POLÍTICA CULTURAL NO MÉXICO, por Ana Elena Mallet
Política cultural no México: o governo foxista ou o reino dos elefantes brancos
No México, a cada seis anos, o mundo começa de novo. Cada mudança de governo supõe um movimento drástico. Cada partido político ou personagem que chega ao poder decide, invariavelmente, que os programas e feitos de seu antecessor não servem. Neste país, poucas coisas têm continuidade. E, entre as que têm, está a tradição que obriga a, uma vez alcançado o poder, legitimá-lo mediante a desqualificação do trabalho de quem antes ocupava o cargo. Assim, jogam-se fora projetos para substituí-los por outros que, por melhores ou piores que pudessem resultar, sofrerão a fatalidade de não ser nunca cabalmente concluídos.
Se esta situação se dá na maioria das instituições de governo mexicanas, é de se supor que na área cultural a continuidade seja um conceito desconhecido dos funcionários responsáveis. Como bem diz a paráfrase popular de um slogan partidário, parece que estamos destinados a mudar para poder permanecer iguais.
Até julho de 2000, o México esteve governado pelo Partido Revolucionário Institucional (PRI). Para o PRI, a cultura foi uma ferramenta para a instrumentalização de seu projeto de nação. As manifestações culturais ajudaram a formar a identidade nacional de um povo mestiço e, ao mesmo tempo, a promover no exterior os programas políticos do partido. Cabe mencionar o exemplo, relativamente recente e de grande impacto, da exposição itinerante Mexico: Esplendores de 30 siglos, que serviu como instrumento de propaganda para a assinatura do Tratado de Livre Comércio com os Estados Unidos e o Canadá.
Depois de 70 anos no poder, o PRI perdeu as eleições de 2000 e o país lançou-se numa tentativa pela democracia: o Partido Ação Nacional (PAN), representado por Vicente Fox, ex-diretor da Coca Cola no México, obtinha a presidência da república.
Com a mudança, o caos chegou a muitas áreas e a desolação, à cultura. Num país presidencialista por excelência, onde os interesses do presidente são os interesses da nação, Vicente Fox – empresário provinciano e conservador com uma mínima educação ou curiosidade cultural – refletiu em sua política o interesse e o conhecimento que tinha por esses temas, ou seja, nenhum.
É, sem dúvida, ilustrativa a frase que pronunciou certa vez o mandatário, quando lhe perguntaram qual era a sua idéia de cultura: “É ver passar as nuvens no meu rancho”, assinalou. Com essa idéia em mente –se tivermos a generosidade de conceder a sua resposta o grau de idéia – elegeu a presidente do Consejo Nacional para la Cultura y las Artes (CONACULTA), órgão que seria, digamos, equivalente a um ministério. Sara Guadalupe Bermúdez foi nomeada ante o assombro de toda a comunidade cultural do país. Antes de ser quem é, Sari – como prefere ser chamada – lia notícias num canal cultural 10 anos atrás e carecia da preparação mínima indispensável – não digamos como agente cultural mas, para começar, como funcionária de governo – para aceitar uma responsabilidade de tal envergadura.
A chegada da Sra. Bermúdez ao poder cultural se deu em meio a falsas informações e enganos. Fox prometera que, em cada posto de seu gabinete, estaria o profissional mais capacitado e contratou times de headhunters para ajudá-lo nas escolhas. Na área cultural, os maiores intelectuais foram entrevistados, muitos deles com idéias –às vezes até projetos estruturados– de como se deveria gerir a cultura no país. Nunca se soube como tal processo de busca e análise do candidato idôneo pôde resultar na nomeação da Sra. Bermúdez. O que se sabe é que Sari apareceu como autora da apologia, com deslizes de hagiografia, Martha - La fuerza del espíritu. O livro, tendo Martha Sahagún – agora Sahagún de Fox – como protagonista, narra uma façanha de natureza épica: “o nascimento de um ideal para mudar a nação”.
