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SOBRE O TEMPO E O ATEMPORAL NA ARTE, por Cauê Alves

Sobre o tempo e o atemporal na arte

 

“Há também uma historicidade viva, de que só oferece a imagem diluída: a que anima o pintor em ação, quando num único gesto enlaça a tradição que retoma à tradição que funda, que num passe o reúne a tudo que se pintara no mundo sem que precise abandonar seu espaço, seu tempo, seu bendito trabalho maldito, e que reconcilia as pinturas por exprimirem uma a uma a existência inteira, em vez de as reconciliar todas como acabadas e como outros tantos gestos inúteis.”

                              M. Merleau-Ponty, A linguagem indireta e as vozes do silêncio

 

 

Um dos principais pressupostos de uma obra de arte talvez seja o fato dela sempre nos possibilitar uma renovada e próxima experiência, um interminável recomeço. E essa experiência não pode ser dissociada do tempo, afinal nosso contato com ela nunca acontece fora tempo e da história. Mesmo que a gente não viva mais no período em que uma obra foi realizada, sentidos dela nunca deixam de ser presentes. E isso acontece mesmo com trabalhos produzidos nos tempos mais remotos, pelas culturas mais distantes, das quais temos pouca ou nenhuma informação. Talvez o que continue presente não sejam seus sentidos, mas justamente aquilo que é percebido como falta, que será completado pela posteridade, pela recepção e pelos artistas que ainda surgirão. Paradoxalmente, o que falta a uma obra de arte é o que ela tem de excesso, de abertura, mas também de inacabado: tudo aquilo que não seja a intenção inicial do artista, os significados já antecipados, estabelecidos, aquilo que ela realiza plenamente. Esse excesso é o que não foi pensado, o que ficou por fazer e estimula tanto outros pensamentos como a produção de outras obras. Afinal, não existe e jamais existirá um trabalho de arte definitivo, o último. Sempre haverá o seguinte e um próximo...

Não é à toa que não nos cansamos de retornar a um museu para reencontrar aquele trabalho que tanto admiramos. Poder voltar a ele infinitas vezes nos faz perceber o quanto a arte é inesgotável, ou seja, cada vez que a percebemos participamos dela como nunca havíamos feito antes. Entretanto, esse retorno jamais pode ser uma obrigação sob pena de tornar-se burocrático e simplesmente extirpar o que há de mais próprio da arte: a singularidade da experiência que ela propicia. Muito já foi dito sobre a necessidade de se saber voltar a uma obra como se fosse pela primeira vez.

A singularidade de um trabalho de arte não se opõe ao que há de universal nele. Talvez esse seja um de seus principais atributos, e isso ocorre especialmente quando ele consegue sedimentar questões que ultrapassam a expressão de um único sujeito e, no contato com o outro, repercute e preenche vazios que antes dele não existam. Esse dado universal da arte não pode ser separado do que a particulariza, do lugar em que foi feita e da experiência que ela criou. Mas se a arte está inevitavelmente atrelada ao período em que foi feita – e ao isolá-la do contexto em que foi produzida pode haver prejuízo para a sua compreensão, afinal ela não é completamente autônoma em relação ao mundo que habita –, sua relação com o seu presente jamais poderia ser mecânica ou automática. Inversamente, do mesmo modo que uma obra pode nos ajudar a compreender o entorno em que foi realizada, o espaço em que foi concebida, ela nos permite refletir sobre o seu e o nosso tempo.

Uma boa obra tem a capacidade de nos dizer algo sobre o espírito de seu tempo de um modo que não poderia ser diferente. Assim como a recepção dela pela posteridade também nos ajuda a compreender seu tempo. Não foram poucos os artistas, e a arte moderna em especial se voltou sobre essa questão, que justamente buscaram se opor e negar o espírito de seu próprio tempo. Não dá para esquecer os conflitos que a arte moderna gerou e continua a gerar. Já na história da filosofia, Nietzsche talvez seja o pensador que recusou como ninguém certas proposições de seu tempo porque compreendeu que aqueles que se identificam completamente com sua época são os que primeiros fracassam e que, como o próprio tempo, passam e são aniquilados.

Nenhuma obra dura eternamente; por mais conceitual que seja ela tem a sua materialidade como algo incontornável para sua aparição. Ela é aquilo que a constitui e não raro algumas obras são datadas por historiadores a partir da investigação sobre os materiais e técnicas nelas empregado. Obviamente um trabalho de fotografia não poderia ter sido feito, em termos técnicos, antes da invenção dela. E como sabemos, um novo meio não torna os anteriores necessariamente obsoletos, muito pelo contrário; no caso da fotografia a tradição da pintura foi essencial para a constituição de sua própria tradição e do seu entrelaçamento com outras. Por isso não é apenas a tecnologia contemporânea que vai definir a atualidade de um trabalho de arte. Talvez seja preciso certo distanciamento do mundo para conseguir estar presente nele com os pés mais firmes e conseguir enlaçar tradições. Por falta disso, há muita obra que não consegue nem por um segundo se descolar do seu próprio tempo e que já nasce morta, mas nada impede que alguém consiga ressuscitá-la tempos depois, mesmo que ela não pretenda ficar para a posteridade. Há algo na arte que dificilmente pode ser desprezado, e que é atemporal. Conseguir guardar certa distância de seu tempo sem deixar de refletir sobre seu momento histórico e seu lugar é um feito que poucos realizam.

Mas se apenas a técnica ou meio não são suficientes para tornar um trabalho de arte cidadão de seu próprio tempo, talvez seja o modo como ele se instaura no mundo o fundamental. E como o que uma boa obra de arte diz e o modo como o faz não pré-existem a ela mesma, ou seja, como ela torna presente significações em vez de simplesmente traduzi-las para um novo suporte ou matéria – conseguindo ir além da sua materialidade, do visível e do sensível –, ela jamais poderá ser reduzida a um instrumento. É nesse sentido que se diz que ela é instituinte, porque ela não se contenta com o já instituído, mas ela institui outras significações até então inéditas.

Mais do que isso, a arte possui o que se costuma chamar de fecundidade, ela tem a capacidade de dar origem, de propiciar algo que ela não previu, de instigar o outro, o futuro, além de nos fazer rever o passado. Retomar o passado, seja por ruptura ou continuidade, se abrir para o que ainda virá, talvez fundando uma nova tradição, para ser retomada, de um modo jamais pensado, é algo próprio da arte.

Sem nunca sair do tempo, ela consegue abri-lo por dentro e instalar nele uma eternidade provisória. Isso só é possível se entendermos que cada instante traz consigo o momento que o precede e o sucede. É por isso que o tempo vivido é contínuo, possui duração e nunca pode ser reduzido a uma soma de instantes isolados. Ele é fluxo, engendramento de momentos e não cronologia ou série de acontecimentos desconexos ou ligados mecanicamente, como pelo ponteiro de um relógio. Desse modo, o tempo não pode ser dividido, espacializado e medido numérica e quantitativamente, pois ele é passagem, pura mobilidade, duração, como conceituou Bergson. Embora constituído por estados sucessivos, esses estados não se repetem, estão sempre se diferenciando um do outro, num constante jorro de novidade.

Assim, infiltrada no tempo, cada obra de arte carrega seu próprio devir e porvir, é gênese interminável, trabalho infinito e, em vez de reproduzir o tempo, ela o reinventa para que ele continue transcorrendo e para que ela não cesse de desafiá-lo.



Cauê Alves