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O ALTO RISCO DE UM ATO, por Rodnei Nascimento

Um comentário ao “Deserto do Real”, de Slavoj Žižek

Seria possível imaginar um tipo de intervenção mais autêntica sobre a realidade do que um ataque suicida que lança aviões contra edíficios comerciais, como no 11 de setembro novaiorquino? Afinal a destruição do próprio alvo da ação não seria a prova definitiva da capacidade humana de impor-se sobre o mundo? No entanto, de acordo com o filósofo esloveno Slavoj Žižek, atualmente mesmo a manifestação mais extrema de violência tende a ser transfigurada num espetáculo de destruição, que revela, por fim, a fragilidade da sua força negativa.

E o 11 de setembro parece não ter sido um caso isolado na história. Conforme Žižek, este foi o destino comum dos mais contundentes empreendimentos políticos, estéticos e comportamentais do século XX. Movimentos revolucionários, vanguardas artísticas, demandas por liberação sexual e ações terroristas apostaram numa política de transgressão total com a ordem estabelecida movidos pelo desejo de construir uma relação autêntica com o mundo, com o outro e até com o próprio corpo. A recusa de formas de vida cada vez mais artificiais, a busca de uma experiência direta com as coisas, enfim, uma verdadeira “paixão pelo real” teria animado todo o século passado.

Tais iniciativas não encontraram o esperado mundo da experiência não alienada. Nenhuma nova ordem de realização plena da subjetividade humana foi descoberta por trás da opacidade da vida cotidiana. O desejo de ruptura se deparou com o vazio de sua própria ação. Um gesto de violência gratuita revelou-se como sua verdadeira aspiração. E, como fim em si mesmo, o desejo de destruição foi capaz de produzir no máximo um “efeito de real”, um cenário fictício de superação da ordem existente.

Não está em jogo aqui a ladainha pós-moderna de que tudo, no mundo contemporâneo, é imagem ou simulacro.Um ataque terrorista não é, por certo, mera virtualidade. Verdadeiramente cruel, ele põe abaixo, de fato, edifícios inteiros. Porém, do ponto de vista de uma intervenção transformadora, torna-se inócuo. Mesmo o que parece ser a transgressão máxima, pode ser assimilada à realidade que se pretende negar, seja sob a forma de imagens televisivas seja sob a forma de modos de comportamentos. O efeito das ações animadas pela “paixão pelo real” teria, assim, a paradoxal propriedade de resultarem no seu oposto, numa representação de realidade, dir-se-ia, numa hiper-realidade: os julgamentos de Stálin, a pornografia, a transgressão como estilo de vida, os espetáculos explosivos patrocinados por suicidas etc.

O quadro descrito por Žižek ganha apoio na realidade quando nos lembramos do desfecho do movimento da Grande Recusa, inspirado por Herbert Marcuse nos anos 60. Contra a intransigência da sociedade unidimensional à toda força de oposição, o teórico do poder civilizacional de Eros incitava a oposição estudantil a unir à rebelião libidinal uma rejeição política em bloco do modo de vida capitalista.

Se a Grande Recusa não vingou como projeto político, ela no entanto deixou como saldo uma geração de indivíduos avessos à disciplina da sociedade industrial e dispostos a fazer valer os direitos de sua individualidade. Mas eis que, a partir dos anos 80, a velha economia baseada na produção em massa, em crise e tendo que se expandir, dava lugar a uma produção centrada antes na demanda personalizada, o que passava a exigir um trabalhador mais dinâmico, ágil e criativo, em vez do antigo operário adaptado à atividade mecânica. Deu-se um encontro feliz que gerou não o reino de Eros, mas um novo ciclo da acumulação capitalista. A geração 68 pôde servir como o trabalhador flexível da mais avançada economia do conhecimento, realizando, ao mesmo tempo, o que fora suas verdadeiras aspirações.

Mas se é assim, se mesmo os projetos políticos mais radicais parecem condenados ao fracasso, como enfrentar esse poder fetichista do real que inverte no seu contrário o sentido da ação humana? Ou deveríamos, então, simplesmente abandonar a “paixão pelo real” como uma fantasia de indivíduos que buscam um sentido profundo nas coisas simplesmente para aplacar sua angústia? Não nos restaria apenas nos contentarmos com a realidade rasa do nosso cotidiano como horizonte último da vida?

Quanto a Žižek certamente não se trata de propor uma aliança cínica com os dados da realidade tal como existem, mas tampouco trata-se de repetir as estratégias da “paixão pelo real”. Seu equívoco não estaria no desejo de quebrar com as falsas significações, com as formas de vida artificiais, alienadas ou repressoras, mas na ilusão de que sua ação possa se completar numa ordem de realidade em que os indivíduos se reconheçam plenamente. Pois é precisamente quando estes se acomodam a uma forma de representação fixa, a uma identidade rígida, é que se tornam passíveis de manipulação, de classificação e controle.

É por isso que Žižek propõe como modelo de ação um Ato, na acepção lacaniana do termo, que rompe sim com as coordenadas de intervenção oferecidas pelo presente, mas sem cair na tentação de querer estabelecer uma identidade plena dos indivíduos com o mundo. Um Ato preservaria sempre um espaço de antagonismo entre os agentes e suas formas de representação.

Por trás dessa concepção está a idéia de que o antagonismo é única forma de relação autêntica possível com o mundo, visto que somente ele faz justiça à natureza da subjetividade humana, marcada por um princípio de inadequação entre si mesma e suas formas de representação. Toda tentativa de reconciliação absoluta seria não apenas falsa, ideológica, mas também uma violência a seu caráter essencial. Preservá-lo seria a única maneira de manter aberto o horizonte da ação humana e de conferir-lhe algum poder de intervenção criadora sobre a realidade.

Não se pode deixar de reconhecer a engenhosidade da solução do pensador esloveno que, ao  complementar a noção hegeliana sobre a negatividade da vontade com a inadequação essencial do sujeito tirada de Lacan, previne-se contra a queda do Ato numa identidade absoluta. Mas também não se pode deixar de constatar que tal estratégia comporta um alto risco. Pois um Ato não se estrutura pelas coordenadas do presente nem se deixa fixar positivamente,  ele é “um passo no desconhecido, sem garantias quanto ao resultado final”. Ou seja, comporta um sério risco de arbitrariedade, porque sua legitimidade não pode ser comprovada de antemão, nem se pode saber como será o seu fim.

Aceitar esse risco torna-se, entretanto, um imperativo no momento em que os referenciais disponíveis para a ação não são mais capazes de ensejar uma verdadeira mudança. A situação daqueles que se engajam num Ato seria semelhante à política revolucionária, em que a tomada de poder jamais pode obter validação dentro da própria ordem a ser derrubada. Nesse instante, “alguém tem de assumir o risco e agir sem legitimação, engajando-se numa espécie de aposta pascaliana de que o Ato em si há de criar as condições para sua própria legitimação”. Como se vê, a tarefa é perigosa, resta saber quem será capaz de assumi-la.

 
                                                                                                                                                                        Rodnei Nascimento