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BR-3: ENTRE O REAL E A REPRESENTAÇÃO, por Cauê Alves e José Augusto Ribeiro

Uma leitura da peça "BR-3", montagem do grupo Teatro da Vertigem.

 

Os lugares escolhidos pela companhia Teatro da Vertigem para a ambientação de seus espetáculos são, sempre, um "drama" em si. Drama no sentido figurado, oriundo também do pensamento aristotélico, que diz respeito a um encadeamento de situações em que predominam conflitos de forças destinados à ação e a experiências emocionais intensas. Não é, portanto, somente para fugir do palco italiano que o diretor Antonio Araújo opta por locais, digamos, não-convencionais; mas porque estes ambientes que não pertencem à esfera protegida do teatro trazem à tona memórias e histórias capazes de conferir índices de realidade às montagens.

A trajetória da companhia começa com O paraíso perdido (1992), encenada em uma igreja. Depois seguem O livro de Jó (1995), em um hospital, e Apocalipse 1,11 (2000), na Penitenciária do Estado de São Paulo. Neste ano, a companhia apresenta BR-3, nas margens e ao longo de três quilômetros da extensão do rio Tietê – outra locação que, como as de peças anteriores, constitui problema social. Desta vez, prevalece a idéia de contar uma história enquanto os espectadores atravessam um território deteriorado que divide a cidade. De dentro de uma pequena embarcação, o público muda de perspectiva em relação ao nível das ruas e passa a ter os carros, os arranha-céus e as luzes da capital paulistana como partes de um cenário suspenso.

A matéria-prima da dramaturgia, assinada pelo escritor Bernardo Carvalho, são as oficinas realizadas durante um ano pela companhia no bairro da Brasilândia, zona norte da cidade de São Paulo, e as viagens a Brasília, no Distrito Federal, e à cidade de Brasiléia, no Estado do Acre. Todos lugares que têm no nome a palavra Brasil como radical, o que já indica o interesse por interpretar o país a partir de uma inserção no real “profundo”, inclusive de maneira etnográfica, a exemplo de como fizeram tantos antecessores, entre eles Mário de Andrade.

O enredo de BR-3 se passa em paralelo aos últimos 50 anos da história do Brasil e narra a vida de três gerações da família de Jovelina, uma retirante da Região Nordeste que, ao descobrir a morte do marido durante a construção de Brasília, parte para a periferia paulistana, adota um codinome e se torna chefe do narcotráfico local. A história se desenrola com a trajetória de seu filho e netos, até desembocar no rio Acre. Tal recorte temporal e geográfico é claro na mensagem: começa com o desejo de construir um país moderno e termina num território que foi anexado ao brasileiro de modo controverso, para dizer o mínimo. Nesta trama, os personagens só poderiam estar às voltas com a busca de sua origem e de um destino.

O palco, ou melhor, o rio, que se faz presente durante todo o percurso pela força da fedentina, nunca é o próprio Tietê em cena. Ora é um córrego a céu aberto na Brasilândia, ora a lagoa de Paranoá, ora o rio Acre. As águas turvas, densas, não são espetacularizadas ou maquiadas pela cenografia nem pela iluminação. Na medida em que o rio se torna uma extensão “navegável”, mesmo nas condições pantanosas em que se encontra, a peça cria um importante campo de tensão entre o real e a representação. O concreto das barragens se converte em construção modernista, igreja, floresta, barracos, e até o leito do Tietê parece estreitar-se em ações que acontecem quase em simultâneo nos taludes à esquerda e à direita da platéia. A ficção modifica realidade, nunca a ponto de apagá-la.

