GRIFFITI OU A TRANSGRESSÃO DOMESTICADA, por Guy Amado
GRIFFITI OU A TRANSGRESSÃO DOMESTICADA
O graffiti já há muito se consolidou como linguagem visual absolutamente imiscuída no panorama metropolitano, tendo mesmo se tornado um elemento indissociado deste contexto. Muros, prédios ou monumentos em todo canto carregam, em soluções e expressões diversas, a miríade de imagens, signos gráficos e códigos que caracteriza este sistema, sempre em acirrada competição com a profusão de estímulos visuais que conformam a experiência de se viver em grandes cidades.
Sobre o amplo espectro de manifestações visuais abarcadas pelo graffiti – daquelas vinculadas à afirmação identitária de guetos a experimentações gráficas em escala urbana - paira, no entanto, um elemento aglutinador e determinante para os anseios geradores desta modalidade de expressão desde seus primórdios: o impulso central calcado na idéia de transgressão, força motriz para sua prática e disseminação. Essa orientação se vê em larga medida tributária da idéia geral do graffiti como uma atividade simbólica praticada por segmentos ditos "periféricos" da sociedade, geralmente representados no registro do estereótipo [vândalos, desocupados]. Sob essa perspectiva, estas manifestações configurar-se-iam como transgressão de um código cultural que é estranho ou inacessível aos protagonistas da ação, que vêem nessa atividade uma forma de inscrever seus próprios signos na cidade. Esta pulsão contraveniente - ainda que atualmente já aponte alguns sinais de desgaste ou obsolescência – se consumaria, desse modo, como um canal de "resposta" daqueles segmentos sociais, sendo aplicada diretamente sobre seu suporte mais natural, a paisagem urbana.
Isto posto em pauta, chama a atenção, portanto, o recente - e gradualmente ostensivo - fenômeno de cooptação do graffiti por mecanismos da esfera institucional e de mainstream que vêm tendo lugar; há vários indícios que explicitam esta movimentação. Uma das facetas deste processo é percebida, por exemplo, quando esta linguagem é associada a produtos tão díspares e improváveis quanto marcas de cervejas [campanhas publicitárias em outdoors e painéis que tomam toda uma face de edifícios, executados em graffiti, supostamente visando assim uma “maior aproximação junto ao público jovem”] e sofisticadas grifes de jeans [nesse caso literalmente aderido ao produto final como "diferencial cool"]. O underground tem então seu código estético próprio remanejado e re-trabalhado pela indústria publicitária, num peculiar processo de apropriação do subversivo.
De outra natureza, mas ainda mais significativo e emblemático dessa nova dinâmica foi um caso observado há coisa de um ano, quando uma agência bancária locada à Av. Paulista protagonizou uma demonstração cabal e inequívoca desta tendência, ao encomendar a grafiteiros a “redecoração” de seu prédio. No espírito de uma recente tradição – fundada pelo mesmo banco - de investir ostensivamente no visual externo de sua sede [sobretudo por ocasião das festividades natalinas], a instituição teve em pouco tempo toda a sua fachada coberta por coloridas e bem-comportadas intervenções. Resultou então uma pintura-grafitagem efetuada num registro ainda próximo ao do graffiti tradicional, mas de feições anódinas e transparecendo franca artificialidade, em sua fisionomia excessivamente rebuscada, denotando um sensível descompasso em relação à visceralidade do código original da linguagem, caracteristicamente mais "seco" e despojado [em muito devido ao caráter fugaz de sua execução, muitas vezes levada a cabo em ações furtivas]. Compreensível: afinal, o sofisticado cliente daquele banco de perfil exclusivo poderia rever seus conceitos sobre a instituição, caso se sentisse em alguma medida “agredido” por aqueles grafismos. Para além da superfície, no entanto, cabe aqui notar o peculiar processo de domesticação sofrido por uma linguagem essencialmente imbuída de um espírito transgressor - que se efetivaria sobretudo quando “proibida”, ou minimamente não desejada -, agora travestida em plataforma institucional, servindo aos interesses de nada menos que uma corporação financeira internacional.
