capítulo final de CORPO-A-CORPO COM O CONCRETO, por Bruno Zeni
A cidade vai amanhecer como num dia qualquer, mas no final da jornada e nos dias seguintes e talvez em semanas e meses e anos e eras não volte a ser o que foi, desfigurada e reinventada por um gesto coletivo limite, mas potencial, esboçado pelos restos de gente que não têm mais nada a dispor senão do próprio corpo e da consciência alterada e afeita à inadaptação.
Todos envolvidos, as errâncias convocadas para atuação conjunta. Começa com um sinal noturno desencadeado por alguém escolhido para fazer o pião. Esse ou essa, indivíduo ou pessoa, homem ou mulher, percorre os quatro cantos e o miolo e os anéis concêntricos da esfera urbana, e tem início a onda de desvirtuamento e insurreição.
De manhã, pequenos grupos, juntos e ao mesmo tempo, alguns a pé, outros pilotando seus cavalos de madeira de uso diário — carroças de recolhimento de entulho, máquinas movidas a corpo humano. Fazemos assim. Os que vão a pé, em diversos pontos do centro expandido. No susto e no terror que suas figuras de sujeira e desgraça proporcionam, rendem seguranças que vigiam os estandes de vendas dos palácios verticais de alto padrão. Acampam dentro dos estandes de luxo.
Sem reivindicação, de imediato.
Assim, homens e mulheres, em grupos unidos por laços de vida na rua, invadem, nos bairros privilegiados, os maiores e mais luxuosos salões de exposição e venda dos palácios de concreto vertical.
Procedimento: assalto branco aos seguranças, desarmados no imprevisto e no pavor do contato com os andrajos, mantos e odores sujos.
Permanência.
Ao longo do dia, resistência e negociações.
No meio da tarde, dezenas de cavalos de madeira usados para recolhimento de lixo são conduzidos simultaneamente a pontos estratégicos nos acessos às principais avenidas dos bairros movimentados, interrompendo o tráfego.
Antes, preparação.
Por necessidade.
Áreas de encontro e concentração para o grande momento.
Procedimento: posicionar um cordão de carros de madeira movidos a força de homem de rua engatados uns aos outros com grossos elos de correntes — furtados de estacionamentos dos estabelecimentos comerciais — de maneira a obstruir a circulação, nas autopistas, das carruagens feitas de lata e vidro e motor que bufa ar estragado.
Curto-circuito urbano e social.
Então, esperar.
O peso e a presença dos que não têm nada. Fazemos assim.
Exigências: reservar as coberturas dos palácios de concreto vertical para a população sem moradia e interromper a produção de carruagens individuais que cospem dejetos gasosos para discutir plano de readequação do transporte coletivo e fabricação de bólidos não poluentes. Sobretudo: o direito ao uso dos apartamentos, depois de erguidos os palácios de concreto vertical. Sem propriedade, porém. Mas os melhores e mais altos.
Algo a ser descrito, em sua totalidade.
A cidade conflagrada.
Em palavras, após o gesto. Na conversa, de olhos fechados, antes e depois. Escrita de fogo e mudança de cena. Segredos guardados, a cada pensamento o seu refúgio, e movimento de idéias andarilhas, além.
Um novo lugar, com ar puro, água correndo e concreto comum.
Talvez não, na fissura. Mas o novo, com tudo o que já foi.
Febre de sangue nas veias, música da consciência e calor no ar de agora.