Você está aqui: Página Inicial / Rede / Revista Número / numero Oito / Entrevista com Paulo Sergio Duarte_Revista Número 2006

Entrevista com Paulo Sergio Duarte_Revista Número 2006

Número: Você tem em seu currículo uma vasta atuação em órgãos públicos como a Funarte, o Paço imperial, entre outros. Como você avalia hoje as políticas públicas para as artes plásticas? E a atuação da Funarte?

Minha mais grata participação em órgãos públicos foi nas secretarias de educação da cidade e do estado do Rio de Janeiro na qualidade de auxiliar de Maria Yedda Linhares e Darcy Ribeiro. Ali pude conviver com espíritos abertos e generosos que haviam incorporado a escala correta dos problemas da sociedade brasileira. Quando se vive intensamente no seio desses problemas e suas possíveis soluções, certas questões levantadas por críticos de arte são, de fato, bastante ridículas, para não dizer mesquinhas. Sempre estive convencido que a maior parte de nossos problemas nas mais diversas áreas pode ser resolvida equacionando-se corretamente a política educacional. E acho que uma política pública na área da cultura e, em particular, nas artes visuais, é parte indispensável dessa política educacional; nunca seu acessório ou complemento, mas um de seus alicerces e participando de sua espinha dorsal. Por isso dediquei muitos anos da minha vida aos órgãos públicos e não a meus interesses privados. Só não me perguntem se valeu a pena... Nunca fui de grandes entusiasmos, apenas achava que podia haver soluções. Hoje sou mais cético.


Número: Gostaríamos de saber mais sobre a coleção ABC, que em nossa visão é uma das primeiras tentativas de se falar sobre artistas contemporâneos brasileiros. Os livros foram acompanhados de exposições? Quais eram os critérios que norteavam as escolhas dos artistas e dos críticos da coleção?

Existe a coleção de livros criada pela Funarte, pela então divisão de multimeios, depois departamento de editoração, na época chefiada pela escritora Ana Maria Miranda. A coleção Arte Brasileira Contemporânea vem sendo confundida com o programa Espaço ABC – Espaço Arte Brasileira Contemporânea, da mesma Funarte, que projetei e implantei. O Espaço ABC trabalhava lado a lado com a coleção apesar de ter suas próprias publicações. Os critérios que nortearam a coleção eram eminentemente cariocas e o Wesley Duke Lee entrou um pouco como Pilatos no Credo. Acredito que esse foi um erro que a Funarte começou a corrigir de maneira mais intensiva, só a partir de 1981, no campo das artes plásticas. Nessa área já havia um projeto nacional muito interessante chamado Arco-Íris, coordenado pelo Germano Blum, e que não era tão diferente do que hoje faz a Rede Nacional de Artes Visuais da Funarte. A coleção é um ano e meio anterior ao Espaço ABC; foi lançada no final de 1978 e continuou durante minha gestão no Instituto Nacional de Artes Plásticas (1981-1983), e a programação do Espaço ABC começou em maio de 1980, com a palestra de Carlos Nelson dos Santos, tendo como tema “Razões das transformações do espaço urbano”, e a exposição de Sonia Andrade. A conferência fazia todo sentido: afinal de contas começávamos nossa programação num parque de esculturas, na Lagoa Rodrigo de Freitas, onde antes existia a favela da Catacumba. Sua população foi removida à força para a Vila Kennedy, Cidade de Deus e Guaporé-Quitongo. Achei indispensável não recalcar essa memória do lugar.

Projetei o Espaço ABC, no final de 1979, com o objetivo explícito de abrir a discussão das artes visuais para públicos de outras áreas. Assim no seu primeiro ano de atividades, 1980, além das exposições (Sonia Andrade; Ecila Paraíso; Paulo Herkenhoff; Sergio Camargo; Tunga; José Resende; Waltercio Caldas e Antonio Manuel) foram realizados diversos ciclos de conferências sobre Arte e Filosofia, Arte e Arquitetura, Arte e Música, além de mostras de cinema brasileiro divergente do cinema novo. Foi lançada uma programação de música instrumental, aos domingos, nos jardins do parque, que durou anos. Mesmo depois das exposições de arte migrarem para o MAM-RJ, depois para o prédio da Funarte, em 1982 (naquela época, o próprio Museu Nacional de Belas Artes), a programação musical continuou com muito sucesso na Catacumba com o nome de Rioarte Instrumental.

