Neste espaço se improvisa, Tania Rivitti
São Paulo nunca teve, como agora, tantos locais que se querem centros culturais. Antes, porém, de comemorar essa expansão, caberia observar a descontinuidade e falta de projetos a(de?) longo prazo que caracterizam as atividades dos espaços e analisar com cuidado o contexto de seu surgimento e a eficácia de suas ações.
Centros culturais são geralmente entendidos como espaços de convivência onde acontecem exposições, atividades didáticas, palestras, apresentações musicais entre outros programas. É cada vez mais freqüente a inclusão de lojas, cafés e livrarias em suas instalações. No Brasil, o boom dessas instituições acontece nos anos 1980 e 1990, após o surgimento das leis de incentivo fiscal e de leis que estimulam a ocupação de prédios para preservação do patrimônio histórico e de áreas centrais da cidade. Em âmbito internacional, assistimos, nesse mesmo período, a um movimento de expansão dos museus, ligado, em geral, à espetacularização da arquitetura. Na Europa e nos Estados Unidos, sua organização movimenta diferentes segmentos profissionais e atrai verdadeiras multidões. Entretanto, diferente daqui, nesses templos de arte contemporânea, não há lugar para a improvisação.
O modelo dos centros culturais abala de tal forma a já combalida identidade dos museus que coloca em crise sua função essencial: adquirir, mostrar, guardar e conservar obras relevantes para a constituição de acervos.
Nota-se que, no Brasil, o caráter híbrido e o ritmo acelerado dos centros contaminam os museus, que passam a oferecer uma programação eclética, com concertos, palestras, cursos, filmes, além das atividades habituais. Se observarmos alguns estabelecimentos comerciais cuja atuação se dá também no âmbito da cultura — galerias e livrarias —, perceberemos que seguem o mesmo caminho e, muitas vezes, apresentam uma programação de qualidade razoável. Há também uma movimentação intensa em volta das cada vez mais numerosas bienais e das recentes feiras internacionais de arte. Toda essa movimentação deve, em alguma medida, corresponder à crescente demanda da população urbana por bens culturais.
ocupar para preservar
Em nome da revitalização do centro, surgiram diversas organizações que visavam intervir em áreas deterioradas para diminuir a sensação de decadência e abandono. Com a finalidade de estancar a erosão crescente dos equipamentos existentes, procedeu-se à quase musealização dos espaços centrais urbanos. Esses projetos, geralmente executados em forma de parceria público/privado, na prática, acabam por estimular o setor privado a reconstruir o que, de certa forma, ele mesmo destruiu.
A musealização das áreas centrais urbanas tem a ver com a nova utilização do espaço que passa a ser monitorado e vigiado. Aumenta o controle de acesso de indivíduos e grupos sociais a ruas, praças e locais que eram considerados públicos. Os espaços culturais passam, então, a ter um caráter semi-público. O desconforto da cidade se manifesta nessa constante vigilância que oprime cada vez mais o cidadão metropolitano.
O esforço por preservar sítios não é apenas um fenômeno brasileiro. Beatriz Sarlo observa que, em Buenos Aires, ninguém mais estranha o fato de salvarem edifícios antigos utilizando-os como shoppings. E continua: o shopping é uma espécie de freezer de nossos problemas urbanos. Cada vez que se levanta uma ameaça de demolição das edificações, pensamos em construir um shopping. É difícil entender tal conservação patrimonial que distorce seu uso original e desrespeita a memória local.
Analogamente, Paulo Mendes da Rocha comenta que há, entre nós, um sintoma muito estranho: a transformação de tudo que é abandonado em centro cultural. Delega-se para a área da Cultura a responsabilidade pelo destino dos edifícios deixados de lado. Muitos tinham outros fins e se degeneraram, porque o interesse da especulação pura e simples se sobrepôs ao interesse coletivo.
Quanto à utilização das antigas sedes bancárias como centros culturais, Mendes da Rocha ressalta o grande dispêndio de verba para encontrar uma nova função para a qual o prédio se mostrará logo inadequado. Enfatiza que cidades como São Paulo já se apresentam como grandes centros culturais, com teatros, cinemas e salas de exposição, sendo quase uma redundância fundar Centros em centros.
