumont, em El Viento se Llevo Lo que[1], de Alejandro Agresti, descobríssemos no marxismo uma explicação geral para essa situação, poderíamos propor a seguinte interpretação: a Argentina vem de um longo período de acumulação material lastreado no que podemos chamar de um “projeto modernizador”. Este construiu um vasto sistema de bem-estar social, que criou condições para o surgimento de uma “massa crítica”, que pode se apropriar dos melhores feitos da cultura dos países ditos desenvolvidos e conseguiu promover uma reflexão sobre seu lugar no Ocidente, podendo reconhecer assim tanto seus próprios pontos cegos quando aqueles de seu modelo de origem. Enfim, uma inversão crítica à semelhança daquela, por exemplo, operada por nossa literatura com Machado de Assis, como nos ensinou Roberto Schwarz.
Claro, a explicação não poderia deixar de levar em conta que a Argentina se modernizou – com seus bois, seus portos, seu tango e sua literatura – num processo que, além de construir monumentos como o Teatro Colón, Gardel, Borges e Bioy Casares, promoveu modernizações tais como o genocídio de boa parte das populações indígenas nativas, recalcou o papel dos africanos escravizados na construção do país[2], reprimiu e tutelou os trabalhadores urbanos, organizados e atuantes, sob uma política populista, enfim, uma história que conhecemos bem, e que talvez seja até mais cruel do que a nossa.
E sim, é certo que o modelo desenvolvimentista foi desmontado com todo estrondo no período neoliberal. Havia, entretanto, dado frutos – além da conquista de direitos sociais amplos, a formação daquela cultura crítica, da qual o cinema faz parte, ao lado da literatura, da música, da psicanálise e da academia, para citar as manifestações mais presentes para nós. Para lembrar outro ensaísta que esteve às voltas com dilemas como esse, Paulo Emílio Salles Gomes, uma cultura que encontrou um certo balanço produtivo entre o local e o universal, entre o estrangeiro e o autóctone, entre o próprio e o estranho, primeiro na compreensão do mundo, segundo, na compreensão de si próprios.
Filmes como El Viento se Llevo lo Que revelam um pouco desse processo, tomando até ares de uma divertida mis-en-scène das “idéias fora do lugar”[3]. No filme, uma pequena comunidade, na última cidade argentina, na beira da Patagônia, no fim do mundo, no último lugar da “civilização”, faz do cinema o meio de reinventar um mundo de ponta-cabeça, revelando assim todos os conflitos de seu mundo e daquele que busca recriar. Mas que, entretanto, parece ser mais real, mais humana, do que aquela sociedade que lhe serve de modelo, na qual as idéias estão no seu devido lugar.
Pântano[4], o primeiro filme de Lucrecia Martel, obriga-nos a abandonar essa teleologia do sucesso do cinema argentino para enfrentar um corpo a corpo mais cerrado com seu trabalho cinematográfico. Não é um filme que se dá facilmente. À primeira vista, posso confessar ter sentido uma espécie de irritação. Clichês e pseudo-achados cinematográficos pareciam haver contaminado e diminuído muito da força crítica expressa nas imagens do filme, a ponto de achar que estava diante do que poderia chamar, por chiste, de "Dogma Salteña".
Entre as primeiras cenas, temos vários casais em torno de uma piscina, visivelmente fétida e suja (a forma cinematográfica de Martel alude a mais de um sentido, no caso o olfato, dificilmente presentes no cinema, por razões até óbvias). O céu está carregado de nuvens e a atmosfera da cena tem uma tonalidade verde, associada tradicionalmente à sensação de náusea. Todos os sinais nos fazem compor a imagem de um barco à deriva, onde falta chão, não à água da piscina, quase sólida na sua sujeira, mas aos corpos e mentes daqueles que estão na terra que deveria ser firme.
