A IDENTIDADE BRASILEIRA NO SÉCULO 19, por Valéria Piccoli
A identidade brasileira no século XIX
Uma das grandes questões que atravessam o século XIX é a definição dos Estados Nacionais, não apenas no que diz respeito à demarcação dos limites de seus territórios, como também à distinção de suas identidades. Para formular justificadamente estes contornos, os mitos de origem tiveram um papel de destaque. O Brasil não ficou alheio a essa discussão. Vale investigar aqui os fundamentos de um mito de origem da identidade brasileira e alguns dos modos pelos quais ele se fez visível na arte daquele período.
A natureza da experiência histórica brasileira no início do Oitocentos foi singular. O país teve seus portos abertos após 300 anos de isolamento e o estatuto político do Rio de Janeiro significativamente alterado, passando de capital de uma colônia de além-mar para sede administrativa de um reino. A transferência da corte portuguesa desencadeou ainda um processo de transformação do tecido urbano e social da cidade, na medida em que foi necessário dotá-la de instituições responsáveis por constituir um aparato de corte. Em 1822, enquanto os antigos reinos da América espanhola se fragmentavam por ações revolucionárias, no Rio encenou-se a fundação da nova nação brasileira na cerimônia da sagração e coroação de um imperador constitucional. Esse momento de transição era observado com interesse pela Europa da Restauração, que assistia à distância ao surgimento de um império católico nos trópicos, capaz de fazer frente, por suas dimensões, à república protestante do norte.
Nesse contexto deve ser avaliada a criação de duas instituições que tiveram papel preponderante na formulação de uma imagem nacional: a Academia Imperial de Belas Artes – cujo decreto data de 1816, mas que só começou a funcionar efetivamente 10 anos depois – e o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB). Este último, fundado em 1839, era composto por um seleto grupo do círculo do imperador. Tendo como modelo o Institut Historique francês, o IHGB assumiu a missão reservada aos estabelecimentos do gênero: a produção de um saber oficial, a construção de uma história nacional, uma árvore genealógica que relacionasse nomes e acontecimentos e permitisse compor um passado comum para esse império imenso e desigual. As reuniões do IHGB foram o germe de um projeto nacionalista que contaria com o apoio pessoal do imperador, presidente honorário da instituição e seria, ainda, o berço do movimento romântico no Brasil.
Alguns anos após sua fundação, o IHGB promoveu um concurso de monografias que deveriam versar sobre “Como se deve escrever a história do Brasil”. Em janeiro de 1845, o Jornal do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro publicou o ensaio vencedor escrito por Carl Friedrich Philipp von Martius (1794-1868), renomado naturalista bávaro e sócio correspondente do instituto. Martius, que viajara pelo Brasil entre 1817 e 1820 como integrante da Missão Austríaca, vinha dedicando sua vida a publicar estudos científicos sobre a flora e as populações indígenas brasileiras, chegando mesmo a escrever um romance ambientado na Amazônia. O ensaio premiado pelo IHGB inicia com a seguinte afirmação:
“Qualquer que se encarregar de escrever a História do Brasil, país que tanto promete, jamais deverá perder de vista quais os elementos que aí concorreram para o desenvolvimento do homem. São porém estes elementos de natureza muito diversa, tendo para a formação do homem convergido de um modo particular três raças, a saber: a de cor de cobre ou americana, a branca ou caucasiana, e enfim a preta ou etiópica. Do encontro, da mescla, das relações mútuas e mudanças dessas três raças, formou-se a atual população, cuja história por isso mesmo tem um cunho muito particular.”
