STELARC: PRÓTESES ROBÓTICAS E O CORPO VAZIO, por Daniela Labra
STELARC: PRÓTESES ROBÓTICAS E O CORPO VAZIO
No século 20, a reestruturação de paradigmas da ciência, da filosofia e mudanças nas relações políticas e financeiras, ajudaram a construir o pensamento ocidental moderno e redefinir as suas bases sociais, tendo na psicanálise de Freud, na automatização dos serviços, na tecnologização e na explosão dos meios de comunicação de massa, elementos que ajudaram a problematizar, entre muitos outros aspectos, a relação do homem com seu próprio corpo. Hoje, não há mais tabus para o uso de processos modificadores da corporalidade humana, e recorre-se com naturalidade a cirurgias reparadoras, fármacos poderosos, próteses, exames de DNA e photoshops, para que a nossa imperfeita fisicalidade natural não seja mais empecilho em nossas vidas e relações. O silicone e a tintura de cabelo parecem já fazer parte da nossa Natureza reformada.
Como as mudanças do mundo e seu reflexo na vida privada balançam também os alicerces da produção cultural, é lógico que a produção artística sofra influência de seu entorno. A problematização do corpo humano nas artes plásticas surge primeiramente, para alguns autores, na pintura cubista Les Demoiselles D'Avignon (1907) de Picasso, que retratou moças num desenho fragmentado e absolutamente fora dos padrões dos retratos acadêmicos feitos até então. Após anos de experiências vanguardistas na Europa, e depois com a Nova Arte norte-americana (déc.60), será apenas no início dos anos 70, nos Estados Unidos, que o corpo se tornará de fato o objeto, tema e suporte para a construção de uma obra de arte, servindo à experimentação e sugerindo desafios não apenas para o artista, mas também para o público, instituições, teóricos e curadores.
Na década de setenta, alguns artistas imbuídos pelo espírito da Live Art (Arte ao Vivo), que havia surgido em 1959 com os happenings de Allan Kaprow[1], sentiram a necessidade de reavaliar a vitalidade do fazer artístico individual dentro de um sistema que vinha exigindo cada vez mais um envolvimento estreito com o mercado. Desse modo surge, apoiada em preceitos da Arte Conceitual, a Performance Art, que via no corpo um elemento para a elaboração de uma outra espécie de obra não-comercializável, a qual evocava a arte através de experiências imateriais constituídas de tempo, espaço e sensações, o que afetava muito a relação artista-espectador.
As ações que tinham marcadamente o corpo do artista como suporte e objeto foram denominadas Body Art, e alguns artistas criavam situações em tempo real diante de um público que deveria perceber a mensagem, muitas vezes política, de determinada ação, como sendo uma expriência estética. O belo estava contido no conceito da performance e no estranhamento que ela causava. Alguns nomes que se destacaram nesse período foram, entre muitos outros, Joseph Beuys, Chris Burden, Dennis Oppenheim, Marina Abramovich, Ana Mendieta e Stelarc, considerado o expoente máximo do chamado "body-art cibernético".
O australiano Stelios Arcadiou, ou Stelarc, iniciou sua carreira em 1968, quando construiu os primeiros ambientes de imersão virtual da história da arte: uns cubículos chamados "Compartimentos Sensoriais" nos quais o espectador entrava e, usando um capacete com lentes especiais que dividiam o espaço num labirinto de imagens sobrepostas, era atacado por luzes, movimentos e sons.[2] Alguns anos mais tarde o performer iria celebrizar-se por realizar suspensões com ganchos de ferro, em público e ao ar livre. Sua intenção sempre foi testar limites do corpo, e numa de suas ações mais impactantes, realizada numa galeria de Tóquio em 1979, Stelarc passou três dias imobilizado entre duas grandes tábuas suspensas, com as pálpebras e a boca costurados com linha cirúrgica. Após a experiência, no entanto, confessou que seu maior problema não foi alguma dor, e sim a dificuldade que teve para bocejar, pois isso não estava previsto acontecer.
Sua carreira, contudo, não é notável apenas por ações que podem ser entendidas como escatológicas. Stelarc, que hoje é Pesquisador Titular do Performance Arts Digital Research Unit da The Nottingham Trent University, em Nottingham, UK, partiu da body art conceitual para especializar-se no desenvolvimento de sistemas híbridos com instrumentos cirúrgicos, próteses e computadores que exploram interfaces diversas com o corpo. Dentre seus robôs protéticos estão Terceira Mão, Braço Virtual, Corpo Virtual e Escultura Estomacal (Stomach Sculpture). Enquanto as primeiras criações citadas são alongamentos mecânicos externos ao corpo, a última consiste numa prótese interna, funcionando como uma espécie de endoscopia com luz colorida e considerada poética, com a qual o artista sugere a inserção de um objeto de arte dentro do corpo, tornando este o espaço da arte, ao invés de uma instituição ou um espaço público, e assim discutir a relação de propriedade do objeto artístico e do corpo enquanto compartimento que contém arte.
Sua pesquisa que explora o interior do corpo humano e o torna público inicia-se em 1970 com o projeto Amplified Body (Corpo Amplificado). Primeiro, Stelarc filmou seu esôfago e 2 metros de seus intestinos para entender o funcionamento do seu corpo, numa época em que a tecnologia das microcâmeras era incipiente e restrita a medicina. Em seguida, começou a desenvolver aparatos que captassem e amplificassem seus sons corporais mais internos, como o correr de fluídos, o ranger dos ossos e cartilagens, a deglutição e a respiração. Assim, por 24 anos o artista-pesquisador se dedicou a aprimorar uma espécie de multiprótese-armadura gigante para ser “vestida”, e que reage automaticamente a cada movimento do performer emitindo, por amplificadores, ruídos estrondosos ou agudos, luzes e batimentos graves, numa espécie de concerto mecânico movido por descargas corpóreas. Para a demonstração, Stelarc surge nu, coberto de fios e ferros, com cabos ligados a computadores e eletrotransmissores de todo o tipo.
No entanto, seu interesse por acoplar apetrechos tecnológicos ao corpo e discutir a superação dos limites físicos, vem de sua teoria de que o corpo humano estaria obsoleto em suas funções. Para salvá-lo da decrepitude, a única saída seria a simbiose humano-máquina: "O corpo não é nem muito eficiente nem muito durável. A falta de um desenho modular para o corpo e o seu sistema imunológico hiperativo dificultam a reposição de órgãos em mal-funcionamento. (...) É somente quando o corpo atenta para esta sua posição é que ele pode mapear uma estratégia pós-evolutiva. Não é mais uma questão de perpetuar a espécie humana pela reprodução, mas sim de reforçar o intercurso macho-fêmea pela interface humano-máquina. O CORPO É OBSOLETO. Nós estamos no final da filosofia e da fisiologia humana. O pensamento humano recua para o passado humano."[3]
O cerne de sua pesquisa, portanto, está além do âmbito estético ou puramente tecnológico, pois é também filosófico e desesperadamente político contra a própria Natureza do mundo. Enfrentando os limites do corpo humano, Stelarc, como um Dom Quixote científico pós-moderno, enfrenta de modo frio questões complexas e genéricas como a morte, a decomposição orgânica e a extinção da raça humana sobre a terra. Stelarc entende o cérebro como a parte mais poderosa e sofisticada do corpo, e defende a mutação física sintética para que possamos nos tornar fisicamente melhores, sem sensacionalismo nem sadomasoquismo para televisão - ao contrário do que uma reflexão rasteira e mais conservadora poderia supor.
Daniela Labra