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Limites entre arte e política, Santiago Garcia Navarro

Limites entre arte e política

 

1. Como todo enunciado, a pergunta a respeito dos limites entre a arte e a ação política implica um sujeito de enunciação e o território tentativo de desenvolvimento que esse sujeito entrevê, ou demanda, para o enunciado. Formulada a partir da lógica do campo da arte contemporânea, tal interrogação define a prática por suas bordas exteriores: importa menos o que essa existência produz segundo sua própria potência de ação, do que o modo com que se adequa às regulações de uma certa ordem dominante.

Em outras palavras, o confinamento de uma prática qualquer a uma esfera autonomizada de produção não dá conta da capacidade de “criar mundo” dessa prática. Posto que aquilo que, por si mesmo, opera em diversos planos de existência é reduzido a um significante privilegiado. Desse modo, os demais significantes são separados do anterior e passam a ser, no melhor dos casos, seus componentes satélites. Ou seja, só se explicam à luz do significante primeiro.

Não se trata, entretanto, de um mero ponto de vista aplicado a uma prática. Que essa prática seja considerada sob uma luz excludente quer dizer que ela é normatizada pelos valores, sentidos e papéis que esse sistema organiza por si só. O problema passa a ser “o artístico” e não a prática concreta em suas múltiplas dimensões (estética, filosófica etc.).

Levando esse axioma até seu extremo, como ocorre com o campo da arte na atualidade, gera-se a seguinte dinâmica: desenha-se um território – o da arte contemporânea –a partir dele e se produz (obras de arte, leituras em torno delas e modos de circulação de ambas). Desta maneira, os objetos culturais produzidos dialogam entre si retirando do conjunto infinito de conexões virtuais que o ato criativo contém todas aquelas que não concorrem ao significante privilegiado.

Ao contrário, desde uma concepção que não funciona segundo a lógica das representações – embora, sem dúvida, também não as elimine, mas as re-introduz no complexo operativo próprio da prática –, a pergunta fundamental é sempre a respeito do que há de criação nessa prática.

Quando essa questão de fundo se mantém aberta, quando o processo de singularização que todo ato criativo comporta se desdobra continuamente, cortando transversalmente todas as formas existentes e as estratificações que resultam dela, é possível se interrogar sobre o que há de artístico, o que há de político etc., nessa prática. O “campo” se redefine como o território de ação que a própria experiência é capaz de produzir.

Ali, então, a pergunta a respeito da arte e da política não é exterior à prática, não consiste numa tentativa de aplicar sobre essa prática as categorias que, num momento determinado da história, funcionam dentro dos campos da arte, da militância etc. A pergunta a respeito da arte e da política é a pergunta a respeito dos modos específicos que uma prática cria laços, amplia e inventa novas ordens de sensorialidade.

2. A política pode ser pensada – seguindo Guattari (1986) – como a criação de relações em três níveis: o “infrapessoal” (a organização de um certo número de relações que, em permanente devir, dão consistência a um indivíduo), o das relações sociais (as conexões entre diversos nós infrapessoais) e o das forças políticas (as relações estruturais entre conjuntos de relações sociais ou macropolítica). Trata-se de três níveis distintos de complexidade sobre os quais atuam os processos de singularização.

Quando se protagoniza a política a partir do terceiro nível – o da macropolítica – os outros dois níveis ou se tornam irrelevantes, ou passam a ser a matéria fundamental a ser regulada. Este último é o que ocorre com a arte quando é administrada pelos operadores do campo da arte: os processos de singularização tornam-se objetos categorizados e distribuídos em um território de visibilidade estável (por mais cambiante que a lógica da moda consiga apresentá-lo), o que favorece a reprodução do próprio sistema.

Por sua vez, a atual interpenetração entre arte e mercado (indústrias culturais, artistas profissionalizados, curadores, empresas, publicidade e circuitos de consumo) tende a fazer a arte fluir em todos os âmbitos da vida cotidiana, gerando uma multiplicidade de paisagens de surpreendente criatividade. Esses fluxos, entretanto, não viajam senão pelos canais que o mercado desenha e conduz. O atual campo da arte excede os âmbitos tradicionalmente culturais e transborda até os empresariais “culturalizando-o” todo, de modo que, se define seus próprios limites, mantém uma relação direta e contínua com as fábricas de consumo. Aqui, a macropolítica, estatal ou empresarial, é o desenho e controle dos espaços de flutuação em que prolifera a criatividade.