Os corpos são flácidos, maltratados e viscosos, desfilam a fim de reforçar e tragar o espectador no ritmo mareante. Parece até que, ao invés de cair sobre eles, a tempestade está para cair sobre nós, também bêbados e cambaleantes (pois a câmera trêmula nos obriga a identificar-nos com os casais embriagados a que assistimos). Toda a ambientação nos faz antever uma catástrofe, que, entretanto, é refreada pela sobreposição um tanto redundante de signos e que acaba por se tornar uma catástrofe anunciada. Algo que ao invés de ser determinado no tempo e no espaço transforma-se em um princípio quase atávico[5].
Além da sensação concreta e da imagem explícita, grandes achados visuais e até mesmo tácteis da forma de filmar de Martel (voltarei à questão táctil de seu cinema), a cineasta insiste na sobreposição de mensagens[6], lançando mão da metáfora da lama, focalizada obsessivamente na piscina[7]. Ela está abandonada ao “Deus dará” do trabalho prestativo e mal pago de algum daqueles “serviçais” aos quais chamam de “índios”, ao mesmo tempo em que mandam atender-lhes os desejos. Os casais na piscina são abastados, fazendeiros, “europeus”, exploradores da terra e das gentes que entram e saem de cena sem conseguir levantar os olhos ou abrir a boca, mas que seguem fazendo o trabalho sujo de limpar as suas (nossas?) porcarias. Novamente a filmagem faz com que sejamos obrigados a nos identificar com os “senhores”, o que não seria de maneira nenhuma má idéia – lembremos do “leitor hipócrita, meu semelhante, meu irmão!” de Baudelaire – se a identificação não fosse tão insistentemente reiterada, como se fossemos “lentos” em compreender a associação ou o seu significado.
Deste quadro já podemos retirar as ilações habituais: a Argentina é (em essência, daí o incômodo atavismo) um mar de lama no qual todos estão à deriva, um país corrompido, no qual não podemos encontrar redenção nem na natureza (que ameaça despencar sobre nós ou nos engolir, na evidente metáfora do pântano – e, literalmente, em uma das cenas, da “vaca que foi para o brejo”), nem na cultura, seja pela decadência da classe dominante, seja pelo aspecto subalterno, místico e conformista das classes populares.
O plot está dado, entretanto Martel continua a insistir nas metáforas, a ponto de quase esvaziá-las por redundância. Em uma das cenas subseqüentes, a Mãe carrega um grande copo na mão, com todos os trejeitos de bêbada. Não satisfeita com a imagem, que já traz dois signos da caracterização da personagem (o cambalear e o copo cheio, ambos enfatizados), a cineasta lança mão do diálogo, colocado na boca de uma das filhas: “Você está bêbada” e, não satisfeita, também na boca da mãe o reforço da caracterização: “Mais um trago”, o pedido, ou melhor ordem, dirigido à empregada de origem indígena. Ela cambaleia, pede ainda mais um gole. A câmera “dogmática” chacoalha, chacoalha e volta a nos lembrar que também devemos nos sentir embriagados.
Outro exemplo dessa sobreposição é dado pela cena na qual Isabel, a empregada pela qual a “menina” Mami está obcecada, chora, guardando um segredo. Isabel sai à procura de seu namorado, trabalhador mestiço e desgraçado como ela. Isabel chora, a câmera corta para Mami, que também chora e indaga: “O que aconteceu, Isabel? O que aconteceu?”. A câmera percorre a balbúrdia do bar lotado pelo Carnaval (momento em que os pobres suam como os ricos, mergulhados na anestesia do sexo, quando não da religião). A câmera fixa Mami no primeiro plano, que pergunta por uma última vez, esperando a resposta que todos sabemos – “o que aconteceu?”. Ao fundo, em imagem enevoada, uma jovem moça carrega um bebê de colo.