Em medida diversa de, digamos, teor ideológico, outra destas curiosas cooptações recentes do graffiti a ser comentada é o caso da ambiciosa empreitada “Modernistas na Paulista”, instalada em tradicional reduto paulistano de grafiteiros, o túnel ao final da mesma avenida. A iniciativa, capitaneada pela ONG/projeto Revolucionarte [fruto de parceria entre a secretaria de subprefeituras da capital e os CEUs] e pretensamente visando a “profissionalização de pichadores e grafiteiros[1]” via aprendizagem da “pintura artística de aerografia” [ou graffiti executado com aerógrafo], adota como premissa “utilizar espaços públicos como telas de pintura” e de quebra constituir assim “formas de preservação de patrimônio público contra a depredação”[!].
Sem me debruçar mais detidamente sobre a eventual procedência dessas declarações, basta dizer que esta auto-denominada “homenagem aos artistas do movimento modernista no Brasil”, consiste exatamente na transposição, para muros - à maneira de fac-símiles agigantados, distorcidos e algo inusitados - de obras emblemáticas de renomados personagens daquela seara, como Portinari, Tarsila, Segall e Di Cavalcanti. No âmago do projeto parece estar o esforço em se levar compulsoriamente “a arte” para as ruas [e é sintomático, embora não surpreendente, que a escolha do repertório tenha se atido justamente à produção dita “modernista” brasileira, mas essa é outra discussão]; causa que, levianamente amparada numa espécie de senso comum, parece prescindir de qualquer instância de julgamento ético ou moral, dada a “nobreza de princípios” que traz a priori em seu bojo. Algo como “se a massa não pode ir ao museu, levamos o museu até a massa”.
Abstraídos o intuito edificante e o grau de encantamento rasteiro que este projeto pode de fato suscitar frente a uma boa parcela da população [“agora sim isso aqui ficou bonito”, confessou-me um taxista], cabe uma reflexão sobre a real pertinência em se alimentar iniciativas deste perfil. Afinal, não é preciso muito esforço para entrever, para além das alegadas boas intenções da empreitada, uma faceta algo perversa no que se refere às instâncias veladas de incorporação e subseqüente deturpação da linguagem-base utilizada nos propósitos do projeto [pois agora certamente não se trata mais de graffiti; uma categorização possível para o híbrido resultado final se aproximaria mais da pintura mural]. Como se fosse dito aos grafiteiros, “vejam, trabalhando nesse código específico vocês terão sua produção não apenas legitimada oficialmente como efetivamente apreciada, podendo até, quem sabe, ser vistos realmente como artistas” – não importando que ao final a coisa se configure num híbrido. Em outras palavras, como se para o graffiti ser socialmente “aceito” fosse preciso que se dobrasse a determinados preceitos e convenções – o que implica bater de chofre com suas próprias premissas. Ao fim das contas acerta-se assim dois coelhos de uma só cajadada, aliando-se um discurso de inclusão social [por meio do aprendizado da técnica pelos jovens participantes e o aceno a uma suposta perspectiva profissionalizante] a uma iniciativa – presente ainda em outros pontos da capital paulista - que parece em boa medida se articular ao projeto de “deselitização e democratização da arte” tão ao gosto da política de tons populistas adotada pelo atual governo para a arte e a cultura no país.
Há mais de trinta anos, em 1970, Cildo Meireles realizava sua pontual série Inserções em circuitos ideológicos, onde adotava como mote estratégico a infiltração nas engrenagens do sistema para então, valendo-se do fluxo natural de circulação deste mesmo sistema, produzir um deslocamento simbólico e atingir um maior grau de efetiva funcionalidade e contundência para suas propostas [que buscavam insuflar um sentimento de resistência ou ao menos incitar a reflexão acerca do contexto de opressão política que vigorava à época]. Se contraposto a este exemplo, as instâncias de cooptação por forças de mercado – quando não políticas - por que vem passando o graffiti poderiam ser percebidas como uma versão distorcida da mesma estratégia, agora trabalhada numa polaridade inversa: o mainstream vê numa expressão relativamente marginalizada uma qualidade latente para a promoção de seu leque de interesses – como o próprio apelo de uma transgressão potencialmente manipulável - e desenvolve mecanismos para a absorver e explorar – despindo-a neste processo de sua essência. Se o procedimento não chega a ser de todo novo, a dimensão simbólica agora envolvida pontua tragicamente a lógica inexorável do capital, que tudo engole. Que venha, pois, o griffiti – a "subversão com grife".
Guy Amado