Adotando este ponto de partida, Martius dedica-se, por todo o decorrer do texto, a construir uma inesperada teia de relações de causa e efeito entre uma história necessariamente original e a maneira no mínimo curiosa – porque inédita, em sua opinião – como aqui convivem três raças tão diversas em suas características tanto físicas quanto morais. Com seu ensaio, propunha ao país um modelo de história oficial que calcava-se menos em fatos e personagens do que na reflexão sobre as condições que tornavam possível a coexistência e a miscigenação de brancos, negros e índios. “Nos pontos principais”, afirmava ainda o autor, “a história do Brasil será sempre a história de um ramo de portugueses”, mas para que fosse uma história completa, analítica e “pragmática” como ele propõe, teria que levar em conta as “relações” entre brancos e a “raça índia e etiópica”.
As “relações” a que o naturalista se refere merecem um exame mais cuidadoso. Àquele que se propusesse a escrever a história do Brasil, caberia estudar a maneira pela qual cada uma das três raças concorria para o “aperfeiçoamento” do país. Assim sendo, a tarefa do “historiador da Terra de Santa Cruz” seria, em primeiro lugar, analisar a influência da presença dos africanos sobre o desenvolvimento civil, moral e político da nação e ponderar sobre o destino (melhor ou pior) que o país teria tido sem os escravos. Ao mesmo tempo, ele deveria dedicar-se a recuperar a história dos índios, procurar por vestígios de uma civilização remota e superior como as que, sabia-se, tinham vivido no México e no altiplano andino. O aspecto degradante sob o qual se apresentava o índio brasileiro de então não seria para Martius senão um reflexo da total perda de suas referências de origem. Por sua vez, a contribuição do branco europeu para a história do Brasil seria avaliada pela criação, no país, das condições necessárias ao estabelecimento e desenvolvimento das ciências e das artes, “como reflexo da vida européia”.
A partir de então, cada uma das etnias formadoras da população brasileira assumia o papel que lhe cabia na cena histórica que se montava para o país. Segundo Martius, bastava restituir ao índio a dignidade de um passado heróico. Ao negro, restava a desconfortável posição de ser o elemento que alterara os destinos do país. Ao branco, por fim, cabia conduzir todos a um estado de civilização. De resto, sua conclusão é contundente: “O sangue português, em um poderoso rio, deverá absorver os pequenos confluentes das raças índia e etiópica”. E, por fim, se formaria a raça/nação, apta a cumprir a “atividade histórica para a qual o Império do Brasil é chamado”.
v
Findo o período conturbado da Regência e retomado o mecenato público das artes, foi possível para a Academia Imperial recolocar-se como motor de elaboração de um projeto artístico nacional. Se a imagem do branco europeu como condutor do processo civilizador é bastante eloqüente nos retratos e nas cenas históricas, no pólo contrário, a pintura retratando negros foi rara, de pequenas dimensões e quase exclusivamente feita por estrangeiros, seduzidos pelo colorido exótico que sua presença conferia ao cenário urbano. Que coube ao índio encarnar o personagem mítico, fundador da raça e transformar-se no herói do movimento romântico, é fato que já tem sido suficientemente comentado. De resto, a insistência nas raízes indígenas do país representava também, e acima de tudo, a possibilidade de dissociar em definitivo sua imagem da presença numericamente marcante do africano no total da população. Mas que caminhos tortuosos levaram aquele índio de aparência repugnante descrito por todos os viajantes que por aqui passaram a tornar-se o símbolo da nacionalidade?
Como dissera Martius, era preciso recorrer às origens e retraçar o passado glorioso dessa civilização perdida. Perdida sim, já que o índio que deveria personificar a liberdade e a bravura era necessariamente um índio idealizado, “tupi por excelência, extinto de preferência”. Esse índio histórico era o valente habitante das matas virgens do Brasil que, por um pacto firmado com os portugueses, tinha tornado possível a colonização do país, sacrificando por ele sua própria sobrevivência como povo. Esse é o índio heróico, protagonista dos poemas e romances da geração de Gonçalves Dias e Alencar. A voga do indianismo chega à pintura na década de 1860, pouco mais tarde do que chegara à literatura. O índio feito símbolo da nacionalidade, mereceu pinturas grandiosas como convém a um herói, ambientadas em meio à natureza exuberante do Brasil, seu habitat por excelência, numa paisagem atemporal. A pintura indianista se valeria das mesmas Iracemas, Moemas e Lindóias que já povoavam os versos dos poemas e as páginas dos romances.