3. Suely Rolnik (2005) distingue uma microsensorialidade – a capacidade pré-perceptiva de um corpo de se conectar com o diagrama de fluxos do mundo – de uma macrosensorialidade – a cartografia de formas que a percepção desenha para organizar esses fluxos de maneira pragmática. A criação resulta de uma reciprocidade particular entre ambas. Um exemplo: Vera C. é capaz de falar a uma boa velocidade numa língua que improvisa a partir de todas as palavras que escutou durante sua vida, em vários idiomas. Às vezes lhe sobrevêm certas palavras, às vezes outras (nem todo seu vocabulário está atualizado em sua cabeça enquanto fala), mas sempre está conectada com essa reserva lingüística e constantemente a modifica em um uso diferente. O processo criativo consiste nessa passagem da língua materna, sempre ouvida, à língua até então jamais escutada por ninguém. Tradução da microsensorialidade à sua forma expressiva em um processo que não se estabiliza em nenhum de seus dois pólos.

Trata-se, então, de uma questão de fluxos contínuos: quanto mais fiéis ao leito que abrem em seu devir, tanto mais vibrantes e expressivos. Mas não é possível imaginar um fluxo vibrátil como uma forma que venha a posteriori, deslindada do processo. A forma é forma da vibratilidade, é sua expressão. Quando a forma se cria, aquilo que a produz está vibrando e ela mesma vibra. Por isso é que a forma sem corpo-mundo – o formalismo, mera captura das formas existentes – não vibra, nem nos faz vibrar, e que a pura vibração, desconectada dos processos pragmáticos nos atordoa e pode nos desintegrar. Nem vibratibilidade, nem forma, diz Rolnik, são, pois, redutíveis uma à outra. Ela diria que a criação é habitar o paradoxo entre a micro e a macrosensorialidade.

4. O que Deleuze e Guattari chamam de micropolítica consiste na análise e operação pelas quais se mantêm sempre ativos esses processos de singularização de modo que o nível molar – o das representações e das relações do tipo sujeito/objeto – seja sempre perfurado pelo molecular – o da economia do desejo e seus devires. A micropolítica poderia ser pensada, neste sentido, como uma política da sensorialidade, do corpo aberto ao mundo e produtor do mundo, que demanda de nós uma articulação criativa em todos os níveis de relação. Tratar-se-ia, pois, de habitar outro paradoxo: o da tensão irredutível entre micro e macropolítica.

Eis como toda prática artística contém virtualmente uma dimensão política que pede para ser atualizada. A prática – a obra de arte, por exemplo – é, em si mesma, uma criação de laços. (É Vera C. inventando seu idioma). O modo como esses laços proliferam em sua potência de atuar – transformando permanentemente seus limites – pode organizar uma política de segundo nível: uma certa comunidade de criadores. (Vera C. produz uma nova dimensão mundana habitada progressivamente por outros que, falando, forçam também a língua matriz e geram novas relações lingüísticas). Mas também pode enquadrar-se nos leitos que o mercado propõe: a comunidade de criadores passa a ser modulada pelo mercado. (Vera C. se converte em locutora-estrela da publicidade e nos vende seu próprio Dicionário da língua, de modo que terminamos falando o idioma que ela criou e que o mercado oficializa como novo estilo de fala e de vida). Se, por fim, essa prática chega a expressar sua própria forma política, afetará o terceiro nível, tornando-o mais favorável aos processos micropolíticos. Ampliará seu limite de ação, que é inteiramente inverso à idéia de ampliação dos limites do campo da arte.

Santiago Garcia Navarro

 

GUATARI, Felix e ROLNIK, Suely. Micropolítica. Cartografias do desejo. Vozes: Petrópolis, 1986.

ROLNIK, Suely. Lygia Clark, da obra ao acontecimento. Somos o molde a você cabe o sopro. Nantes: Museé de Beaux-Arts de Nantes; São Paulo: Pinacoteca do Estado, p.13, 2005.

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