O LUGAR DA CRÍTICA NA 27ª BIENAL SP, por Fernanda Pitta e Thais Rivitti
O lugar da crítica na 27ª Bienal de São Paulo
Ao visitar a 27ª Bienal surgiu-nos a pergunta: as escolhas curatoriais e o tom geral dos trabalhos deixam um lugar para a crítica? A impressão geral é de que boa parte dos trabalhos é refratária a um olhar externo, recusa um distanciamento que possa instaurar uma certa diferença, quesito necessário a qualquer apreciação crítica. Muitos dos trabalhos oscilam entre uma demanda de adesão irrestrita ou, de saída, desqualificam o observador que não se entrega completamente, como alguém insensível aos conteúdos que querem mobilizar.
Trabalhos como A Longa Marcha, que consiste na documentação de um projeto de mapeamento do imaginário popular chinês, refazendo o percurso do exército vermelho de Mao Tse Tung, apresentam uma hiperinflação de argumentos, legitimando-se, quase sempre, por algo que, de algum modo, “prescinde” deles.
Outros tiram sua força das experiências pessoais, seja dos artistas ou dos indivíduos observados, assemelhando-se a diários, depoimentos, confissões. Como os trabalhos de Virginia de Medeiros e Ahlam Shibli, com travestis, que instigam a seguinte questão: será que falam de coisas de um modo que não poderia ser dito de outra maneira? Esses trabalhos permitem um novo olhar para tais conteúdos, já conhecidos de todos, mas que não despertam mais que indiferença por parte de muitos? Seu objetivo, chamar a atenção para a problemática (social, psicológica, humana), da marginalização de homens que não se reconhecem no seu gênero e que buscam transformar-se radicalmente para encontrar a imagem que fazem de si, ou um lugar onde se sintam “em casa”, não poderia ser melhor atingido com outras formas de investigação? Não é ingênuo ou impotente transformá-los em imagens que terão o efeito de chocar ou chamar atenção por alguns instantes, mas que logo passarão a não se diferenciar das milhares de imagens produzidas, que circulam diariamente e perdem logo sua força de ruptura?
Parece bastar o fato dessas obras revelarem verdades, denunciarem desigualdades, sem atentar à transformação da própria linguagem ou estética dessa revelação. E esse é o cerne do problema: sem mudar a forma de apreensão desses conteúdos, será que é possível existir uma transformação real em sua compreensão? Em muitos desses trabalhos, não é possível questionar nem sua “eficácia” social, nem a sua realização formal (obviamente, não nos parece pertinente usar parâmetros de eficiência para avaliar uma produção de arte, mas sim poder questionar se seu próprios pressupostos, se sua economia interna, realizaram-se).Como intervenção no social, sua capacidade de transformação é, sem dúvida, muito frágil. Como realização formal, talvez, muito conservadora.
Felix Gonzalez-Torres, em entrevista de 1993, que compõe o guia da 27ª Bienal, perguntado sobre a preocupação formal presente no seu trabalho, respondera que as questões formais têm um significado específico, elas "retiram o seu significado do momento histórico". Ele provoca: "faça algumas perguntas para definir o que é estética. Estética de quem? Em que momento histórico? Em quais circunstâncias? Com que objetivos? E quem está decidindo a qualidade etc.? Então, de repente e muito rapidamente, você se dá conta de que as escolhas estéticas são políticas". É precisamente essa relação intrínseca entre estética e política, que vê a noção de “forma artística” como uma cristalização de conteúdos (históricos, sociais etc.), que passa ao largo de vários trabalhos. O que os legitima, muitas vezes, é apenas a boa vontade expressa em suas escolhas políticas, quando as escolhas estéticas ficam em segundo plano.
Existe, porém, avanços nessa edição da Bienal que não podem deixar de ser considerados. Ela começou com um processo seletivo, no qual três projetos de curadores brasileiros foram avaliados por pessoas da área. O projeto de Lisette Lagnado saiu vencedor e, portanto, com uma legitimação que certamente fez com que a relação sempre problemática entre a instituição e o curador corresse de modo relativamente tranqüilo. Espera-se que nos próximos anos a Fundação não apenas dê prosseguimento a esse procedimento, como também aumente sua publicidade. Se, em vez de restringir o acesso dos projetos ao júri, a Bienal os publicasse, a discussão poderia ser ampliada e melhor avaliada por todos os interessados. Saberíamos os motivos da escolha e o debate certamente seria qualificado.