No início, a nova administração do CONACULTA prometeu diálogo constante, a criação de equipes de trabalho formadas por experts e, sobretudo, escutar os profissionais de cada área. Insistiu-se duramente em “cidadanizar” a cultura, um termo que hoje, quase quatro anos depois, não sabemos a quê quis fazer referência. Como afirmou, então, o crítico Olivier Debroise:
“Incapazes de levantar esse novo projeto, de definir um rumo claro, de distinguir-se ideologicamente da administração anterior, as novas autoridades optaram por uma política de avestruz, que só favoreceu o crescimento de rumores. As tão ponderadas "consultas", os prometidos ‘conselhos’, converteram-se em obscuros concílios (como o misterioso Consejo del Instituto Nacional de Bellas Artes, de que ninguém ouviu falar, mas que aparentemente toma decisões de primeira ordem). Fora as declarações puramente retóricas, além de informais e muitas vezes torpes, nunca se delineou a política cultural da ‘Mudança’. Nesse vazio, pôs-se mais atenção do que a devida nas nomeações para a direção dos diversos recintos e agências culturais, não tanto porque os nomes importassem, mas por serem os únicos demarcadores visíveis do que se anunciava.”[1]
Assim, em muitos museus e institutos, diretores que tinham demonstrado suas faculdades profissionais na administração anterior foram submetidos a diversas pressões para ajustarem seus programas aos compromissos da Senhora que, mais do que uma mudança, mostrava por instantes a possibilidade de uma regressão a um dos piores momentos do priísmo, em que a política cultural do Estado chegou a converter-se num instrumento a serviço dos caprichos dos familiares do presidente.[2]
Essas ridículas pressões, assim como contínuos cortes nos orçamentos, minaram a paciência dos funcionários, obrigando-os em muitos casos a renunciar. Temerosa de perder os privilégios de um poder que talvez não tenha acariciado nem em sonhos e reconhecendo-se ilegítima no cargo – até, de maneira involuntária, numa suscetibilidade desmedida a qualquer aceno de crítica de crítica –, a nova administração do CONACULTA foi se revelando não só surda às reclamações e petições da comunidade, mas também – e sobretudo – intolerante. O futuro cultural do México estava condenado.
O CONACULTA, com seus sucessivos erros, sua soberba e o terror às críticas da comunidade, empenhou-se em criar uma suposta “política cultural” voltada para o exterior. Em 2002, financiou a exposição Mexico City: An Exhibition About The Exchange Rate of Bodies and Values, curada pelo alemão Klaus Biesenbach, apresentada em Nova York e Berlim e que, mais que posicionar os artistas contemporâneos mexicanos no circuito internacional, serviu para gerar, em nível mundial, uma idéia da cidade do México como a capital internacional do crime e da corrupção. Em 2003, o CONACULTA financiou a incursão de Gabriel Orozco como curador da Bienal de Veneza, pagou os gastos de embalagem, seguro e transporte e as passagens aéreas de todos os artistas que Orozco escolheu para sua mostra. Em 2005, o México será o convidado oficial da ARCO, após uma doação de quase US$ 2.000.000 e uma “curiosa” seleção de galerias e instituições participantes, feita por delegados comissionados pelo CONACULTA.
Enquanto isso, na cidade do México, museus estabelecidos e com prestígio internacional, como o Museo Nacional de Arte, o Tamayo ou o Carrillo Gil – este último, como muitos outros, carente de legislação para captar apoio privado –, morrem de inanição, com orçamentos de US$ 150.000 para realizar até 14 projetos internacionais ao ano, submetidos a agressivos cortes, este ano, 2004, de até 30%. Para além da capital do país, a administração Fox empenhou-se em inundar a província com gigantescos centros culturais, financiados pelo governo federal e promovidos pelo CONACULTA, como se educar um povo fosse questão de construir edificações, em vez de desenhar de maneira calculada e inteligente programas de fomento ao consumo cultural. Até o final dos seis anos de mandato, calcula-se que teremos mais sete desses centros, um dos quais será construído em León, Guanajuato, terra natal de Vicente Fox, pelo renomado arquiteto IM Pei – autor da pirâmide de cristal do Louvre – com um custo de US$ 100.000.000. Resta saber se o próximo governo estará disposto a manter esses enormes elefantes brancos.
O maior projeto desta administração é a nova Biblioteca Nacional. O CONACULTA achou pouca coisa a biblioteca nacional existente e decidiu lançar uma convocatória internacional para escolher o arquiteto que construirá o monumento máximo ao ego foxista. Desfilaram os grandes nomes da arquitetura contemporânea mundial, mas foi o mexicano Alberto Kalach e sua equipe quem ganhou o concurso. Um edifício funcional com um belíssimo jardim botânico e amplas salas de leitura é a proposta que deve estar pronta até o final de 2006, após um gasto de mais de US$ 400.000.000. Esse gesto faraônico será edificado no coração de um país com uma média de leitura por habitante de meio livro ao ano e já superpovoado de monumentos arquitetônicos inviáveis, construídos para satisfazer a vaidade dos mandatários da vez e seus anseios pela eternidade.
Ana Elena Mallet (México, 1971) é curadora, escritora e crítica de arte.