O Espaço ABC foi uma estratégia conseqüente de inserção do debate sobre a arte contemporânea no âmbito de uma instituição pública de caráter nacional. É lógico que em momento algum achei que essas questões deviam dominar e monopolizar a instituição. Pelo seu próprio caráter público e nacional, o Instituto Nacional de Artes Plásticas - INAP - não deveria se transformar no Espaço ABC e vice-versa. Mantive, ao lado da programação do ABC, uma programação diversificada que atendia a interesses culturais muito diferenciados. Havia a participação, paralelamente ao trabalho curatorial especializado do ABC, outros trabalhos com a participação da Associação Brasileira de Críticos de Arte e da Associação Brasileira de Artistas Plásticos que legitimavam o caráter público da instituição. O fracasso só se deu quando se transformou o INAP num programa exclusivo das questões de ponta da arte contemporânea reservado a um seleto grupo de artistas. Existe uma radical diferença entre uma política pública de âmbito nacional e o pensamento do que existe de melhor na arte contemporânea. As experiências de linguagens de uns têm que conviver com as diferentes manifestações que têm que estar presentes em uma instituição pública de âmbito federal. O fechamento e a exclusividade do tratamento de certas questões era tudo que os conservadores queriam, e conseguiram: destruíram anos de um trabalho duramente construído. Até hoje, muitas pessoas em São Paulo não conhecem direito o que se passou realmente no âmbito institucional e fizeram algumas avaliações errôneas sobre o desmonte do trabalho do INAP.


Número: Você acha que esse projeto poderia ser repetido hoje com outros artistas?

Hoje as políticas públicas, na área das artes visuais, inclusive as de edições, desde o advento da Lei Rouanet, são conduzidas pelos departamentos de marketing institucional das empresas públicas e privadas. Eles administram os recursos públicos legalmente, segundo seus interesses. Esses marqueteiros culturais contam com muito, mas muito mesmo, mais recursos públicos que o próprio Ministério da Cultura. Tudo o que se faz no âmbito estritamente público é absolutamente ridículo quando se compara com o dinheiro público que fica disponível para as empresas através do uso da renúncia fiscal. Por isso, se esse projeto fosse atualizado e readequado para os tempos atuais, teria que ser realizado por uma empresa estatal ou privada. De qualquer forma, com a visão jurídica obtusa e extremamente limitada que está presente nos órgãos públicos, é muito melhor que esses livros sejam realizados por empresas privadas e, de preferência, em co-edição com boas editoras para garantir sua distribuição. Um livro editado pelo serviço público, como sempre disse, “já nasce obra rara”, e a coleção Arte Brasileira Contemporânea não foi exceção a essa regra. Foi mal distribuída. Acaba recebendo uma distribuição política compulsória e raramente chega às mãos dos verdadeiros interessados. Isso não quer dizer que a indústria de brindes de luxo à custa do erário, conduzida pelas estatais e por empresas privadas, faça chegar de fato às livrarias e às bibliotecas as suas publicações. Quando estas chegam às livrarias deveriam receber preços de capa condizentes com um produto que já saiu da gráfica pago pelo dinheiro do povo. Mas quando vendido nas prateleiras das livrarias, o que foi brinde, se torna um produto com uma margem de lucro absurda quando você pensa que ali já saiu tudo pago pelo dinheiro público.


Número:  Em alguns momentos você se mostra um entusiasta da aproximação das artes com as novas tecnologias. Você considera que a questão da técnica é central para pensarmos os trabalhos produzidos hoje? Em que circunstâncias os avanços tecnológicos podem ser uma possibilidade de democratização da arte? Existe algum risco para arte nessa aproximação?

Existe um engano aqui. Costumo dizer para meus alunos que é muito difícil ver arte que se utiliza de novas mídias mais contemporânea que uma maçã do Cézanne. Essa é minha visão como teórico e como crítico. Acredito que está claramente explicitada em pelo menos dois textos: “A idéia de progresso em arte” e “Chega de futuro?”, ambos publicados na coletânea A Trilha da Trama e outros textos sobre arte (Edição Funarte, 2004). Enquanto curador da Bienal do Mercosul, em 2005, achei que não devia excluir da mostra artistas que se utilizam de novos meios porque existe uma parte significativa da produção artística dedicando-se a essas investigações. Digamos que exercito a teoria e a crítica de modo mais autoral e a curadoria de uma grande exposição como o exercício de uma função pública e, por isso, menos pessoal.

A minha visão da técnica está fortemente marcada por aquela expressa filósofos como Adorno, Marcuse e Benjamin, que por sua vez é influenciada pela posição de Heidegger em A questão da técnica. Ela, sem sombra de dúvida, marcou aqueles pensadores de esquerda, apesar de nunca admitirem essa influência por razões estritamente políticas e ideológicas. Não acredito absolutamente em que as coisas são neutras e passivas e que tudo depende do uso que delas fazemos. Acho essa visão por demais ingênua. O problema das novas mídias é exatamente esse: por enquanto, com muita freqüência, o que aparece é mais a mídia que a obra, isto é, o trabalho aparece menos que a máquina. A técnica governa o artista. Como dizia Bresson, a respeito do cinema, quando um filme não tem nada a dizer, elogia-se a fotografia. Essa conversa de mídia tem um pouco disso; não é muito diferente da conversa de ceramistas e gravadores entre si sobre suas respectivas técnicas. Seja óleo, aquarela, cerâmica, gravura, fotografia, televisão, computador, ou qualquer outro meio, o que interessa é a potência poética da obra. Conversa de mídia é minudência, o que interessa é a arte.