Lagnado assumiu o cargo de curadora da Bienal após duas curadorias notoriamente insossas do alemão Alphons Hug. Este entrou no cargo para cobrir a saída de Ivo Mesquita, em conflito com a instituição após ter seu projeto de curadoria, já em andamento, adiado, em virtude do mega evento “Brasil 500 anos”, da Brasil Connects, então dirigida por Edmar Cid Ferreira. Em resumo, Hug foi chamado para preencher um vazio e, inacreditavelmente, acabou ficando por duas edições.
A curadora, depois de duas Bienais em que o debate sobre arte ficou estagnado, conseguiu reavivar com grande qualidade a discussão. Seu contato com a arte brasileira é antigo. Escreveu livros sobre artistas como Leonílson, Iberê Camargo, organizou e pesquisou os arquivos de Hélio Oiticica, participou de inúmeros programas como Rumos, do Itaú Cultural, entre vários outros. Toda essa bagagem foi trazida para dentro da Bienal.
Suas ações privilegiaram a idéia de processo (que deixa rastros e modifica) em detrimento daquela de evento (pontual, midiático). Uma série de seminários foi organizada por ela e por sua equipe desde o início do ano de 2006, trazendo importantes figuras do cenário nacional e internacional para discutir temas relativos a sua proposta curatorial. Nicola Bourriaud, Catherine David, entre outros, estiveram presentes para se manifestar sobre as noções e propostas do evento. E suas opiniões, nem sempre em consonância com a proposta da curadoria, foram importantes pontos de vista a que o público brasileiro teve acesso.
As residências realizadas nessa edição foram outra contribuição. Alguns artistas tiveram a oportunidade de permanecer em terras brasileiras (Rio Branco, Recife e São Paulo) e fazer seus trabalhos a partir de uma pesquisa in loco. É certamente difícil medir a eficiência de tal experiência. Mas se, por um lado, as residências no Acre não vão por si só criar uma “nova vida” para arte contemporânea por lá, alguns dos trabalhos realizados nas residências certamente ajudam a pensar o Brasil com um olhar menos viciado.
Uma análise crítica da curadoria, no entanto, não poderia deixar de mencionar o risco que envolve eleger dois artistas, Hélio Oiticica e Marcel Broodthaers, como o centro irradiador da reflexão.
Oiticica foi tomado de um ponto de vista muito sui generis: como teórico. Há aqui uma observação a ser feita: será que seus escritos podem ser considerados autônomos em relação a sua produção como artista? Será coerente usá-los para embasar um projeto de curadoria? O tema geral da mostra, “Como viver juntos”, certamente pode ser visto como algo que preocupou o artista ao longo da sua trajetória, fosse no contato com os moradores dos morros do Rio, fosse numa idéia de arte que se imiscui no tecido social. Contudo, boa parte do que ele realizou tinha um sentido anárquico, criava fissuras e desmontava os alicerces da estrutura social então estabelecida. Oiticica usava a experiência disruptora das drogas em seus trabalhos, agredia as convenções sociais mais enraizadas e transitava entre a loucura e razão. Isso não se vê na mostra que apresenta inúmeros trabalhos politicamente corretos sobre temas como sexualidade, exploração da pobreza, exclusão social e dominação cultural que mais falam da vontade de integração ao "sistema" social que de sua crítica.
O sentido com que sua produção foi entendida, a julgar pelos trabalhos expostos, o coloca quase como um bom moço, um moço engajado, e talvez nos faça ver a face que dele mais envelheceu: a promessa utópica de que era portador. Os trabalhos de Ana Mendieta, por sua vez, ganham atualidade: uma artista em atividade no mesmo período de Oiticica, mas para quem o corpo não era um agente libertador. Em sua série Silhuetas, exposta na Bienal, o corpo surge comprimido, sufocado, violentado e impotente. É um corpo que aspira ao inorgânico, à natureza, não sem alguma morbidez. Isso talvez revele, a contrapelo dos próprios pressupostos da exposição - que parece ver na artista um germe de uma arte política feminista e latina - a obsolescência de algumas propostas de Oiticica.
Com relação a Marcel Broodthaers, outro artista-chave para a mostra, sua produção foi interpretada apenas em alguns sentidos: no que diz respeito aos processos de catalogação e crítica institucional e na ligação que as artes plásticas mantém com a literatura. Mas, dessa forma, os caminhos abertos pelo artista belga aparecem novamente reconciliados. Seus questionamentos radicais, tais como saber o que é considerado arte, qual o papel do artista e da instituição, ganham prolongamentos assertivos e perdem a radicalidade inicial. Novamente, os trabalhos nessa Bienal parecem apaziguar a acidez dessas perguntas, institucionalizando o que, em Broodthaers, era refratário à institucionalização.
Thais Rivitti e Fernanda Pitta