ANARQUISMO CONSTRUTIVO [?!], por Taisa Palhares
Por Taisa Palhares
Ações artísticas em grupo não são uma exclusividade de nossos dias. No final dos anos 70, a cena paulistana viu surgir uma série de agrupamentos de artistas intervindo no panorama cultural e espacial da cidade. Realizando obras coletivas e muitas vezes anônimas, grupos como Manga Rosa, 3Nós3 e Viajou sem Passaporte procuravam expandir o circuito de arte e naturalmente a noção de “obra de arte” que lhe dá origem. Utilizavam espaços inusuais como base de suas intervenções artísticas: outdoors, ônibus, viadutos, ruas, monumentos públicos, e também espaços do circuito estabelecido, como galerias, teatros, jornais etc.
Apesar das diferenças entre eles, unia-os a visão de que o importante era recuperar a qualidade subversiva do gesto artístico, capaz de instaurar uma crise no estado de normalidade vigente mediante a introdução de elementos estranhos em situações cotidianas. As pessoas viam-se confrontadas de repente (e o caráter surpresa aqui é decisivo) com fatos insólitos que as obrigavam a abandonar um estado de inconsciência e desatenção diante dessas situações. Muitas vezes, não apenas indivíduos, mas toda uma classe profissional era provocada a reagir. Por exemplo, o grupo Viajou sem Passaporte, além das intervenções realizadas em linhas de ônibus e ruas –como "Trajetória do Curativo", "Trajetória da Árvore" e "Trajetória do Paletó"–, efetuou ações em peças teatrais que visavam desestruturar a relação pré-estabelecida entre público e atores, ocasionando a ira de algumas companhias teatrais.
A primeira “interversão”* urbana do 3Nós3 –grupo formado por Hudinilson Jr., Mário Ramiro e Rafael França– chamou-se Ensacamento. Na noite de 27 de abril de 1979, o grupo cobriu com sacos de lixo a cabeça de 69 esculturas e monumentos públicos, entre eles o Monumento às Bandeiras, de Brecheret, e a estátua de Marechal Deodoro, na praça de mesmo nome. No dia seguinte, anonimamente, ligaram para os principais jornais avisando sobre a ação. A partir de então, o 3Nós3 passaria a utilizar intencionalmente a imprensa como veículo de circulação de seus trabalhos. Tiveram ampla cobertura, apesar dos mal-entendidos: chegou-se até a associar o ato a uma possível insatisfação salarial dos lixeiros! Naturalmente, ver essas esculturas ensacadas deve ter causado estranhamento nos transeuntes, que talvez nunca tivessem parado para observá-las antes disso. Um encarte com 15 fotos mais um impresso de notas de jornais foi editado pelo grupo como registro da intervenção, em dezembro do mesmo ano. O que torna clara a intenção de abarcar o comportamento reativo das pessoas como parte constitutiva do trabalho.
Deste ponto de vista, a reação à intervenção "X-Galeria", também de 1979, é ainda mais interessante. Também durante a noite, o grupo “lacrou” a porta de algumas galerias de arte de São Paulo com um X de fita crepe, deixando um cartaz no qual se lia: “O que está dentro fica; o que está fora se expande...”. A repercussão foi imediata. Alguns críticos de arte de importantes jornais da época, talvez motivados pela insatisfação dos galeristas, identificaram o gesto a puro vandalismo. “O ataque às galerias: escândalo, violência. Que artistas são esses?”, era o título do texto crítico veiculado pelo Jornal da Tarde sobre o trabalho. Por sua vez, um crítico de arte do Folhetim aconselhava aos integrantes do grupo o estudo da arte e sua história antes de terem o atrevimento de realizar um ato daqueles. Prontamente, o grupo redigiu um texto no qual esclarecia seus objetivos, como resposta a essas e outras críticas, que (pasmem!) também foi publicado no jornal. “Nossa proposta de intervenção no espaço urbano, tida como um gesto provocativo de uma nova vinculação do espectador/transeunte com seu contexto espacial, foi estendida –sob um novo aspecto– às galerias e museus...”, impedindo que o trabalho fosse compreendido unicamente como protesto de jovens artistas contra um mercado de arte fechado a novas propostas.
O grupo durou até meados de 1982. No entanto, datam de 79 outros dois trabalhos importantes do ponto de vista da capacidade de alteração da ordem habitual, mesmo que momentaneamente, pela introdução de elementos estranhos no cotidiano. De forma mais direta, em Interdição o grupo estorvava a livre passagem dos carros pela av. Paulista. Estendiam enormes folhas de papel celofane colorido de um lado ao outro da calçada assim que o farol fechava; ele abria e os artistas continuavam estáticos esperando que o primeiro motorista tomasse a decisão de transpor o obstáculo e seguir em frente.
Em 18 de novembro de 1979, o 3Nós3 realizou sua primeira e única intervenção (pelo que sabemos) na imprensa escrita. Publicou, na Folha de São Paulo, o artigo teórico “A categoria básica da comunicação”, assinado pelo grupo. Nada de mais se, uma semana depois, o jornalista Fernando Lemos, quem sabe desde o começo já a par da “ação” do grupo, não revelasse que o texto não queria dizer absolutamente nada. Tratava-se apenas da reunião de frases dispersas retiradas de diferentes livros e costuradas depois pelos artistas, como lhe havia confessado Hudinilson Jr., numa entrevista sobre a mais nova teoria comunicacional. Pode-se imaginar que alguém ficou tentando entender e discutir o tal texto a sério, e que este de certa forma evidencia(va) um certo blá-blá-blá estéril que acompanha(va) diversas modas teóricas em nosso país freqüentemente legitimadas pelos suplementos culturais dos jornais.
O grupo insistia em dizer que a motivação de seus trabalhos era um “anarquismo construtivo”. E neste sentido, talvez não seja exagero afirmar que, mais instigantes que as intervenções em si, são, hoje, os debates levantados em torno delas. O antes e o depois, as discussões pelas quais eram geradas e que posteriormente ecoavam. Abordagem que talvez sirva também para iniciarmos uma conversa sobre os grupos atuais. Pois parece que tais agrupamentos espontâneos surgem, sobretudo, por uma necessidade de comunicação mais direta entre os artistas e deles com seu potencial público: a troca de idéias livre e aberta sobre arte e afins, cada vez mais ausente dos espaços do circuito dito oficial, a saber, imprensa, museus, centros culturais, universidades etc.