Você está aqui: Página Inicial / Rede / Revista Número / numero Dois / ALIENAÇÃO, PÚBLICO E ARTE CONTEMPORÂNEA, por Thais Rivitti

ALIENAÇÃO, PÚBLICO E ARTE CONTEMPORÂNEA, por Thais Rivitti

Pensador alemão aponta em Adorno e Debord diferente modelos de relação entre espectador e obra de arte.

por Thais Rivitti

Há um texto de Anselm Jappe, o anexo 2 de seu livro Guy Debord, publicado no Brasil em 1999 pela editora Vozes, chamado Sic Transit Gloria Artis. Nele, o autor, um dos membros do grupo teórico alemão Krisis, faz uma comparação pontual entre o pensamento de Adorno e Debord. Seus apontamentos parecem contribuir, ainda que não diretamente, para nossa discussão sobre o modo como tem sido pensada a relação das pessoas com a arte.


Segundo Jappe, tanto Debord como Adorno concordam com a afirmação de que o público das artes, bem como toda a sociedade, é composto por sujeitos alienados. Isso significa que são sujeitos incapazes de decidir seu destino, de refletir e formular questões sobre o mundo a sua volta. Esta posição comum decorre da tradição marxista da qual os dois autores provêm, que aponta a esfera econômica da troca como base da alienação. O espetáculo, diz Debord em A Sociedade do Espetáculo, “domina os homens vivos quando a economia já os dominou totalmente. Ele nada mais é do que a economia desenvolvendo-se por si mesma”. E Adorno, em Dialética do Esclarecimento, afirma em tom parecido que “a dominação universal dos valores de troca sobre os seres humanos é o que impede a priori os sujeitos de serem sujeitos e reduz a própria subjetividade a mero objeto”.


Jappe procura entender como, partindo de conceitos semelhantes como o espetáculo e a indústria cultural, Debord e Adorno acabam divergindo radicalmente ao falar do futuro da arte. Enquanto Debord e os situacionistas querem dissolver a arte na vida, Adorno defende a autonomia da arte para que ela possa se constituir como negação na vida alienada que dirige a sociedade.


Este distanciamento se deve, na opinião de Jappe, ao fato de Debord tomar como principal referência a noção de reificação desenvolvida por Lukács em História e consciência de Classe, enquanto para Adorno o que aliena o sujeito de seu mundo é sua propensão a “devorar” o objeto. Lukács, conforme a leitura de Jappe, teria relacionado o processo de fetichização da mercadoria _ou seja, o processo que faz com que passemos a atribuir às coisas as características humanas da sua produção_, ao da reificação. A extensão da mercadoria e seu fetichismo a totalidade da vida faz também com que as ações humanas passem ser vistas como um conjunto de coisas que, independente do poder humano, seguem apenas suas próprias leis.


Por isso, para Debord, a alienação só poderia ser rompida com o fim do espetáculo, quando os sujeitos começassem a intensificar sua ação, quando a comunicação plena _atualmente impedida pela própria constituição fragmentária do sistema de produção, que dita as leis para todas as outras esferas da vida_ voltasse a existir. Em decorrência desta avaliação, a arte não pode existir como conteúdo separado, ela tem que se dissolver na vida cotidiana, agindo nela de forma direta e real.


Adorno, por sua vez, atribui a alienação à existência do sujeito dominador, que se sobrepõe ao objeto e que só é capaz de entendê-lo como algo derivado da sua percepção. O pensamento subjetivista busca a identidade entre sujeito e objeto por não suportar o que lhe é externo (objeto), e a alienação decorre desta repressão ao diferente e ao estranho.


Ainda segundo Jappe, Adorno considera tarefa da arte a contribuição para a superação do sujeito dominador. Entendendo a experiência estética como uma reposição constante entre sujeito e objeto, Adorno vê na arte a possibilidade de o sujeito se relacionar com o objeto sem subjugá-lo. O modelo da comunicação (sugerido por Debord) é condenado a repor a alienação, pois localiza-se no âmbito da práxis, do uso instrumental, portanto oposto ao da arte.

O discurso da dissolução da arte na vida está presente na cena brasileira de arte contemporânea. São artistas (ou grupos) que assumem claramente sua filiação ao pensamento de Debord e dos situacionistas. Eles falam em implodir o sistema (capitalista) e têm como estratégia desqualificar todas as instituições, termo entendido em seu sentido mais amplo, como tudo aquilo que está estabelecido: desde galerias até o pensamento produzido nas universidades. Colocam-se contra o consumo e contra a globalização: freqüentemente são usados termos políticos para designar suas ações. Alguns deles atuam no corpo a corpo com o público visando proporcionar uma vivência emancipadora que por vezes se confunde com afeto, atenção e inclusão. Há críticas possíveis para cada trabalho, em cada caso. Mas, genericamente, pode-se dizer que estas práticas “situacionistas” oriundas das manifestações de 68 precisam ser reformuladas frente às novas condições sociais para não serem (mais uma vez) engolidas. É necessário um desenvolvimento real da teoria e da prática para que sejam elaboradas ações de fato propulsoras de uma nova vida social e que não se tornem um novo modismo, com seus segundos de aparição na mídia ou ações voluntaristas incapazes de transformação.


O discurso da arte como tensão ente sujeito e objeto, numa esfera em que as relações são opostas às do cotidiano, tem menos apelo atualmente. Talvez isso se deva a uma precipitada identificação dele com a auto-referência da arte e sua conseqüente incomunicabilidade. Mas há artistas que, contra a corrente, insistem em desenvolver seus trabalhos como uma experiência que não pode ser entendida pela razão instrumental. A contemplação destes trabalhos se dá num tempo vagaroso, nada é dado imediatamente, há um embate incômodo e instigante com o objeto e uma exigência de reflexão sobre os procedimentos do artista e a história da arte.


Eis dois caminhos para a arte que partem de uma crítica da sociedade, negam-se a ser objetos de consumo e se colocam como resistência. Vejo que eles se opõem radicalmente àquele tipo de manifestação de caráter pessoal, dado a descobertas de pequenas verdades e produto de um sujeito enredado em suas próprias limitações _esse sim extremamente em voga nos dias de hoje.