CORPO/ESCRITA NA ARTE: Três Casos de Agora, por Daniela Labra
Corpo/Escrita na arte: três casos de agora
É fato consumado que a arte hoje, ocorrendo em variados suportes, possibilita e experimenta a fusão de gêneros no seu cerne visual. A escrita neste meio ultrapassa suas fronteiras formais para reinventar a plástica e aproximá-la da literatura. Do mesmo modo, a literatura pode atingir tal virtuosismo estético que sua visualidade ou mesmo atitude pode aproximar a obra literária das artes plásticas. A palavra na Arte contemporânea está presente de diversas formas, explicita ou mesmo invisível, num caderno em branco recheado de palavras itangíveis, por exemplo; existem artistas que escrevem sobre panos e paredes de galerias, e outros que picham nos muros das cidades; há artistas que só escrevem mas não são escritores e há os que subvertem o veículo literário impresso para fazer arte política com idéias; um texto recitado numa instalação trata a palavra tal como o teatro, como um elemento sonoro semântico, enquanto que no irremediável âmbito eletrônico, no gênero que se designa arte digital, a estrutura do hipertexto nos permite navegar por histórias que se reinventam. A escrita na arte pode ter infinitos enfoques e interpretações, e pode inspirar milhares de obras, narrativas ou não.
Serão abordados aqui obras de três artistas que experimentam o texto em formatos ou visualidades menos tradicionais numa temática relacionada a certa desconstrução do corpo humano: Fernanda Magalhães e Fábio Lucchiari, e a escritora filipina residente em Nova York, Shelley Jackson. Seus trabalhos cruzam gêneros literários e plásticos e transgridem o suporte clássico em alguns casos.
A fotógrafa paranaense Fernanda Magalhães desenvolve há 10 anos uma pesquisa corajosa e autorreferente intitulada A Representação da Mulher Gorda Nua na Fotografia. Neste trabalho ela constrói uma espécie de colagem barroca com fotos de autoria própria, auto-retratos, imagens de mulheres gordas nuas tiradas de revistas, publicações pornográficas, jornais e fotos enviadas por fotógrafos para o projeto, misturadas a fragmentos de textos de imprensa ou escritos seus cujo tema relaciona-se ao corpo gordo. Relatos e confissões, literatura, receitas gordurosas, tudo é pano de fundo e complemento crítico das imagens que à princípio chocam. O trabalho explodiu em 1993, durante uma temporada na apolínea Rio de Janeiro, onde o excesso de corpos, perfeitos ou não, democraticamente à mostra, fez a artista pensar sobre o padrão físico que nos é imposto. Auto Retrato no Rio de Janeiro e Carta (Centro Cultural Light, R.J., 2001) exibia numa vitrine voltada para a rua o fac-símile ampliado de uma carta trocada com uma amiga onde lia-se o seu incômodo por sentir-se inadequada ao contexto da cidade, junto com mais cinco fotos. Ainda em 2001, Fernanda esteve na mostra Panorama da Arte Brasileira com a instalação De Viés, expondo cópias de e-mails trocados num e-grupo criado por um gordo para gordos[1], entrevistas em áudio com mulheres gordas disponíveis ao público por dois fones de ouvido, cinco bem humorados retratos seus - nus e vestidos – do fotógrafo Álvaro Diaz, e uma frase em tom preconceituoso impressa em grande escala numa parede, retirada de uma crítica sobre as fotos de quando expostas em outra ocasião. Curiosamente, a frase veio de uma curadora brasileira de silhueta avantajada... Fernanda proclama o lado erótico do corpo gordo, o direito à se sentir feliz, e denuncia preconceitos gerados pela negação do próprio corpo e a submissão às dietas, à moda, à eterna juventude, à urgência da fama, às doenças oriundas da perfeição física imposta hoje. Subjetivamente, no entanto, a artista também se burla do rigor da beleza plástica de elementos harmoniosos que constróem uma composição artística de gosto fácil e “bonita”.
