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ARTIFÍCIOS DA DOMESTICIDADE, por José Augusto Ribeiro

Artifícios da domesticidade

 

A casa e o ambiente doméstico constituem, mais do que escaninhos da intimidade, o rudimento de manifestações da família e da sociedade burguesas na esfera do “público”. A efetiva privacidade do quarto e do banheiro depende, por exemplo, da natureza social da sala e da cozinha. Fachada, muros e grades projetam os limites de propriedade, com portas, janelas e vidros que fazem a comunicação entre o interior e o exterior. A disposição de móveis e objetos revela gosto, estilo, a falta de um, de outro ou de ambos, personifica repetidas ações humanas e determina, em cada cômodo, a dinâmica das relações interpessoais. Para Walter Benjamin, é o salão burguês que “obriga” o morador a adquirir o máximo de hábitos, “que se ajustam melhor a esse interior do que a ele próprio”.[1]

Homem, casa e universo não se justapõem simplesmente, diz Gaston Bachelard,[2] mas animam dialéticas entre a habitação e a natureza, o repouso do lar e a convulsão da cidade, o espaço de dentro e o de fora, o psicológico e o físico: “a grandeza do mundo cresce à medida que se aprofunda a intimidade”.[3] A coexistência destes pares não se define, portanto, pelos contornos da objetividade geométrica, porque, além de um conjunto de linhas, formas e volumes, a casa, seus objetos e mobiliário são transubstanciações de personalidades – paragens de “receptividade psicológica” –[4] e indicadores de estruturas familiais e sócio-econômicas de uma época e local.

            Dois trabalhos recentes de artistas paulistanos lidam com estas dimensões dos lugares da habitação. Projeto para a ocupação de uma casa, de João Loureiro, envolve o aluguel de um imóvel no bairro do Sumaré, zona oeste de São Paulo, e a construção de ambiências que restituem o aspecto doméstico do sobrado até então vazio. A exposição Objetos médios, de Laura Huzak Andreato e João Paulo Leite, devolveu temporariamente características residenciais à sala de uma casa em Pinheiros, também na região oeste da cidade, onde funciona, hoje, uma editora que abriga mostras de artistas ligados ao departamento de Artes Plásticas da ECA-USP (Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo).

Cada um a seu modo, ambos propõem jogos para a ambivalência funcional[5] de objetos cotidianos, para os modos de formatação da individualidade dentro dos espaços de moradia, para o valor distintivo que se atribui a pertences triviais ou íntimos, para, enfim, o objeto-casa que não se presta somente ao cenário de ações, digamos, “particulares”, mas também a artifícios na representação de uma personalidade ou de pertencimento a uma determinada classe social.

A pesquisa de João Loureiro desdobra-se por três anos, vinculada à extinta Bolsa Vitae e à vigência do contrato de locação do sobrado à rua Aimberê, número 1.396 [na cidade de São Paulo]. Desde o início de 2004, o artista elabora, para a casa, esculturas cujas formas condensam o uso dos cômodos onde são instaladas. A começar pela sala de estar, que abriga uma única peça de ferro branca, interligando três poltronas, um sofá, um quadro monocromático (em formato de paisagem, retangular e na horizontal), uma mesa de centro, cinco soquetes de lâmpada e uma grade para o “jardim de inverno”, representado por um tapete alto de lã marrom que simula algo entre a grama e a terra. A conexão entre os móveis é feita por barras que se prendem ao piso, às paredes e ao teto, como se a estrutura enrijecesse as relações sociais estabelecidas naquele ambiente cândido e estanque, fixando a posição e a circulação das pessoas.

Na cozinha, uma mesa redonda e uma cadeira de ferro, presas uma à outra pelo eixo que conecta os pés de sustentação, compõem outro móvel de síntese. O desenho da cadeira lembra o de uma congênere feita de sarrafos, e o ferro pintado em cor de madeira reforça a inadequação entre matéria e forma. Rodízios permitem a volta completa do assento em torno da mesa, sobre a qual repousa uma toalha com três áreas, vermelha, rosa e vinho, como se fossem três lugares para uma só pessoa, sem posto para conviva. Um relógio de parede que também é espelho faz a introjeção do visitante no tempo e no espaço do trabalho: a imagem especular enquadra o ambiente e o espectador, na mesma superfície em que os ponteiros oferecem uma percepção temporal paradoxalmente estável. Noutras palavras, o reflexo faz com que o espelho seja para o espaço o que o relógio é para o tempo.

Na escada que leva ao piso superior, desenrola-se uma passadeira verde que, aos poucos, ganha aspecto de grama, por conta de fios irregulares, mais e mais altos, degrau a degrau, até desembocar num hall. O cômodo à esquerda tem a porta trancada, sem maçaneta. O “mato” avança pela fresta entre o chão e a porta, mas nada indica o que é o quarto ou o que está lá dentro. No sentido contrário do corredor, a primeira porta à direita dá passagem para outro cômodo, com cama e criado-mudo que, revestidos de fórmica marrom, aludem à madeira de novo. Os móveis irrompem e se compõem do que parece ser uma pilha de troncos junto à parede; dali, prolongam-se até o centro do quarto, com o peso e o volume que são as “funções” daquela composição – sem dúvida, a mais “escultórica” da casa. Diante da cama, outro objeto embaralha a identificação de forma, matéria e finalidade: trata-se de uma caixa retangular estreita, envolvida por folhas de madeira que servem de “moldura” a um espelho sob três faixas de acrílico coloridas, vermelho, verde e azul, tal qual o sistema RGB (red, green and blue) dos aparelhos de televisão em cores.

