A MONTANHA, O MAR E O SERTÃO, por Carla Zaccagnini
A montanha, o mar e o sertão
“Digo: o real não
está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da
travessia.”
João Guimarães Rosa em Grande
Sertão: Veredas
Este texto pretendia ser sobre a consciência da impossibilidade de representação do real. Consciência que transparece em algumas obras e nos melhores casos lhes serve como ponto de partida, como questão formadora. Uma consciência de que a arte estará sempre aquém dos referentes reais que a alimentam, sempre fadada ao fracasso; de que a arte, se comparada à vida, já sai perdendo. Mas li Grande Sertão: Veredas e o texto todo mudou de rumo.
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Acabei de ler o Grande Sertão: agora, agorinha. E algo no livro, no relato transcrito de um narrador que deve de ser inventado, me fez pensar de novo neste texto. E sei que é por ter lido, mais de uma vez, Guimarães Rosa dizer na voz de Riobaldo, ao contar sua estória, que de pouco vale contá-la a quem daquilo não provou, não mordeu; a quem não conhece do Sertão nem a beira, nem o meio. Agora, presentemente e sem a sombra de nenhuma dúvida, sei sim que vale, porque não vi nem corri sertões, mas reconheço as verdades do livro que atravessei como a nado. E pensei que podia ser bom escrever assim, neste momento em que ainda me perpassam com toda força essas verdades e essa crença, já que este texto é, sobretudo, sobre a possibilidade da arte transpor distâncias não percorridas de outro modo. Já era, antes de eu começar a entender o Grande Sertão e a travessia, quando ia pela primeira das seis centenas de suas páginas. E tem, talvez, também, por fundo, a intenção de fazer transparecer no contar, transpirada, quase de acaso, algo da experiência por sobre a qual se apóia.
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Fui a São Petersburgo para ver o Hermitage: seis horas para cada lado, de trem, o rumo da ida mais o rumo da volta, para passar outras seis percorrendo a arca russa. O museu que é impossível, um mundo que não se cabe. Todas as pinturas de que já aceitara os slides, pensando nunca poder ver de perto, e que ao mesmo tempo estão como novas, sem desgastes de demasiada estamparia. Ruidosas, potentes e lado-a-lado. Para o necessário governo da razão naquele desgoverno de sentidos, decidi-me a retraçar em meu percurso a ordem da história, começando pela escola italiana do século XV, no primeiro andar, e seguindo daí para as salas barrocas.
O labirinto das salas encadeadas, a língua que não entendo e as flechas que mal apontam me levaram logo, seguido, a um pedaço do século XIX ali fora de lugar, no mesmo piso, desarranjando meus planos de cronologia. Um salto. E a Montanha Santa Vitória, a mais linda que já vi, que enxerguei de relance e deixei para o fim, de propósito. Essa tela tem o tamanho de todas as outras, aproximado. A largura comum de uma janela por menos altura, horizontal como deve a paisagem. Era mais rápida ou mais direta, talvez, do que as outras que conhecia, do que a que vi depois, no segundo andar do museu. O azul do céu, claro mas não-vibrante como costuma ser ao norte, e o verde e o marrom do capim e árvores não completavam o retângulo da tela. Deixavam os cantos crus, com o finzinho das pinceladas quase secas que se mostravam mais, ao ser assim menos. Terminar o céu e o chão não fazia falta, não era preciso expandi-los até as beiras últimas, as margens do quadro. Aquilo, incompleto, bastava.
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Estas palavras é que não se bastam. Queria poder descrever a pintura como Cézanne pintou a montanha, com a mesma verdade e o mesmo delírio contido; mas não. Em parte porque não sei das palavras mais exatas, em parte porque o todo nublou-me os detalhes que poderiam, agora, recompô-lo às partes. O que lembro, mais, é das idéias que pensei, que plantaram este texto. A beleza da insistência incansável, da vontade constante, ou repetida sempre, de pintar a montanha. Uma só, a mesma. Justo a montanha, que das formas naturais é a que mais encarna o caráter da permanência, do repetir-se a si mesma, quase igual, todos os dias, por tempos que não são humanos. Estável ao mais possível, a montanha se transforma invisível, aos muito poucos; cede sem pressa nenhuma a abalos encobertos, distantes, que ecoam em mudanças milimétricas, imperceptíveis a nossos olhos em sua escala geológica.