Considerando o corpo como campo de experimentação e suporte, surgem as poesias bordadas sobre a pele de Fábio Lucchiari, residente em Campinas, S.P.. Na série Eu, Tu, Ele o artista, ainda num estágio de maturação do seu projeto, desenvolve pesquisas poéticas no âmbito da body art, utilizando o seu corpo como o meio para a obra. Há pouco mais de 2 anos ele iniciou esta pesquisa com pronomes pessoais bordados no ante braço e palavras em outras partes do corpo. A sua idéia é construir uma poesia visual com as fotos e vídeos dos pronomes bordados com linha cirúrgica, que se esvanecem quando os pontos caem da pele. Esta obra se dá em três etapas: a ação física, o registro e a montagem que ordena as palavras-foto numa seqüência poética. Os registros das perfurações assustam, mas a intenção não é provocar o público. Embora pareçam dolorosas, as escoriações são superficiais e Fábio pretende aprofundar sua busca no rol da poesia escrita fora do papel. Ainda que admirador de tatuagens e seu simbolismo, o artista opta pelo bordado e mostra-se mais desejoso em fazer de si um suporte mutável, uma lousa viva que permite muitos escritos.
Fora do âmbito das artes plásticas e partindo para o campo da literatura que extrapola o formato está Skin (Pele, 2003) conto de Shelley Jackson, escritora que atua em outros campos artísticos. O tema central de sua obra é a (im)permanência do corpo e suas principais publicações são o livro The Melancholy of Anatomy (A Melancolia da Anatomia, 2002) e Patchwork Girl (Garota de Retalhos), um hipertexto sobre o mito de Frankenstein. Em Skin, porém, a autora sai do meio virtual e do veículo tradicional do papel para imprimir sua escrita no corpo de terceiros.
Shelley vem convidando pessoas para serem uma palavra de seu novo conto, tatuando-a na pele e desse modo construindo o texto. A obra completa é composta de mais de 2.000 palavras e só existirá no formato tatuagem, a ser divulgado na íntegra apenas aos seres-palavra que o constituírem. No caso de faltarem candidatos, a autora considerará a versão incompleta como definitiva, sendo que esta pode continuar sendo aumentada enquanto Shelley Jackson viver. Após o candidato assinar um termo de compromisso ela lhe envia a palavra, e caso esta não seja do agrado, a autora não admite uma troca. Skin não será publicado em nenhum outro meio nem será adaptado para nenhuma versão de teatro, cinema ou música. O conto, enquanto um texto mortal, dialoga com o corpo vivo e se apaga quando as palavras morrem.
No conjunto destes trabalhos percebe-se que o binômio corpo/escrita se equaciona de três modos: o corpo descrito com palavras, as palavras corroborando com as imagens do corpo e o corpo como mera superfície em função da palavra. Nota-se também três níveis crescentes de efemeridade das obras: a primeira é quase totalmente material e mistura visualidade e texto; a segunda é efêmera enquanto ação mas se materializa no registro da performance e do texto; e a último existe enquanto obra original paupável somente durante o tempo de vida do autor e do suporte do texto.
Desse modo, nota-se que no hibridismo de gêneros e ações se encontra uma rica fonte para se experimentar não só a mensagem, mas o meio (que não é o de massas) por onde corre a poética. Fora dos estereótipos e por isso às vezes fora das instituições, a arte se multiplica derrubando fronteiras físicas, de juízos de gosto e de permanência no tempo, testando modelos, descartando antigos padrões e vivendo os limites da própria vida e da morte.
Daniela Labra foi atriz e estudou canto. Formada em teoria do teatro, trabalhou em galeria e é mestranda, sem bolsa, em artes visuais. Chilena, carioca de crescimento, foi para Madri um tempo, mochilou meses, morou em São Paulo e agora volta pro Rio. Durante 5 anos foi um caso típico de mulher jovem, independente, bem apessoada, nada burra, simpática e solteirona, até conhecer o Felipe, com quem se sente a mulher mais feliz do mundo. danilabra@hotmail.com
[1] Este grupo, segundo a artista, durou apenas alguns um dias, posto que a maioria das pessoas foi colocada ali sem ser consultada pelo seu idealizador, gerando indignação naqueles que se achavam gordos circunstanciais.