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A arte na cidade: o alcance da publicização, por Tatiana Ferraz


Fenômeno saliente há mais de trinta anos nos domínios da urbe, a chamada arte pública vem ganhando notoriedade como corpo substancial num terreno comum à diversidade de manifestações artísticas que se instauram nos meandros da cidade em trânsito. O urbanismo moderno procurou garantir à vida urbana condições estáveis para o desempenho das funções citadinas e, dessa forma, grosso modo, preparava um ambiente propício a políticas de projetos permanentes de arte em solo público. Desde o final dos anos 1960, esta cidade vem abdicando de seus ideais urbanísticos abstratos e totalizantes. Dispersa e fragmentada, a cidade passa a regular-se pelas contingências locais, numa sociedade instável. Nesse sentido, cabe nos perguntar como as manifestações em escala urbana se modificaram ao longo da história da arte pública e quais são os desafios impostos pela nova dinâmica metropolitana para a produção atual. Que valores teriam um trabalho de arte ao se colocar lado a lado com os ruídos da cidade? Quais seriam esses lugares efetivamente “públicos”? Ou ainda, em que níveis a qualidade de “público” aparece na arte: por sua acessibilidade espacial, social, ideológica, cultural ou política?

O desafio aqui é tentar buscar um fio condutor que auxilie à aproximação do que poderíamos entender por arte pública, a começar pelos possíveis usos e significados dessa denominação. O artista francês Daniel Buren, em texto publicado em 1998 – e reeditado em português em 2001 – abre caminho para a investigação do uso do termo: por quê qualificar uma arte como “pública” apenas por sua aparição em espaço urbano, frequentemente externo, de livre acesso na cidade? Que mecanismos garantem que o encontro com um trabalho de arte o torne efetivamente público? Por quê uma obra pertencente ao acervo de um museu público – ou sustentado com recursos públicos – não haveria de levar o mesmo adjetivo qualificador? Buren chega até mesmo a duvidar do caráter indubitavelmente público da rua, na qual uma obra é necessariamente designada como tal.

As inquietações do artista francês sinalizam para um segundo extrato de questionamentos relativo à interdependência de campos que tradicionalmente são entendidos como opostos: o público e o privado. Debruçar-se sobre essa antiga dialética exige um esforço muito mais amplo do que o mapeamento das especificidades nas fronteiras entre indivíduo e comunidade; envolve, também, imprecisões da chamada esfera pública em diversos níveis, políticos, sociais e físicos – estes tomados no âmbito do urbano e arquitetônico. Aspectos do poder público, da privatização e do mercado, termos como espaço público e espaço semi-público, conceitos como domesticidade e publicidade problematizam níveis de “sociabilidade” na metrópole e implicam em “capacidades” contemporâneas possíveis de apropriação e pertencimento. Grande parte dessa produção artística se engendra nas variações da matriz urbana e da esfera pública e acaba repondo o problema detonador de volta à esfera da vida.

Para a crítica norte-americana Miwon Kwon, a expansão de engajamento da arte com a cultura favoreceu lugares públicos externos em relação à tradição de confinamento, física e intelectual, própria do modernismo. Na tentativa de compreender o fenômeno moderno norte-americano de caráter “público”, Kwon tratou de esboçar alguns paradigmas freqüentes impressos ao longo de quase quarenta anos desse tipo de inserção artística, a qual era comumente engessada numa única categoria. Uma primeira ocorrência, denominada arte-em-lugares-públicos, refere-se às esculturas modernas autônomas que independeriam do lugar onde se instauram, podendo aparecer tanto na rua como em um acervo museológico. Já a produção designada por arte-como-espaço-público envolve trabalhos encomendados que funcionam como mobiliário urbano, construções arquitetônicas ou ambientes paisagísticos. Uma terceira ocorrência, a arte-em-interesse-público refere-se àqueles trabalhos atrelados em primeiro plano a questões sociais, ativismo político e/ou colaborações de “comunidade”. Essas passagens de uma ocorrência à outra e a concatenação das mesmas na história estão intimamente ligadas ao processo de comodificação da cultura e das cidades, estas pressionadas tanto pelas instituições culturais regidas pelo mercado, pelo poder público e sua dinâmica administrativa "marketeira", como pelas próprias pressões sociais das comunidades e das novas sistemáticas do território urbano.

Para adentrarmos nos domínios da arte pública no Brasil é preciso nos deslocarmos do fenômeno comum ocorrido nos Estados Unidos e na Europa. Nesses dois ambientes, o que vulgarmente se denominou por esta forma de arte está vinculado a um sistema de encomenda pública que corresponde a uma vontade política de ordenação dos espaços comuns da cidade e suas configurações em termos simbólicos, memoriais e publicitários. Tal fenômeno teve início na década de 1970 e se desenvolveu com grande fervor nas políticas de embelezamento das cidades ao longo dos anos de 1980, freqüentemente por meio de projetos colaborativos entre artistas, arquitetos, urbanistas, paisagistas e designers.