Merece atenção especial aqui a escultura Alegoria do Império Brasileiro (1872) de Chaves Pinheiro. O corpo de herói grego – adequado, em se tratando de uma obra de academia – traz um cocar à guisa de coroa, uma tanga de penas e os pés descalços como a indicar um homem da selva que domina a natureza. Ao invés de arco e flecha, no entanto, carrega o cetro dos Bragança, um escudo decorado com o brasão imperial e um manto semelhante ao do imperador sobre os ombros. Essa imagem do bom selvagem ornado com os símbolos da monarquia sugere o nascimento de uma nova civilização, nobre, por descender não apenas das mais importantes casas européias, mas também de uma estirpe de valentes guerreiros.
Se a imagem do índio heróico deu o tom dominante à cena do Segundo Império, no período republicano assistiu-se à substituição do debate sobre as três raças por especulações a respeito da viabilidade de um país mestiço. Como enfrentar a realidade da mestiçagem no Brasil frente às correntes científicas que condenavam o tipo mestiço à desconfortável posição de inferioridade na escala evolutiva do homem? O impasse só permitia uma saída. Provar cientificamente que o Brasil era um país em vias de branquear-se. A essa missão, dedicaram-se os cientistas brasileiros de finais do século XIX e início do século XX. João Batista Lacerda, então diretor do Museu Nacional do Rio de Janeiro, apresentou no I Congresso Internacional de Raças, realizado em 1911, a tese “Sur les métis au Brésil”. Lacerda procurava provar que o acelerado processo de miscigenação, que se tornara quase um distintivo da população brasileira, levaria o Brasil, no espaço de cem anos, a ser um país habitado por brancos. Como ilustração à tese, Lacerda apresentou a tela A redenção de Can (1895), de Modesto Brocos, que, não só por esse motivo, merece um exame mais cuidadoso.
Afinal, a que “redenção” se refere Brocos? Can, um dos três filhos de Noé, fora castigado pelo pai que impôs uma maldição a seu filho, Canaã, condenando-o a ser escravo dos tios e dos irmãos. Transposto para o contexto brasileiro, um país em que, até muito pouco tempo atrás, ser negro significava ser escravo, a “redenção” pintada por Brocos se personifica no nascimento de uma criança branca e, portanto, não mais escrava. Ocupando o centro da composição, ela está sentada ao colo da mãe, uma mulata, e é observada pelo olhar um tanto maroto do pai, ele também mestiço, com traços de caboclo. Em pé, a avó negra ergue as mãos aos céus em sinal de agradecimento. Modesto Brocos toma emprestado um tema bíblico para nos apresentar o próprio mito do branqueamento da raça. A cena familiar, cuja composição obedece às normas acadêmicas da pintura religiosa, é ambientada à porta de uma habitação simples, permanecendo visíveis as roupas no varal e a falta de reboco nas paredes. As próprias vestimentas dos personagens reafirmam essa condição. A mensagem é evidente: nas classes baixas, exatamente onde a miscigenação acontece sem controle, o sangue branco prevalecerá no espaço máximo de três gerações.
O círculo parece se fechar. Sob esse aspecto, o texto de Martius tem um sentido premonitório. A imagem do Brasil que o século XIX pretendeu construir era exatamente aquela que o naturalista preconizara: a inusitada mescla de três raças originaria um país necessariamente branco e referendado pelos valores civilizatórios europeus. Atravessando as fronteiras do século XXI, é possível ainda encontrar ecos desse Brasil desejado, eterno “país do futuro”, sempre na iminência de ser alçado a um “estado de civilização”, que se configura não como uma conquista a que se propõe um conjunto de cidadãos, mas como uma dádiva que o país há muito se faz merecedor.
Valéria Piccoli