ENTRE A ESPECIFICIDADE E A MOBILIDADE DO LUGAR, por Regina Melim
ENTRE A ESPECIFICIDADE E A MOBILIDADE DO LUGAR
Pensar a existência de um trabalho para lugares específicos (site specific) a partir de uma perspectiva de distensão é pensar nas suas ramificações, derivações e atualizações. Sobretudo no que refere às relações que são estabelecidas ao longo do processo construtivo de um procedimento como este. Nas “relações de pertencimento”, conforme sugere Miwon Kwon[1], isto ocorre a partir de rastreamentos que vão se constituindo em acervo informacional, composto por fotografias, desenhos, textos escritos, registros de sons, sensações, imagens em movimento etc. Desdobra-se, também, por extensões que surgem nas relações que se instauram entre o espectador e a obra, consubstanciando os contatos como matéria processual ou de agenciamento contínuo.
Especificidades, portanto, que não são mais da ordem única dos elementos físicos que constituem o lugar, tais como comprimento, profundidade, altura e textura de salas; escala e proporção de praças, edifícios ou locais públicos diversos, mas acrescidas de um complexo sistema formado por relações sociais, políticas e culturais, colocando à mostra uma série de elementos ocultos desses lugares escolhidos. Um inventário que, ao longo das últimas décadas e cada vez mais, tem sido incorporado como elemento constitutivo da obra. E aquilo que inicialmente se constituía como uma fonte primária, atividade de bastidor, aparentemente opositora, passa a existir como uma ação contígua e complementar.
Nesse sentido, um outro conceito, emergido no final dos anos 60, simultaneamente às práticas em site specific, é incluído e atualizado. Trata-se do conceito de nonsite proposto e praticado por Robert Smithson, sinalizado como experiência primeira que trazia à tona uma forma híbrida e desterritorializada da noção de site specific[2].
Tais distensões, revistas dessa forma, passam a inserir uma série de procedimentos de naturezas diversas, frente a uma sucessão de recusas às múltiplas exigências e intransigências das primeiras ações realizadas em/para lugares específicos, via de regra, baseadas num modelo sedentário. Caracterizadas muito mais como ações temporárias, tais práticas começam a lidar com a noção de lugar como um espaço de performação e experimentação, insistindo na sua expansão, no seu deslocamento, acreditando na circulação como modo de propagação e distensão de uma obra. Re-inventando-a como uma prática nômade que aposta no que é contingente e móvel.
Envolvidos e apostando nessa perspectiva de especificidade e mobilidade – mediação análoga, no dizer de Miwon Kwon, ao “estar fora do lugar com pontualidade e precisão” –, muitos artistas contemporâneos tem submetido e orientado suas práticas para lugares específicos.
É o caso, por exemplo, de Jorge Menna Barreto, que defende em suas proposições artísticas a prática do site specific como um exercício de pertencimento da obra em relação ao seu contexto. O lugar, na obra deste artista, não aparece evocado apenas como o receptor dos trabalhos que ali se instalam, mas como um agente de co-autoria. Seu foco de interesse está direcionado para tudo aquilo que cerca e permeia um procedimento; em especial, as relações que são motivadas pelo desejo de ampliar essa superfície de aderência que vai se formando não somente entre o lugar e a obra, mas nas relações que são desdobradas e estendidas ao espectador. Como Minha terra, sua terra (1999-2001), em que cada participante leva para casa uma parte da obra, um punhado de terra que, ao ser deslocado, afirma seu significado como exterioridade coletiva e processual.
Outro exemplo que se põe à mostra, contemplando grande parte dessas qualidades, é a proposição Cabana (2003), apresentada por Edmilson Vasconcelos. Como uma espécie de amálgama que abrange espaço público, homeless e escultura com materialidade tecno-pop, o projeto Cabana propõe como obra a ocupação provisória de um lugar a partir da instalação de uma arquitetura móvel, dotada de soluções poético-sociais, mesmo que amorais. Lugares públicos são escolhidos pelo artista em suas deambulações como espaços de performação e nomeados conceitualmente de “vácuos urbanos”. São intervalos na estrutura das cidades, na maioria das vezes provisórios, conferidos de características que lhes são indissociáveis, como semi-proteção da natureza dos ventos, da chuva, do sol etc., que vão sendo mapeados e postos como obras por meio de fotografias, desenhos e diagramas.
Um outro exemplo dessas atuações é o que propõe Teresa Siewert a partir da noção de especificidade do lugar caracterizado como um permanente desafio à sua suposta inocência. Assim, Todos os lugares são suspeitos (2003), série de adesivos que são postos em circulação, ocupa lugares institucionais não somente em termos físicos e espaciais, mas como estrutura que enfatiza e denuncia o hermetismo idealista de grande parte dos espaços expositivos.
Na distensão dessas operações orientadas para lugares específicos, Alex Cabral e Jorge Menna Barreto operam “relações de pertencimento” como relações de afetos. Lounge é um lugar que não existe (2004) e Sorria, você não está sendo filmado (2003) são frases em adesivo enviadas por Alex Cabral para os seus amigos. Pertencimentos que demarcam uma especificidade relacional afetiva como as que são vistas também em Jorge Menna Barreto, em situações singulares conceituadas pelo artista como person-specific, endereçadas e nomeadas cada uma delas por seus nomes próprios: Marcos (2002), Salete (2002) e mais recentemente, Enrico (2003). Sensibilidades relacionais que fundam encontros, descobertas e intimidades passageiras em compromissos de longa duração. Especificidades móveis que vão se indiferenciando na seqüência dos lugares que circulamos e habitamos.
[1] KWON, Miwon. One Place After Another: Notes on Site Specificity. October 80, spring 1997, pp. 85-110.
[2] MEYER, James. The Functional Site: or, The Transformation of Site Specificity In: SUDERBURG, Erika. Space, Site, Intervention: Situating Installation Art. Mineapolis: University of minesota press, 2000, pp. 23-37.