No Brasil, a não ser por uma experiência já passada de encomendas públicas de monumentos, é difícil identificar uma cultura de incentivo público endereçada a um programa aberto à re-significação do espaço coletivo da cidade, como nos exemplos norte-americano e europeu. Contrárias a estes exemplos externos são as iniciativas individuais e efêmeras que têm buscado atuar no espaço urbano como provocadoras de situações e ambiências capazes de modificar – mesmo que temporariamente – a paisagem urbana, suas perspectivas e visualidades, e os lugares percorridos nos trajetos diários da cidade, a exemplo dos artistas Hélio Oiticica, Artur Barrio, Grupo 3Nós3, entre outros. As dificuldades brasileiras em se compreender o “gênero” saltam ainda mais aos olhos quando nos deparamos com a ausência efetiva de “espaço público”; os espaços de cidades como São Paulo, de “livre acesso”, são sistematicamente ocupados, seja pelo comércio informal, por construções clandestinas ou ainda, e mais urgente, pela simples falta de pavimentação regular nas calçadas, dificultando o deslocamento do pedestre. A região metropolitana de São Paulo, por seu histórico de colonização e de desenvolvimento condensado em poucas décadas – este motivado por interesses corporativos privados – arregimentou uma paisagem heterogênea e fragmentada, onde todos os espaços são passíveis de privatização.

No Brasil, a possibilidade de instauração desse tipo de arte parece configurar-se mais em termos culturais do que efetivamente espaciais, dado o dinamismo diário e a instabilidade vivida em território urbano. José Resende, em artigo publicado na extinta revista Malasartes, sinalizou a ausência da escultura na cidade como fruto de um processo de veiculação da arte alheio às regras do mercado. A inviabilidade dessa presença, diz o artista, é um dos problemas fundamentais para o artista daquele período (década de 1970), referindo-se sobretudo à indagação dos espaços possíveis para a produção e atuação da arte.

De certa forma, a origem do termo arte pública e seus desdobramentos na história são construídos em concatenação com os processos de “commodificação da cultura”. O esgotamento da forma moderna, bem como das utopias da razão e da cidade pós-industrial, deu origem às novas considerações sobre a necessidade de reaproximação da arte à esfera da vida. Por uma atuação cada vez maior na matriz social dos espaços da cidade – e projetando-se mais decisivamente no espaço e na paisagem – tais ações se caracterizaram como contraponto aos processos vorazes do capital, contrárias à lógica mercadológica do confinamento dos museus e galerias, de institucionalização da arte e mercantilização do objeto artístico. As experiências norte-americanas acerca da site specificity e o projeto ambiental de Hélio Oiticica, a partir da década de 1960, instauram uma nova dimensão da experiência.

No Brasil, podemos localizar a demanda por uma escala ambiental em algumas obras do neoconcretismo, especialmente na produção de Oiticica, a partir dos núcleos e dos penetráveis. Sua obra conquista uma dimensão ambiental, capaz de impregnar-se do mundo em estreito diálogo com o espectador. Em suas análises sobre o parangolé, Oiticica formulou a chave do que seria uma arte ambiental, “eternamente móvel, transformável, que se estrutura pelo ato do espectador e o estático, que é também transformável a seu modo, dependendo do ambiente em que esteja participando como estrutura” e, por extensão, o próprio conceito tradicional de exposição muda, “de nada significa mais ‘expor’ tais peças (...), mas sim a criação de espaços estruturados, livres ao mesmo tempo à participação e invenção criativa do espectador”.

Exemplo da complexa inserção da arte na cidade e do imbricamento das esferas pública e privada se encontra nos espaços do Museu do Açude, instituição federal sediada na cidade do Rio de Janeiro. Desde 1999, o museu abriga uma coleção de arte contemporânea no entorno da sede, em meio à Floresta da Tijuca, intitulada "Espaço de Instalações Permanentes", “cujo perfil acompanha uma tendência internacional de transformar grandes espaços públicos em museus a céu aberto”. Da coleção fazem parte atualmente seis trabalhos de artistas brasileiros, a maioria desenvolvidos para aquele lugar.

A instalação, ali, de Magic Square nª 5 - De Luxe, obra de Hélio Oiticica pertencente ao acervo, materializa certa impossibilidade de sobrevivência do trabalho às impregnações da cidade, expressando a instabilidade da dinâmica social urbana e mesmo do território. A própria obra, concebida nos idos de 1970 para prefigurar como “arte pública”, em meio ao tecido urbano, foi deslocada do papel – como projeto – para se instalar em domínio territorial alheio à cidade. Ela mesma, enquanto projeto para o que o artista chamava de ”penetrável”, engendrava contradições da sociabilidade urbana e, assim, lidava com os limites entre público e privado. O desenho da espacialidade proposta compunha nove módulos de paredes que configuravam uma “micro-ambiência” pela decisão em se apoiar o único plano modular horizontal sobre dois módulos, gerando algo semelhante a um pórtico de entrada. O penetrável se configuraria, assim, numa espécie de intervalo espaço-temporal na cartografia urbana – quer nos seus percursos quer na paisagem da cidade. Dessa maneira, a obra se mostrava como instrumento capaz de detonar uma experiência inovadora no cotidiano da cidade, na qual o transeunte se transformaria em “ator” dessa nova espacialidade.

