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ARRANJOS E CIRCUITOS, por Paulo Reis

 

Nos pequenos cartões coloridos distribuídos aos carros parados no sinal vermelho e também às pessoas que esperam para atravessar a rua podia-se ler “Av. Borges de Medeiros, nº294. Erga o olhar”, “Estrada João de Oliveira Remião, nº1347. Vá com tempo”, ou ainda, entre outros, “Rua Honorio Silveira Dias, nº625, às 18:00 e 18:15 h. Todos os dias. Sugiro fechar os olhos”. Este trabalho de Cláudia Zanatta[1] (Panfletos, 2003) opera uma circunscrição de lugares na cidade de Porto Alegre. Circunscrição que pede um compromisso geográfico e temporal das pessoas – há um lugar, uma indicação de horário e (a sugestão de) um acontecimento. Uma demarcação crítica/afetiva que, creio eu, distancia-se da constituição dos “circuitos ideológicos”, por exemplo, como a pensou em alguns de seus trabalhos o artista Cildo Meireles, ou das Situações, de Artur Barrio, mas que certamente não está descolada, em sua poética, de um traço político ou crítico, em relação à maneira cega e condicionada que ocupamos (ou abandonamos) nossos espaços públicos.

         Penso que precisamos, sempre, experimentar novos olhares para perceber uma boa parte da produção artística da atualidade, ao mesmo tempo que jogar outro chão conceitual para a história da arte recente. Muito da produção artística mais comprometida e crítica de nossos dias tem sido, com toda a razão, cotejada com a produção artística brasileira política dos anos 1960 e 1970. A essa sincronia entre os anos 60/70 e os anos 2000, eu proponho, como um exercício, uma diacronia (não fechada e certamente não como um marco de “origem”) entre os anos 1980, 1990 e os anos 2000.

Os anos 80 trazem uma mudança política e social sem precedentes. Uma nova configuração política vai transformar uma velha maneira de agir e ver criticamente a realidade. Não estou falando do “fim das utopias” ou de um canhestro “fim da história”, mas de uma re-acomodação do agir político, mais informado pelas/nas micro-politicas (Foucault) que pelos/nos antigos grandes partidos políticos e mais preocupado com a “revolução molecular” (Guattari) do que com a grande revolução proletária.

O processo de abertura política iniciado ainda nas entranhas duras do regime militar do Brasil desencadeia também aqui uma transformação sem igual. Houve uma tomada do espaço público no país, visto não mais apenas como espaço de luta e confronto contra milícias ou grupos fascistas de direita, mas como o espaço que vinha sendo conquistado e construído pelos grandes comícios e sensivelmente ampliado no campo da expressão cultural com o fim da censura. Espaço público compreendido também como o espaço institucional (artístico, inclusive) e sua necessária ocupação.

Duas propostas artísticas são sintomáticas desse momento político-cultural no Brasil - as proposições do grupo 3NÓS3 e as do evento/exposição Moto Contínuo[2]. Ambos, o primeiro em São Paulo e o segundo em Curitiba, estabeleceram sua poética coletiva no trânsito entre espaços públicos, sejam eles os espaços da rua ou os espaços da galeria de arte ou museu, e aí investindo sua singularidade. Havia a vontade, crítica sem dúvida, de uma retomada daqueles espaços. As “interversões” em São Paulo do grupo 3NÓS3 ocuparam monumentos públicos (Ensacamento – interversão urbana/1979), galeria de arte (X-Galeria – interversão urbana/1979), a fachada da Pinacoteca de São Paulo (3NÓS3 – 3 anos – interversão urbana/1982), passando por outros locais públicos (Av. Paulista, calçada do Teatro Municipal), fazendo assim uma amarração entre aqueles espaços que estavam sendo “reconquistados” pela sociedade civil.

O evento/exposição Moto Contínuo, em sua estratégia, fará uma operação artística semelhante. Sua exposição (1983) acontece numa galeria pública ao mesmo tempo que nas páginas do encarte de um jornal de grande circulação, além da ocupação e proposições abertas em locais da cidade de Curitiba. Uma rede de atuação estabelece-se entre a galeria de arte, a cidade e a malha de circulação do jornal. No final de sua exposição, alguns trabalhos produzidos na rua foram levados para a galeria e fez-se o trânsito vivencial entre os espaços institucionais e os espaços da cidade.