No cômodo anexo ao quarto de dormir fica a biblioteca, onde estão uma poltrona e quatro móveis para os livros. Uma prateleira tem os nichos exatos para cada um dos 82 volumes de uma coleção dos romances de Julio Verne ainda incompleta. Cada título, presente ou não, já tem lugar específico no móvel, revestido com fórmica vermelha (por fora) e preta (por dentro), repetindo as cores da capa de couro que dá unidade às edições. Outra estante, de MDF, guarda livros de referência acadêmica sobre zoologia, botânica e mineralogia. Depois de percorrer os cômodos até o terreno em que a ficção de aventura e o conhecimento científico se enlaçam, é hora de retomar a narrativa, rumo à saída.

Quando a visita chega a áreas que sugerem a existência de uma intimidade ali instituída, surgem perguntas relativas à identidade do possível morador: “quem é?”, “o que faz?” e “quando está ali?”. O trabalho de Loureiro deixa entrever alguns traços desta persona, como os de alguém que, por exemplo, já praticou ou pratica a caça – há um troféu que estiliza os chifres de um animal pendurado à parede da escada, à esquerda de quem desce os degraus. Leitor das aventuras de Julio Verne, o personagem que se poderia supor tem qualquer coisa do Henry David Thoreau de Walden, dormindo num quarto com troncos, como a cabana construída pelo escritor norte-americano na floresta que dá nome ao livro. Pode ser um sujeito auto-suficiente, de poucas companhias, como insinua o arranjo fixo das poltronas na sala, ou vivendo em certo isolamento, a julgar pela cadeira única da mesa da cozinha e pelo criado-mudo solitário junto à cama.

Também pode não ser nada disso, já que convém a exercícios de especulação preservar a margem que separa a realidade desta ficção do que é ficcional e fantasioso dentro dela; o que é ou pode ser “factual” daquilo que materializa um pensamento atribuído ao inconsciente do tal protagonista. O personagem, de todo modo, constrói-se pelas superfícies. A contrapelo de qualquer “profundidade” psicológica, as esculturas formalizam idéias de simbiose entre o sujeito e o mobiliário, num processo que informa ao mesmo tempo a objetificação do homem e a humanização dos objetos, assuntos recorrentes na produção de Loureiro. A leitura antropomórfica determina, sim, significados específicos para gestos como a torção do ferro que se repete na grade do jardim de inverno e no lustre da escada (seriam marcas da ação do artista apenas?). Além disso, as peças que se espalham pelo sobrado ganham coerência ao enfeixar elementos para narrativas que tenham como fio condutor a existência de uma figura imaginária que não se corporifica, senão na mobília, aos fragmentos, ao longo da visita.

Se o Projeto... de Loureiro realiza a topografia psicológica do ambiente residencial por meio de esculturas, a exposição de Laura Huzak Andreato e João Paulo Leite propõe uma sintaxe dos objetos de uso doméstico a partir de ready-mades. A mostra Objetos Médios transformou em uma improvável sala de estar a antiga recepção que abriga o Projeto Laboratório na editora Annablume. A dupla reuniu utensílios e bibelôs pertencentes ao “gosto comum” – nem de “bom” nem de “mau” gosto, apenas “médios” –, alterou a conformação de uns poucos e dispôs a grande maioria sobre caixas de papelão lacradas, dessas usadas para o transporte de mudanças, com legendas que indicam fragilidade, posição correta, capacidade de empilhamento e necessidade de proteção contra umidade.

Vasos com e sem plantas, aparelhos de chá e de jantar que imitam louça chinesa, abajures, rádio, espanador, quadros, espelho, poltrona, garrafas de vinho, livros, além de uma série de elementos que pertencem à iconografia surrealista, como a ampulheta, o cachimbo, o jogo de xadrez, o relógio, as maçãs (eram três, de plástico, e a da direita estava partida ao meio, reatada por um laço), as chaves e o guarda-chuva; tudo se ajeitava em efeitos decorativos, como numa tradicional casa de família classe média. Até os tapetes estendiam-se sobre caixas, o que dava a sensação de algo transitório, de uma situação provisória, ainda que poucas delas tivessem dimensões correspondentes às do objeto que sustentavam.