E o registro diário, com a mesma paleta e gestos regulares, que deriva em pinturas que não são sempre a mesma. Como as pinceladas dos cantos dessa Santa Vitória do Hermitage que, ao rarearem, apresentam-se com força renovada, a montanha, por ser assim rígida e uma só, talvez sirva melhor a evidenciar as mudanças que não provêem dela, mas lhe pertencem também, para os olhos atentos. Não se trata somente de pintar as mudanças que a luz impõe à visão da montanha como poderia ter feito Monet, mais essa vez, mas de pintar as mudanças que os próprios olhos inventam, não de propósito, mas por inevitável que é. E a disciplina absoluta, repetitiva, insistente, de pintar e voltar a pintar essas diferenças que só existem é assim: na pintura. Porque se fazem nela, se fazem visíveis (e só visíveis são) durante a pintura.
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Fui a Estocolmo pela viagem de barco, uma noite em cada direção, lua cheia e muito vento, e para ver o Moderna Museet. Entre todas as muitas obras bem escolhidas e surpreendentes que esperam nas paredes e ocupam as salas, gostei mais de um guache de Mondrian. Preto e branco. Era um desses desenhos ovais, sobre papel já amarelado. Linhas curtas, em sua maioria horizontais, alguns traços verticais que as cortavam, pontuando o espaço com um ritmo incerto, descompassado. Vários desses traços estavam cobertos, pintados por sobre, com outros traços, de tinta branca, mais grossos, mais pensados, mais lentos. Sem a urgência que se via nas linhas pretas, as pincelas brancas que as cobriam viam-se feitas com dedicação, desenhadas com algum capricho, por sobre um caminho já dado, com uma função certa que era apagar as decisões imediatas de instantes anteriores.
O desenho se chama "o mar". E não pude senão pensar no desejo desde sempre frustrado com que Mondrian tentaria transformar o mar na simplicidade estática dos traços pretos sobre o papel. Nas muitas vezes em que pensaria ter captado – e não – a essência fluida do mar na abstração de uma e outra linha. Esse líquido salgado que vai e vem, mais perto e mais longe da terra, e sobre o qual se navega, de Helsinque a Estocolmo ou pelas ilhas do Caribe. E é o mesmo, a mesma água toda, a mesma molhaceira. Inatravessável a nado de tão grande; de tão longe que é tudo. Parece-me incrível que Mondrian tenha tentado desenhar assim o mar. A coragem de querer reduzi-lo à representação mais mínima, mais crua, mais sem-artifícios.
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Hoje é dia primeiro, de 2006, deve fazer um mês que escrevi o primeiro parágrafo deste texto e nunca antes demorei tanto. Ontem, à noite, me demorei muito tempo olhando o mar no escuro, que ia e vinha até mim, numa reverência mecânica e sem adoração nenhuma. E de novo pensei neste escrito, frases que pensava transcrever mas não creio que valessem o esforço da memória. Tive certeza, isto lembro, de que o mar de Mondrian não tinha sido visto assim, mas de cima, de uma ponte ou uma embarcação, o mais provável. Porque nele a água não tem direção certeira, só balança, só é superfície instável. Mesmo a impressão e a idéia de volume, tão fazedoras do mar que envolve todo o corpo e muda a gravidade, desaparecem no contraste de preto e branco.
Ontem, à noite, me demorei muito tempo olhando o mar no escuro, que ia e vinha numa reverência sem intenções que não estava mais que em mim. E conferi, durante mais de uma hora, que não há uma vez que seja igual à outra. Que o mar não se repete, não se repete, não se repete, não se repete e assim para sempre. Já sabia, mas é diferente saber de estar olhando. Porque o real não está nem no mar nem na montanha nem no que podemos saber do mar e da montanha. Nem no sertão. O real se dispõe é no caminho que traçamos para chegar até ele e no caminho por que voltamos para contá-lo: na travessia.
Carla Zaccagnini