 A história do teatro moderno e contemporâneo registra inúmeras tentativas de afastar a arte cênica do naturalismo ilusionista e da representação mimética da realidade, para transformar cada apresentação numa vivência singular, real, capaz de assumir que a ficção coexiste com o “mundo das coisas”. De modo geral, os espetáculos do Teatro da Vertigem são tributários dessa vertente por privilegiar as interpretações viscerais, em que o espectador se vê em meio à ação. Talvez pela estrutura narrativa novelesca, BR-3 é a peça da companhia que mais se distancia desta tradição, se relacionada com a dramaturgia de fragmentos que atravessa a “trilogia bíblica”. Agora, o público permanece em poltronas durante a maior parte da encenação, conduzido por uma personagem que sugere ser toda aquela narrativa um sonho – do qual participa, aí sim, quem estiver ali. Temas da modernidade, ou do colapso de sua implantação no país, são onipresentes no enredo. É aí que o Tietê emerge como um dos símbolos paulistas da derrocada do projeto modernista.

Certamente a plataforma de um Brasil moderno produziu peças-chave para a cultura nacional, sendo a arquitetura de Brasília um dos exemplos mais emblemáticos. A peça, porém, evidencia a todo instante os sintomas de que a mesma plataforma desenvolvimentista-industrial não teve efeitos correspondentes para a melhoria da realidade sócio-econômica. Logo na segunda cena, quando a protagonista chega a Brasília procurando seu marido no canteiro de obras do Congresso, o ritmo e as condições de trabalho dos operários na construção da futura capital servem de prenúncio ao fracasso da utopia de um novo país. Daí em diante, a peça se abre para passagens sobre a miséria nos rincões, a mercantilização da fé religiosa via proliferação de seitas, a corrupção exercida pelas autoridades, a impunidade para crimes ambientais, enquanto o cheiro do rio sobe...

 Dentro do painel também ecológico que a peça desenha, a idéia do atual governo do Estado de integrar o Tietê num sistema de parques e lazer soa como um paliativo, perfumaria nessa situação que só tem possibilidade de se reverter quando o rio deixar de ser esgoto; dentro de uma mudança de perspectiva que faça o poder público e a sociedade abandonar o urbanismo rodoviarista, mercantilista e implacável que prevalece em todas as esferas. De fato, isto ainda não está no horizonte. As recentes obras de ampliação da calha do Tietê representam uma ínfima parte do que seria necessário para sua recuperação, isso depois de um histórico de pelo menos 20 anos de desperdício de dinheiro público. Não deixa de ser curioso, então, que o espetáculo do Teatro da Vertigem consiga estrear apenas em ano eleitoral, após meses de negociação com departamentos e secretarias estaduais e municipais, para o cumprimento de exigências técnicas e de segurança, que envolviam do figurino à cenografia, até chegar, enfim, ao início da temporada. É coincidente, ainda, a estréia ocorrer na época em que o governador de São Paulo se lança candidato à presidência da República, com as obras do Tietê na vitrine de sua campanha política.

            Em comparação com os temas religiosos, cenas de teor político são raras no enredo da peça, mas ironicamente, e não sem certa dose de niilismo, os últimos diálogos de BR-3 ilustram as palavras evasivas e os paradoxos que dão forma ao sistema político nacional. Em Brasília, às margens do lago e próximo à casa legislativa, um senador concede entrevista coletiva acompanhado de dois guarda-costas, enquanto sua mulher o observa com admiração, à distância. Dotado da pompa de um parlamentar calejado, o senador declara: “O que eu proponho ao Congresso é criar uma lei inédita na história do país, que puna e coíba essa prática cruel e selvagem com penas severas e implacáveis... [...] Cheguei hoje de manhã, do Acre, onde passei a Páscoa longe da minha família, mas por uma causa justa e urgente. O tráfico de animais silvestres existe desde o descobrimento do Brasil.” Em seguida, após se irritar com os repórteres e interromper a entrevista, confessa em particular à sua esposa que aproveitou a viagem para fechar um negócio fundiário irrecusável. “Tem que ter visão. Espera só mais uns anos. É a última fronteira [do território brasileiro, referindo-se ao Acre]. O homem precisa tanto de madeira quanto de sangue pra viver. A gente nasceu pra queimar”. Tanto quanto para deixar o sangue ferver.