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NÓS: O OUTRO, por Taisa Palhares

Nós: o outro

 

Como sabemos, a história da arte moderna brasileira tornou-se, nas últimas décadas, objeto de disputa. Salvo engano, desde a segunda metade dos anos 1970, críticos e teóricos da arte brasileira vêm se dedicando a repensar o modernismo no país. Grosso modo, defende-se que somente na década de 1950 ocorre um movimento de vanguarda no campo da visualidade com o projeto construtivo brasileiro, em oposição aos estudiosos que apontavam a Semana de Arte Moderna de 1922 como o marco inaugural da arte moderna entre nós. Entre os argumentos empregados, encontram-se, sobretudo, aqueles que dizem respeito à arte enquanto campo específico de conhecimento: apenas depois dos anos 1950, e em determinadas produções, ocorre a apreensão da arte moderna como linguagem autônoma e autocrítica.

Neste sentido, essa busca pela autonomia significa um afastamento, e até mesmo uma oposição, ao “primeiro modernismo” inaugurado nos anos 1920, para o qual a conquista de uma arte moderna era inseparável da busca pela identidade nacional. Internacionalismo versus nacionalismo: equilibrar os dois termos dessa equação, dialetizando essa dicotomia, é o desafio auto-imposto por esses modernistas de primeira hora. Mais do que isso, como nos informa o Manifesto Antropófago de Oswald de Andrade (escrito em 1928 sob o impacto da tela O Abaporu, de Tarsila do Amaral), trata-se de reconhecer na origem da cultura e da arte brasileiras essa dialética como o movimento próprio de sua formação. É provável que, do ponto de vista da produção artística, o projeto sedutor da “antropofagia cultural” tenha desaguado em obras bem menos atraentes. O que, de forma alguma, retira o interesse do manifesto em si como um momento importante de compreensão da dinâmica cultural brasileira, a fim de tensionar a relação “modelo europeu - cópia nacional”.  

Para o escritor o “primitivo”, o nós do binômio “europeu/branco/civilizado - brasileiro/mestiço/bom-selvagem”, identifica-se principalmente com os elementos míticos, oníricos e desrecalcados da cultura popular.  O frescor dessa abordagem ir-se-ia hipostasiar, nos anos seguintes, numa ideologia nacionalista de tonalidade populista cujo ápice se materializa nas produções de Candido Portinari e Di Cavalcanti, ambos empenhados em construir imagens de representatividade universal (e por isso genéricas) do povo e seu habitat, explorando, em muitos casos, o elemento exótico do tema. 

Retomando o fio da meada, o surgimento da arte abstrato-geométrica parece corresponder, no panorama da história da arte brasileira, à emancipação da arte com respeito ao tema e, conseqüentemente, o abandono por parte dos artistas visuais da pergunta pela identidade nacional. Por outro lado, significa também uma afirmação de independência. É conhecida a polêmica travada no âmbito da IV Bienal do Museu de Arte Moderna de São Paulo em 1957, na qual as declarações de Alfred Barr Jr., primeiro diretor do Museu de Arte Moderna de Nova Iorque, causam grande celeuma. Nesta edição, os Estados Unidos se viam representados pelos drippings de Jackson Pollock. O historiador norte-americano confessa-se irritado diante das experiências concretistas dos artistas latino-americanos, chamando a arte concreta desenvolvida no hemisfério de “Bauhausexercise”. Essa opinião causa a ira do crítico brasileiro Mário Pedrosa, que numa série de artigos publicados no Jornal do Brasil, critica o posicionamento dos intelectuais dos países hegemônicos que ora querem encontrar aqui uma versão tupiniquim da última tendência artística do centro (neste caso, a pintura “tachista”), ora partem em busca de “tabas de índios e de revoada de papagaios”, da arte autóctone. Para Pedrosa, no artigo “Pintura brasileira e gosto internacional”, eles “entendem por autóctone tudo que indique primitivismo, romantismo, selvagismo, isto é, no fundo, exotismo”. Neste sentido, o desenvolvimento da arte abstrato-geométrica na América Latina, na contramão das correntes internacionais, revelaria aos olhos de esquerda de Pedrosa, um “sentimento de independência”, um estado de espírito “muito auspicioso, e é necessário preservá-lo de todas as maneiras, pois será na medida de sua preservação que algo de novo e especificamente nosso poderá surgir”. A defesa de um antiexotismo, por parte de Pedrosa, não significava, como sabemos, o desprezo pela cultura popular: seu projeto para o Museu das Origens (1978) pressupunha cinco museus independentes, mas orgânicos, a saber: o museu do índio, o museu da arte virgem (do inconsciente), o museu de arte moderna, o museu do negro e o museu de artes populares. Em si, tal projeto representaria a utopia de um país culturalmente “atualizado” em diálogo permanente com suas raízes, o que, em longo prazo, consolidaria publicamente uma tradição autônoma. As conseqüências de seu malogro são sentidas por nós até hoje que continuamos ignorando sistematicamente nossas manifestações visuais, e que às voltas com uma história da arte imaginária (pois esta não pode ser conferida de forma satisfatória em quase nenhum espaço público) ainda continuamos comprando e vendendo a idéia da positividade de viver num país “sem tradição”, aberto a inúmeras possibilidades e onde tudo ainda pode ser feito.

