O SUBLIME NO EXTREMO, por Guy Amado
O que pode ser mostrado não deve ser dito, já afirmava Wittgenstein em seu Tractatus. Mas há aquilo que, ainda que se apresente aos olhos, segue se ressentindo de uma instância de qualificação para além das que a linguagem escrita ou falada podem propiciar. E é nessa categoria um tanto imprecisa que proponho alocar algo inusitadamente a prática do extreme surf, ou surfe de ondas gigantes. Antes de tudo, é preciso abandonar a concepção genérica de surfe que se tende a ter em mente: estamos falando de uma modalidade à parte, que rompe com os parâmetros usuais quando se pensa nesse esporte. Trata-se de uma atividade que extrapola em muito os limites convencionais envolvidos no ato de deslizar sobre ondas; grosseiramente, consistiria antes numa experiência de sobreviver ao ato de desafiar ondas de mais de 20, 25 metros. Uma experiência-limite por excelência.
A febre de "caçadores de ondas gigantes" é um fenômeno relativamente recente no cenário do surfe: apenas nos últimos 12 anos, num cálculo aproximado, passou a ser difundido e observado com mais regularidade. Impelidos por uma pulsão em buscar novos limites, inserir um "algo mais" em sua atividade rotineira, alguns big riders - surfistas especializados em ondas grandes, geralmente mais maduros –, perceberam a possibilidade de, amparados por software desenvolvido especialmente para este fim, prever e localizar condições extremas de swell [conjunção de fatores naturais que regem a prática do surfe, basicamente vento e ondulação], não raro em mar aberto, longe da costa. Aos poucos foram sendo introduzidas novas técnicas à prática deste novo surfe, como a utilização de jet-skis para lançar o surfista na onda ainda em formação – pois são grandes demais para serem "remadas" convencionalmente –, além de resgatá-lo em caso de queda, e pranchas especiais, maiores, mais estáveis e às quais são atados os pés do surfista. O que se tem então é uma combinação única de equipamentos especiais, homens diferenciados, com treinamento específico [físico e mental] para encarar condições extremas de mar e ondas enormes, não raro com mais de 20 metros de face. As ondulações mais famosas do gênero localizam-se no litoral da baixa Califórnia [a impressionante "Cortez Banks", onda oceânica, e "Mavericks"] e no Havaí ["Jaws"], além de outros pontos mundo afora, ainda não completamente "oficializados". Quando se está sobre um desses monstros, é quase como se não fosse mais água, mas uma massa apenas tecnicamente líquida, com a potência de dezenas de toneladas por metro cúbico. Um moedor de carne em potencial. Um lapso de equilíbrio, um erro de cálculo, e isso pode acarretar conseqüências drásticas. Se não pelo impacto, pelo risco de afogamento - nos últimos dez anos, pelo menos três experientes surfistas perderam a vida em vagalhões deste calibre no Havaí e na Califórnia. Um esporte para poucos, enfim.
Mas para além dos aspectos inerentemente desafiadores do extreme surf, é possível entrever também um componente potencialmente estético envolvido nessa prática. Quando se vê um desses surfistas em ação, sua pequena figura traçando linhas incertas sobre a monumental superfície aquosa que a todo momento parece prestes a engoli-lo – o que eventualmente acontece – é difícil permanecer incólume: o observador, esteja ele familiarizado ou não com este universo imagético, é acometido por um sentimento arrebatador, da ordem do deslumbramento. Deslumbramento que mantém uma aproximação mais e menos direta com a categoria do sublime - conceito da teoria estética longe de comportar uma acepção definida ou estanque, é verdade -, em suas diversas chaves interpretativas possíveis; aqui, poderia se pensar no viés da harmonia procurada, por exemplo, "aquela que se busca alcançar", atrelada à concepção de experiência puramente subjetiva, "daquilo que é absolutamente grande", como sustentava Kant [em sua Crítica do Juízo]: uma experiência que remete a algo além da esfera do sensível, uma representação de difícil tradução [visual ou não] objetiva. Kant via ainda na experiência do sublime a realização das mais elevadas capacidades do ser humano, em que a potência do real contida na contemplação estética é experimentada como uma instância de afirmação prazerosa pelo observador. O filósofo, por sua vez, havia sido influenciado pelas idéias de Edmund Burke, outro pensador referencial na teorização do sublime e para quem sua essência estava relacionada ao infinito e, sobretudo, ao sentimento do terror. Para Burke, "tudo aquilo que serve para, de algum modo, excitar as idéias de dor e perigo [...] ou opera de maneira análoga ao terror, é origem do sublime; ou seja, é causador da mais forte emoção que a mente é capaz de sentir" [em sua Investigação filosófica sobre a origem de nossas idéias do sublime e do belo]. Harmonia, incomensurabilidade, prazer, terror... Mesmo aqui elencados de modo um tanto irresponsável, estes elementos parecem apontar rebatimentos imediatos no domínio do surfe de ondas gigantes.
E a propósito do sublime e sua utilização a serviço de uma proposição que procura qualificar uma modalidade esportiva como um possível ato estético, pode-se somar a esta linha de raciocínio um exemplo tão óbvio quanto adequado na busca por tentar evidenciar estes paralelos: a pintura do alemão Caspar David Friedrich. Uma produção que gradualmente passou a ser apreendida como uma espécie de arquétipo do romantismo, na exarcebação da pequenez humana frente à monumentalidade imperiosa da natureza; e que se mostra investida de um forte sentido de espiritualidade, no afã de expressar o transcendental fora do plano religioso num sentido mais ortodoxo [ainda que se valendo de uma iconografia plena de simbolismos sacros]. Estes e outros atributos [a solidão, a melancolia, etc.] colaboraram para que sua pintura se convertesse, ou assim se tornasse passível de ser interpretada, em uma espécie de "ilustração" do conceito de sublime. E alguns dos aspectos presentes na produção de Friedrich permitem detectar afinidades possíveis com a prática do extreme surf: a escala amplificada na relação homem/natureza, o componente de solitude, a inefável qualidade daquilo que anima e atormenta o espírito humano. Mesmo algumas diferenças essenciais, como a mudança de registro no enfoque da natureza - o ímpeto que, no caso destes surfistas, move o homem a tentar domar forças naturais em sua plenitude se contrapõe frontalmente à atitude de reverente e passiva contemplação característica da obra do pintor germânico – terminam por estabelecer contrapontos que colaboram para reforçar essas aproximações.
O fato é que esta brevíssima digressão pelo território - pantanoso - do sublime se pretendia tão somente uma verificação das possibilidades de reivindicar o estatuto de fenômeno estético para a prática do surfe de ondas gigantes, sugerindo que a teoria estética e a história da arte fornecem subsídios para esta aproximação. Se esta proposição se mostra, contudo, efetivamente consistente à luz destes conceitos, não estou totalmente certo. Só tenho certeza de meu encantamento frente ao extreme surf.