AS PAREDES ESTÃO RUINDO ou sendo pintadas? por Fernando Oliva
A noção de ateliê como espaço sagrado da criação – local onde o artista se recolhe em busca de algum isolamento; o lugar idealizado onde se produz arte; ou, então, o “purgatório das obras” e a “butique para críticos e curadores”, nas ácidas palavras de Daniel Buren – vem sofrendo sucessivos abalos, rachaduras e infiltrações nas últimas décadas, notadamente a partir do final dos anos 1960, com as propostas conceituais de desmaterialização. Novos golpes à noção clássica do estúdio foram perpetrados no decênio de 1990, marcado pelo intimismo dos pequenos formatos –em muitos casos, bastava uma mesa para produzir – e pela organização dos programas de residência, em que artistas são convidados a passar uma temporada em lugares geralmente distantes da cidade, do Estado ou do país onde vivem, para trabalhar em ambiente que lhes serve, digamos, de ateliê provisório.
Ainda na década passada, com a dominação exercida pela fotografia, vídeo e meios digitais, ficou evidente que artistas prescindiam tranqüilamente de um local específico e, conseqüentemente, de um tempo determinado para fazer arte. Neste período, firmou-se no Brasil uma geração que praticamente abdicou de um lugar privado e que trabalha direto nas ruas ou no próprio espaço onde as obras serão apresentadas. Entre aqueles que já atravessaram esta experiência em algum momento de sua trajetória podemos citar Rubens Mano, Maurício Dias e Walter Riedweg, Marcelo Cidade, Claudio Matsuno, Renata Lucas, Cristina Ribas, Ducha e André Komatsu, além dos coletivos Laranjas (Porto Alegre), Aleph (Recife) e Transição Listrada (Fortaleza).
Mais um fator que vem modificando a idéia aurática de ateliê é a produção artística no espaço doméstico, eliminando divisões entre o espaço/tempo do trabalho e da vida, em operação que remonta aos "Ninhos" Babylonests/Hendrixsts (1970-1974), de Hélio Oiticica, e à Merzbau (1923-1933) de Kurt Schwitters. Bons exemplos são as criações “no lar” de Laura Lima, Sara Ramo, Odires Mlaszho, Brígida Baltar, Camila Rocha, Eduardo Verderame e Lia Chaia (especialmente a obra em que a artista sobrepõe à coluna vertebral fotos da vista de um arranha-céu, feitas da janela de seu apartamento), entre outros.
A Número convidou uma crítica (Lisette Lagnado, autora de texto fundamental[1] sobre o assunto), um curador (Rodrigo Moura, hoje curador do Museu de Arte da Pampulha, que tem sob sua responsabilidade a Bolsa Pampulha, programa de residência para artistas que incentiva a produção in loco) e uma artista (Mônica Nador, conhecida pintora que despontou nos anos 80 em São Paulo e protagonizou um caso marcante de ruptura radical com o ateliê, ao decidir que não iria mais produzir sobre tela, mas exclusivamente “sobre muro”, passando a atuar em comunidades carentes de várias partes do Brasil) para discutir o tema*.
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Lisette Lagnado – Na minha opinião, três fatores contribuíram para redefinir o estatuto do ateliê. Em primeiro lugar, vem a crise econômica, quando os artistas passam a ter dificuldades para pagar um aluguel extra, sendo forçados a trabalhar e produzir no mesmo espaço em que habitam, o doméstico. Em segundo: à medida que a pintura deixa de ser o mainstream, fica claro que as coisas não precisam mais de um espaço de contemplação para acontecer. O tempo do ateliê insinua que as obras foram primeiramente “testadas” no recinto do ateliê para depois irem ao mundo. Hoje, esse teste é feito diretamente no espaço público. Isso ocorre porque existe o fenômeno de “encomenda”. Se o artista tem uma idéia, ele só realiza o projeto caso haja um local interessado e uma verba. A terceira causa, e mais importante, é que diminuiu brutalmente a distância entre o trabalho encarado como fonte de renda e a realização pessoal. (...) Aquela divisão que se fazia entre o emprego e o prazer tem perdido sentido. Quando você fala do ateliê como lugar, conseqüentemente está falando de tempo também: se há um lugar no qual se produz arte, isso implica afirmar que em casa, ou nas ruas, não se está produzindo arte. Só que esta separação já não faz tanto sentido, pois o artista vive a arte em tempo real. É matéria de vida, e não mais um “ofício”.
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Rodrigo Moura - A indagação sobre o ateliê do artista corresponde a uma questão mais ampla sobre o espaço da arte, o museu e o espaço público conduzindo esse processo. A deflagração de uma série de novos processos técnicos, herdados da indústria, a partir do minimalismo e da pop em sua busca simultânea (embora divergente) por um certo anonimato da forma e do fazer, leva o artista a uma dinâmica do agenciamento de saberes de terceiros, um traço definitivo da produção contemporânea. Na esteira disso, a arte conceitual acirrou a presença de propostas que prescindissem do objeto físico como instância cabal do objeto de arte. Artistas com esse conjunto de inclinações em sua economia de meios tendem a se familiarizar mais com as situações de deslocamento, já que, no caso da Bolsa Pampulha, antes de constituir uma nova oficina, eles precisam estabelecer uma ampla rede de contatos de fornecedores, de gráficas a metalúrgicas.
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Mônica Nador – Por muito tempo eu pintei sobre tela e tinha meu ateliê, expondo os quadros em galerias e museus. O problema é que eu nunca tive uma relação muito legal com o mercado de arte, sempre me senti tripudiada. Não estava confortável com aquela estrutura e não queria ser conivente. Em 1996, topei com o texto The End of Painting [1981], de Douglas Crimp. Desde então, nunca mais produzi telas nem realizei individuais em galerias. Ficou impossível continuar com meu trabalho da forma como era. Não penso que a arte possa transformar as estruturas sociais, mas acho cada vez mais difícil o exercício de uma prática que não inclua este fato. Para mim, é impossível trabalhar em um país como o Brasil sem considerar nossa realidade social. Não acho que vou mudar muita coisa, talvez nada, mas não quero passar batido. Há seis anos dedico todo o meu tempo ao Projeto Paredes Pinturas, um conjunto aberto de pinturas murais feito em bairros pobres das grandes cidades e em cidadezinhas do interior. Atualmente eu não tenho mais apego material em relação aos trabalhos de arte. Faço os projetos para os murais em qualquer lugar, no chão, sobre uma mesa qualquer, em cima do joelho... Agora há pouco, lá no Jamac (Jardim Miriam Arte Clube), fiz um desenho junto com um garoto da comunidade. Nem ateliê tenho mais, só sobrou uma mesa, que costumo usar para ler e estudar. Hoje, meu ateliê é a rua.
* As entrevistas de Lisete Lagnado e
Mônica Nador à Quatro foram
concedidas pessoalmente. Rodrigo Moura respondeu por correio eletrônico.
Fernando Oliva