De certa maneira, é como se Martel sobrepusesse dois princípios narrativos na construção das imagens. Um, simbolista, apoiado no uso das metáforas visuais, que apostam na similaridade de diferentes “temas” ou “conceitos” – lama, pântano, sujeira, moleza, viscosidade –, e outro realista, que se vale do que poderíamos chamar de metonímias e sinédoques visuais – ilusão de realidade criada pela apresentação de indícios de realidade – o copo pela embriaguez, a decrepitude física e moral dos adultos pela mão, cheia de marcas senis, do pai, ou o roupão amarrotado e amarelado da mãe, entre outros. Essa ambigüidade faz com que a sua pretensão realista oscile entre o dado histórico e o dado identitário, essencialista, numa palavra, mítico.[8]
Certamente o filme tem pretensões realistas: retratar a sociedade argentina. Deste modo, a oscilação entre esses dois pólos leva à criação de duas vertentes de interpretação conflitantes, uma que apelaria a essa espécie de atavismo da situação a e outra na qual ela poderia ser compreendida historicamente, a partir de determinados contextos e problemáticas.
Talvez esse eixo metafórico de certa maneira enfraqueça as qualidades formais do filme, pois quando Martel se apóia no procedimento construtivo da narrativa, valendo-se do uso dessas metonímias e sinédoques visuais, encontra seus melhores achados.
Penso que neste aspecto Martel tenha chegado a uma forma mais reveladora em seu segundo filme, La Niña Santa[9]. Este, apesar de aparentemente não ser tão experimental quanto Pântano, consegue fazer falar por meio das imagens. Sobretudo, ao criar sensações táteis poderosas, como as que revelam o caráter e o significado das relações juvenis entre as duas garotas, na constante ênfase em filmar a pele, o corpo, como se quisesse tocá-las com a câmera. Nesse sentido, ela guarda aquela salutar desconfiança com relação à palavra, tão presente em Godard, que promete a redenção do “real” através da imagem (“é preciso confrontar idéias vagas com imagens claras”[10]) – falar, através das imagens, de coisas que, de outro modo, não poderiam ser ditas.

                                                                                                                                                                                Fernanda Pitta

[1] Prod. Agresti Films, 1998. Exibido na 23ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em 1999, depois em circuito comercial.
[2] Só para comentar o esquecimento que pesa sobre sua população afro-descendente, lembremos da triste frase de Menem reverberada pelos jornais: “Na Argentina não existem negros, esse problema tem o Brasil”, que ecoa a de Sarmiento: “Chego feliz a esta câmara de deputados de Buenos Aires, onde não existem ‘gauchos’, nem negros, nem pobres. Somos a gente decente, isto é, patriotas”, Discurso ante el Congreso, 1866.
[3] Roberto Schwarz. Ao Vencedor as Batatas. São Paulo: Duas Cidades, 1981. pp- 13-28.
[4] La Cienaga, 2001.
[5] Portanto, ou bem uma repetição, ou bem um continuum, o que seria algo como uma anti-catástrofe, já que não há propriamente nem precipitação e nem desfecho.
[6] Ou no próprio recurso da mensagem, tão constrangedor no cinema quando pressupõe que o espectador não consiga compreender o sentido de algumas cenas.
[7] A piscina também será “personagem” importante do segundo filme de Martel – A Menina Santa –, apesar do nojo confesso da cineasta: “Na verdade, tenho horror de piscinas, daquelas piscinas azuis, de água clara. Posso nadar num rio de águas claras, como o rio Paraná, o rio da Prata. Mas a idéia das piscinas me dá nojo. Porém, me agradam muitíssimo como cenário” (entrevista à Reuters). Mais que cenário, acredito que em ambos os filmes a piscina atua mais como personagem, tendo um papel ativo na trama.
[8] Sobre a questão dos princípios metafóricos e metonímicos, cf. Roman Jakobson. "Two aspects of language and two types of disturbances”, de 1956. Agradeço a Thomás Haddad pelas referências a essa questão.
[9] Exibido em 2004 na 28ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, posteriormente em circuito comercial.
[10] Frase mural de A Chinesa, de Godard, 1967.