Nos anos 80 também constata-se a emergência de um outro sujeito artístico. Não falamos naquele sujeito hedonista, unicamente ligado a um indefinido “prazer de pintar”, mas àquele que investe diferentemente sua subjetividade no mundo. Um sujeito que, sintonizado com a abertura política no Brasil, reúne crítica e afetividade, ao mesmo tempo, em seu trabalho. Um sujeito que também é político, entre novas discussões culturais e de gênero, como tão sistematicamente seria discutido nos anos 80 e 90. O eu lírico torna-se um sujeito da história; basta pensarmos nas poéticas de final dos anos 80 e começo dos 90 dos artistas Leonilson e Jac Leirner.

Alguns trabalhos que operam diretamente no espaço da instituição da arte e no trânsito entre o espaço da rua, da cidade e os da arte são sintomas de um fazer artístico da contemporaneidade que, certamente de uma maneira não exclusiva, estão atuando num campo de pesquisas configurado pelos anos 80.

Um museu que vai para o mundo é o projeto do Museu MUSEU, em fase de implantação e que vem sendo realizado desde 2001, de Mabe Bethonico. O projeto é uma proposição em constante elaboração, que abre-se para diversas frentes possíveis em sua constituição digital (internet). A instituição criada por Mabe abriga o acervo de recortes de jornal do “Colecionador” (que tem na artista sua conservadora), uma coleção de sons da cidade, bilhetes, arqueologia da letra, entre outros acervos, vindos de pessoas e situações as mais diversas. Ao constituir-se como uma instituição museológica criada dentro/gerada no âmbito de uma poética pessoal, o Museu MUSEU abre-se então ao real (visto talvez como uma reunião de muitas “coleções”) e suas maquinações (acesso, pesquisa, fruição, desencadeamento de novas coleções). O sujeito da artista, ao se constituir como um agenciador, parte do museu criado nos espaços da malha virtual para uma perspectiva pessoal de ação.

Num processo que pode ser dito, no contexto deste pequeno artigo, como quase complementar ao de Mabe Bethonico, é realizado o trabalho de Carla Zaccagnini, Restauro (Almeida Júnior), para o Centro Cultural São Paulo (2001). Neste caso a artista irá realizar uma intervenção numa instituição real já existente (Pinacoteca Municipal de São Paulo). A singularidade da artista irá ter como acionamento o desencadear do restauro de uma obra do artista Almeida Júnior, daquele acervo público. Ao inscrever sua subjetividade na organização da instituição oficial, uma obra do patrimônio seria restaurada. Há um movimento entre espaços públicos e espaços da subjetividade - a instituição da arte faz parte de seu processo e o trabalho artístico abre-se e alimenta-se nestes interstícios. A ocupação do espaço público da arte desencadeia uma pequena revolução (molecular?) – a pesquisa visual da artista resgata, para todos, uma obra daquele acervo.

Podemos pensar nesses trabalhos, entre outros da atualidade[3], em seus diferentes vetores, como uma apropriação produtiva das discussões artísticas e políticas dos anos 80. Ao operar um ativamento do espaço público pelo investimento de um sujeito pós-muro de Berlim, essas propostas, mais do que “crítica institucional”, apostam numa positivação possível dos sempre problemáticos espaços da cidade e instituições artísticas (museus, coleções públicas, espaços expositivos). Poderíamos então trazê-las para um diálogo maior com uma história recente e colocar, hoje, algumas novas “idéias no lugar”.

                                                                                                                                Paulo R. O. Reis


[1] As informações sobre as propostas artísticas aqui abordadas foram, em sua maioria, gentilmente cedidas pelos artistas envolvidos.

[2] Retomo e amplio aqui algumas colocações de texto publicado no jornal Inclassificados (SESC/RJ-2003), organizado pelos artistas Rosana Ricalde e Felipe Barbosa.

[3] Lembraríamos aqui dos projetos coletivos “Atrocidades Maravilhosas” (2000), “Pipoca Rosa” (2000), “Vaca Amarela” (2001) e de projetos dos artistas Fabiano Gonper (Gonper Museum/2002), Maurício Dias e Walter Riedweg (Arte Cidade Zona Leste/2002), Jorge Menna Barreto (Entre o céu a terra/2000), Cleverson Salvaro (Garrafas – 15 com tibagi/2002), entre tantos outros.