Esse índice de intimidade possibilita criar uma situação individualizada dentro de qualquer que seja a macro-escala do espaço que o contenha, e repõe o problema da “publicização” da obra: sua acessibilidade em termos concretos está longe de se formular como imaginou Oiticica; porém, tal distanciamento não se apresenta como único caminho possível para se criar uma relação identitária, relacional. A escala ambiental se mostra para além das qualidades físicas externas ao trabalho. Ao chegar à clareira onde o penetrável está instalado, nos deparamos com uma interrupção na paisagem idílica da Tijuca. O pórtico nos remete a entrada de um recinto arquitetônico, da ordem do doméstico – por mais vazado e expandido que seja o penetrável em suas laterais. O visitante percorreria um trajeto não sinalizado, impelido ora pela orientação da luz incidente no ambiente ora pela atração e repulsão provocada pela profusão de cores impressas nas paredes e suas diferentes texturas.

A série de penetráveis Magic Squares – concebidas por Oiticica em maquetes - nos remete ainda ao que o artista propunha como inversão da arquitetura: “quero que a estrutura arquitetônica recrie e incorpore o espaço real num espaço virtual, estético, e num tempo, que é também estético. Seria a tentativa de dar ao espaço real um tempo, uma vivência estética”. Para ele, “nas grandes pinturas e maquetes a relação arquitetônica mostra-se predominante e evidente, pelo fato de entrar aqui a escala humana”. A idéia de escala ainda permanece na versão n. 5 no Museu do Açude, porém sua lógica não é mais a de se surpreender com algo inusitado durante o caminhar na cidade; o sujeito, agora, percorre os espaços externos do museu “alarmado” de que algo estará prestes a se apresentar como intervalo na paisagem natural. O deslocamento da idéia original do Magic Square nº 5 para um espaço museológico – mesmo que aberto – modifica sua intencionalidade, não como arte pública no sentido estrito do termo, mas como ação suficientemente capaz de se impor numa escala metropolitana e de transformar a rotina citadina.

Tatiana Ferraz




Segundo a historiadora Otília Arantes, “a cidade passa a ser vista como uma rede de relações diacrônicas e sincrônicas, como lugar: corte estrutural de espaço e tempo, condensação simultânea de vários tempos e valores históricos”. Cf. ARANTES, Otília B. Fiori. Urbanismo em fim de linha e outros estudos sobre o colapso da modernização arquitetônica. São Paulo: Edusp, 2001, pág. 168.
Daniel Buren, “À força de descer à rua, poderá a arte finalmente nela subir?”. In DUARTE, Paulo Sergio. Daniel Buren: textos e entrevistas escolhidos, (1967-2000). Rio de Janeiro: Centro de Arte Hélio Oiticica, 1998, pp. 155-202.
KWON, Miwon. “Sitings of Public Art: Integration Versus Intervention”. In One Place After Another: site-specific art and locational identity. Cambridge, London: The MIT Press, 2002, pp. 56-99.
Ibidem.
O advento da comodificação da cultura foi teorizado por Otília Arantes como reflexo do esgotamento da ideologia moderna devido ao seu endurecimento e positivação, frutos das pressões do capital e do mercado e do recrudescimento do fetichismo. A partir dos anos 1960, a cultura atingiu um grau de funcionalidade nunca antes visto. Exemplo disso são os grandes museus, como a franquia Guggenheim, edificados numa “arquitetura da comunicação”, e não do espaço, caracterizados pela frivolidade e pelo esteticismo. Cf. ARANTES, Otília B. Fiori, op. cit.
A dinâmica urbana da metrópole paulistana dá vazão tanto à construção de um canteiro verde pertencente ao jardim privado de um edifício residencial estendido a uma parcela do passeio público como a uma moradia improvisada no espaço residual abaixo de uma ponte.
Até mesmo nossa grande avenida-estandarte, Av. Paulista – única do gênero a possuir um passeio público generoso nos seus quase 5 metros de largura. Canteiros ajardinados entre o caminho do pedestre e o leito carroçável exibem com orgulho o bom cultivo de flores – “acessíveis visualmente” como que numa grande vitrine em frente ao seus bem-feitores – ao lado de logomarcas de instituições patrocinadoras do espaço urbano.
RESENDE, José. “A ausência da escultura”, Malasartes, n. 3, 1976
Para uma apreciação sobre tais processos urbanos, cf. Otília B. Fiori Arantes, op. cit..
Termo cunhado pelo artista Hélio Oiticica.
OITICICA, Hélio. Aspiro ao grande labirinto. Rio de Janeiro: Rocco, 1986, pág. 79.
O museu, pertencente ao complexo federal dos Museus Castro Maya, está instalado nos espaços da antiga residência do industrial e patrono das artes Raymundo Ottoni de Castro Maya, implantada em meio à mata virgem, num parque de 150.000 m2.
Cf. www.museuscastromaya.com.br/acude
A diferenciação desse plano em relação ao demais também era marcada pela escolha de materiais; este era o único plano translúcido, feito com acrílico em tom azul crepuscular.
OITICICA, Hélio, op. cit., pág. 49.
Ibidem.