Fossem ou não recipientes para o transporte das coisas, as caixas desempenhavam o papel de móveis ou, simplesmente, preenchiam o vazio entre o chão e a base de alguns objetos, a exemplo do cabide que, aparentando estar preso à parede, apoiava-se sobre pilhas de caixas. Parte das paredes – cerca de um metro desde o rodapé – estava pintada num tom claro de verde, criando uma espécie de nível hierárquico para a posição dos itens, ao mesmo tempo em que compunha a decoração do tipo standart. Mas se as caixas funcionavam como pódios, que parâmetros se definiam pela linha divisória entre o branco e o verde? E a que lógica serviria uma classificação como esta, à lógica econômica do valor de troca ou à lógica funcional do valor de uso? À lógica da troca simbólica ou à lógica “diferencial” de “valor/signo”?[6]

Não é tarefa deste artigo o estudo da economia política daquelas peças. Basta destacar que, neste trabalho, interessa aos artistas a noção de objeto enquanto código portador de significações sócio-econômicas, dotado de caracteres de distinção social e de distribuição hierárquica. Daí a colocação da poltrona – entendida como herdeira do caráter majestático do trono, o lugar exclusivo do regozijo patriarcal – a cerca de um metro e meio do chão, sobre uma caixa em que caberia uma geladeira.

A cena armava-se entre o verossímil (com a organização sóbria da mobília) e o surreal (pois o que faria um quebra-cabeça montado e partido ao meio, com as duas metades emolduradas separadamente, uma pregada à parede e outra, abaixo, apoiada sobre caixas de papelão?). Não havia, naquela ambiência, lastro suficiente para a idealização de um personagem, já que o único índice de vida íntima era uma pequena coleção de caixas de fósforos engavetada. Talvez os vinhos acrescentassem alguma informação específica, relativa aos hábitos do(s) morador(es). Os demais objetos incorporados, porém, eram genéricos e impessoais. O que ainda poderia ser resultado da ação de um personagem era a posição de um dos copos, deslocado da simetria de seus pares, sobre a bandeja folhada à prata, mais nada.

A “mente” unificadora do trabalho não é, portanto, a do protagonista de um entrecho. Pode-se pensar, em vez disso, na figura de um diretor, de alguém que tenha criado o ambiente para a encenação de um episódio ainda sem narrativa. O tempo, em Objetos médios, parece suspenso, interrompido homogeneamente pelo espaço, a despeito da marcação feita pelo relógio ou pelo rádio ligado. Não há indícios suficientes para intuir a vida pregressa de alguém, só uma sugestão de porvir. Melhor seria comparar o arranjo da sala com a exposição do acervo de um hipotético Museu da Família Média Brasileira, sem retratos de intimidade, somente com os bens que denotam a projeção pública dos proprietários.

Os utensílios recolhidos por Leite e Andreato pronunciam uma ilusão de função prática[7], em privilégio das propriedades de ambiência (inclusive no som do rádio e no funcionamento do relógio). A cena constitui uma ficção social, uma amostra de aspiração à mobilidade – ou de temor à queda no padrão de vida – que parece inerente à condição de classe média. A imagem do quebra-cabeça e a maçã partidas ao meio deixam soar um comentário sobre o descompasso entre a mobilidade intencional, do âmbito dos anseios, e a mobilidade real, que se refere às chances objetivas de promoção a um dos subconjuntos da sociedade. Os estratos de classificação definidos pelos níveis de empilhamento das caixas enunciam desejos de prosperidade – afinal, o ranking não é outra coisa senão uma sucessão de limites a serem ultrapassados. Os objetos sinalizam escalas de prestígio e, com isso, a propriedade – em lugar da produção – se revela motriz do processo social que estipula o valor de troca, o valor simbólico e o valor de uso.

A análise conjunta destes dois trabalhos enseja paralelismos entre a figura do personagem e a do diretor, entre o caráter psicológico e o sintático-social dos objetos, entre as naturezas da escultura e do ready-made, mas não opõe de modo incisivo esfera pública e esfera privada, ao contrário da expectativa gerada pelos parágrafos iniciais, com referências sobre a mesma dualidade na sociedade burguesa. Em Projeto para a ocupação de uma casa, a esfera íntima pode ser resultado de devaneios, emergindo da concretização de anseios ou delírios que se atribuem ao morador idealizado a partir dos cômodos e dos móveis daquele sobrado. Já no ambiente de Objetos médios, não há sequer manifestação de intimidade ou indicativos de recolhimento. Como realidade histórica – e, portanto, sem limites definidos para sempre –, a vida privada só faz sentido em relação a uma existência pública; e quando uma destas esferas não existe, a outra se torna incrível ou inominável.



[1] Benjamin, Walter. Experiência e pobreza. In Obras escolhidas – Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1994
[2] Bachelard, Gaston. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1993.
[3] Id, ibidem.
[4] Baudrillard, Jean. O sistema dos objetos. São Paulo: Perspectiva, 2000.
[5] Funções prática e ornamental.
[6] Ver nota 4.
[7] Isso pode ser aplicado a todo objeto de arte, ou melhor, a todo objeto “colecionável”. Mas refiro-me, aqui, às imagens do surrealismo verbal (Octavio Paz, em Aparência desnuda), do qual são exemplos o "sapato-pé" e o Ceci ne pas un pipe, de René Magritte.