A utilização de prédios antigos — que contam já com uma infra-estrutura instalada como centros culturais — redunda, por outro lado, numa economia de recursos, pois permite desfrutar de benfeitorias já existentes na instituição de origem. Conta-se também com a disponibilidade de equipamentos e de funcionários que podem ser deslocados para novas funções que se abrem. Se esse procedimento, por um lado, facilita a implantação de novos espaços, por outro, acarreta alguns problemas, uma vez que a adaptação de profissionais nem sempre transcorre de forma tranqüila. Claro que instituições frutos de preservação de edifícios são essenciais numa cidade sem memória como São Paulo, onde é necessário um grande esforço para que se vislumbrem recuperações efetivas.
público e privado
Poderíamos chamar de instituições privadas os centros ligados, por exemplo, a corporações financeiras, tais como o Banco Itaú, Banco Santander e Unibanco; e de públicas, quando ligadas a entidades estatais, à exemplo do Centro Universitário Maria Antonia da USP, Centro Cultural São Paulo, Funarte e Espaço Cultural dos Correios no Rio de Janeiro. Mas, levando-se em conta que, na maioria das vezes, a verba empregada vem das leis de renúncia fiscal, pode-se dizer que muitos centros culturais são alimentados com verba pública. Isso não implica, contudo, um controle do poder público na utilização da verba.
Muitas vezes, parece que a dicotomia público/privado não dá conta de explicar a complexa situação dessas transações. Na conquista de novos modelos de gestão que viabilizem suas atividades rotineiras, tornaram-se freqüentes parcerias dos centros e museus, públicos e particulares, com instituições consulares como o Instituto Goethe, a Aliança Francesa, o British Council, o Instituto Cervantes e o Instituto Italiano, assim como com universidades, editoras, além de bancos e empresas estatais (Petrobrás, por exemplo). Enquanto alguns desses parceiros são conhecidos por investirem em eventos que não têm apelo mercadológico nem um público cativo – e, portanto, precisam ser financiados – outros parecem ter suas políticas determinadas pelo departamento de marketing de suas empresas.
O gerenciamento desses centros está, cronicamente, em busca de novos modelos de parceria que viabilizem a manutenção econômica das propostas — cada vez mais onerosas — de eventos e atividades. O diretor do MoMA, Glenn Lowry, quando argüido em entrevista recente sobre a preponderância do modelo europeu público nos museus do futuro em contraposição ao modelo norte-americano — que favorece a autogestão e o mecenato —, respondeu: “nenhum sistema é perfeito. Se, de um lado, uma instituição estatal, ao patrocinar arte, a torna acessível a um público maior, de outro, o capital privado é menos complicado de ser arrecadado, embora imponha muitas restrições, pois nos obriga a lidar com centenas de indivíduos que querem dizer como a instituição deve ser dirigida”.
O papel do poder público de garantir a função social das instituições culturais passa pela forma com que as leis são agenciadas. Que projetos, que ações devem ser valorizadas? É mais difícil de aferir a qualidade de um bem cultural, notadamente na área de arte — porque se trabalha com a criação de significados — do que a de bens de outras áreas mais técnicas que referendam conhecimentos sedimentados.
falta de projeto
O dinamismo que o capital traz aos museus e aos centros não pode comprometer a necessidade de reflexão contínua sobre suas propostas. Fica clara a precariedade dessas instituições ao se considerar o improviso que rege a definição dos seus espaços, a confusão entre verba pública e privada, a relação informal de emprego — presente na maioria das instituições — assim como a dificuldade de se elaborar uma programação pertinente, capaz de pautar um debate significativo para seus freqüentadores.
Propor a elaboração constante de um projeto que sirva de parâmetro para as grandes linhas de atuação pode parecer um encaminhamento ingênuo ou, no mínimo, simplista. Ajudar a recuperar áreas danificadas, desempenhar atividades agregadoras junto à população do entorno, garantir um planejamento enxuto que dê conta dos intercâmbios e parcerias que surgem ao longo do tempo, viabilizar eventos significativos para a constituição de uma programação de qualidade são atividades tangíveis. Frente a intensa espetacularização da realidade, uma proposta mais singela talvez nos infunda ânimo em "tempos tão difíceis".