O penetrável Tropicália de Hélio Oiticica, hoje incensado internacionalmente, é montado pela primeira vez em 1967 na exposição Nova Objetividade Brasileira e discute de maneira irônica os símbolos de uma “brasilidade”. Como assinala Zílio, em Da antropofagia à tropicália, uma das conseqüências mais interessantes do trabalho foi o processo de recuperação que sofreu. Oiticica afirmou, dez anos depois de sua primeira apresentação, que:

“O próprio termo Tropicália era para definitivamente colocar de maneira óbvia o problema da imagem... Todas estas coisas da imagem óbvia da tropicalidade, que tinham arara, plantas, areia, não eram para ser tomadas como uma escola (...) tudo o que passou a ser abacaxi e Carmem Miranda e não sei o que passou a ser símbolo do tropicalismo, exatamente o oposto do que eu queria. Tropicália era exatamente para acabar com isso (...) era até certo ponto dadá, era a imagem óbvia, era o óbvio ululante (...) Foi exatamente o oposto que foi feito, todo mundo passou a pintar palmeiras e a fazer cenários de palmeiras e botar araras em tudo...”.     

A pergunta é: até que ponto, ainda hoje, estamos submetidos, enquanto produtores de uma arte “outra”, no campo da globalização hegemônica, aos clichês ocidentais sobre os trópicos dos quais Oiticica queria se libertar? Conseguimos enfim nos impor pela qualidade do que fazemos, ou o nicho reservado a nossa arte no exterior ainda é aquele destinado ao “diferente”: o do corpo livre, o da cordialidade e tolerância social, o da sensorialidade à flor da pele etc, etc, etc. Tudo, obviamente, que não seja igual à racionalidade da arte ocidental. Se, como afirma Moacir dos Anjos, hoje as identidades são transculturais (cf. Local/global: arte em trânsito), o Brasil já consegue ser reconhecido e se reconhecer como um país diverso, de múltiplas regiões, sem uma identidade monolítica e sem tensões? E ainda, os artistas brasileiros recentemente incorporados ao acervo de grandes museus, como MoMA, Tate ou Musée National d’Art Moderne, exercem a função corrosiva preconizada por Oiticica, destruindo a imagem “exótica” de nossa identidade? É fato que boa parte dos artistas brasileiros contemporâneos que conseguem se inserir na dinâmica da história da arte internacional (cujos lances teóricos continuam a ser dados pelos Estados Unidos e pela Europa), nomes como Marepe e Ernesto Neto, respondem a uma demanda de renovação conceitual e mercadológica. Mas, ao fazerem isso, têm realmente o poder de reverter a lógica do olhar estrangeiro que busca aqui a alternativa feliz para a falência de sua civilização capitalista (por acaso, presenciei, numa exposição individual de Neto em uma grande galeria parisiense, o seguinte comentário por parte de um espectador francês: “nada mal para um brasileiro”)? Somos ainda o espelho reverso do outro?  Ou conseguimos avançar, mostrando que esse nós-outro também é parte constitutiva dessa civilização em decadência, partilhando de problemas muito parecidos? E que, por essas plagas, nem tudo é experiência sensorial, paraíso corporal e precariedade material exótica, mas também razão instrumental, intolerância racial e discriminação social veladas, violência e repressão institucionalizadas.

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                    Taisa Helena Pascale Palhares