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ENTREVISTA com GLÓRIA FERREIRA

Número entrevista Glória Ferreira

 
Glória, queríamos que você falasse um pouco de sua formação. E que autores te formaram, ou que foram particularmente importantes para você...


Com uma formação universitária bastante caótica devido aos períodos de clandestinidade e exílio, a minha grande escola no campo da arte foi ter tido o privilégio de trabalhar (logo que voltei ao Brasil por ocasião da anistia) no Projeto ABC (Arte Brasileira Contemporânea), concebido e dirigido por Paulo Sergio Duarte, no âmbito do Instituto Nacional de Artes Plásticas da Funarte.  Iniciado em 1980, o Projeto ABC caracterizou-se pela sua exemplaridade ao assegurar um espaço para exposições significativas de artistas contemporâneos, promover a integração a outras áreas da cultura, com uma série de debates, e estabelecer uma linha editorial com os Cadernos de Textos, catálogos das exposições (algo então bem precário no nosso meio) e também pesquisas sobre a história recente da arte brasileira. É nesse universo, inicialmente como produtora e depois coordenadora, que se dá a minha, digamos, iniciação nas problemáticas da arte contemporânea. No campo particular do estudo de história da arte, desenvolvi uma ampla pesquisa sobre o trabalho de Amilcar de Castro, apresentada como monografia final do Curso de Especialização em Arte e Arquitetura no Brasil, PUC-RJ e, posteriormente, a tese de doutorado em história da arte, na Sorbonne, sobre o trabalho de Walter De Maria.


Como você vê as relações – diferenças, aproximações e contrapontos - entre a crítica e a história da arte, e em que medida elas afloram em teu perfil de atividade profissional?


A crítica de arte, consistindo essencialmente em julgamento de valor, se demarcou desde o seu surgimento, no século 18, a partir das proposições históricas, técnicas ou pedagógicas, enfim, dos "protocolos" de ateliê. O seu legado, porém, tem construído um solo a partir do qual se desenvolve a reflexão historiográfica, em particular, sobre a arte moderna e contemporânea. A falência dos parâmetros normativos da história da arte e da sua suposta universalidade  coloca a exigência de uma permamente crítica da história  e de sua lógica interna pretensamente linear e sem fraturas, como sustentada pelo modernismo. Se os embates e conflitos entre os artistas e a crítica de arte perpassam a história da arte dos últimos séculos, a inscrição do artista na esfera da crítica, particularmente a partir dos anos 60, tornou agudos os debates sobre a crítica de arte, seus critérios e pertinência histórica, dando indícios de profundas transformações da atuação crítica. Cabe ressaltar que não só grande parte da reflexão sobre a arte tem sido, ao longo da modernidade, desenvolvida pelos artistas, embora recalcada pela historiografia, como também a entrada dos artistas no terreno da crítica se dá associada às profundas reavaliações da própria história da arte. 

Quanto às aproximações e contrapontos entre a história e a crítica de arte, creio que a demarcação histórica, ou seja, a localização do contexto histórico de uma obra de arte faz parte da articulação de questões que envolvem a abordagem histórico-crítica, sem, contudo, tomar a “história” como um dado a priori.  Como indica Hubert Damisch, é pensando “com” a obra de arte em uma articulação de natureza teórica, que esta pode revelar seu universo de idéias e dimensão histórica.

 

Tomando mais localizadamente sua atuação como organizadora e/ou coordenadora de compilações [essenciais] de textos de arte, como se deu o processo de eleger nomes, obras e autores; e que critérios balizaram essas escolhas? E em que medida é possível [se você achar possível] pensar um espaço para o lugar de autor desse ponto de vista, no exercício desta atividade?

 

Talvez possamos traçar equivalências entre a organização de antologias de textos e a curadoria de exposições, como processos de definição de eixos conceituais a partir do qual as proposições e reflexões estabelecem convivências e diálogos, revelando assim novas articulações e sentidos latentes. A relevância das coletâneas nas últimas décadas não está, creio, dissociada da dispersão e dificuldade do discurso em situar e avaliar a produção atual diante da singularidade das obras e diluição dos limites entre os gêneros. Aliás, são recorrentes as antologias de textos de autores, indicando o caráter mais ensaístico das atuais análises. Assim, se autoria há, ela é partilhada e responde por esses eixos conceituais. De modo sucinto, o partido editorial adotado no trabalho conjunto com Cecilia Cotrim, privilegiou, em Clement Greenberg e o debate crítico (1997), o debate que propiciasse novas abordagens do próprio texto greenberguiano. Nos Escritos de artistas anos 60/70 (2006), ressaltamos o diálogo entre a pluralidade de vozes, capaz de estabelecer mediações entre o caráter singular das reflexões e seu sentido coletivo, histórico. Por sua vez, a coletânea Crítica de arte no Brasil. Temáticas contemporâneas (Funarte, 2006), para a qual contei com a colaboração de Izabela Pucú e Fernanda Lopes, apresenta um amplo conjunto da crítica de poetas-críticos, críticos e artistas estruturados em sete grandes núcleos temáticos, como um debate em processo sobre questões recorrentes e constitutivas da cena artística brasileira desde os anos 50.

 

Queríamos te ouvir falar um pouco de seu trabalho à frente da Arte & Ensaios, publicação acadêmica que cumpre importante papel no adensamento de um debate crítico e na difusão da teoria de arte no país. Aproveitamos para emendar te pedindo impressões acerca do mercado editorial para publicações em arte no Brasil, das sabidas lacunas/hiatos em teoria e historiografia da arte no país, nesse setor...esse quadro tem melhorado, a seu ver? E ainda, como tem sido a experiência de coordenar a "Coleção Arte+"?


A linha editorial de Arte&Ensaios tem buscado conjugar os propósitos acadêmicos de dar visibilidade às pesquisas de mestrandos e doutorandos das diferentes áreas de concentração do Programa de Pós-Gradução em Artes Visuais, a apresentação de contribuições de origens diversas que se identifiquem e correspondam aos interesses genuínos da atualidade artística brasileira e universal, e, com a organização de temáticas específicas, a contribuição para o debate sobre a condição da arte e a interpretação de diferentes momentos da História da Arte. Foi, assim, disponibilizado em português um expressivo conjunto de textos de autores com reflexões sobre questões centrais para o campo da arte. Na edição de 2006, a seção “Temáticas” apresenta, a partir de enfoques diferenciados sobre a exposição como lugar de inscrição do trabalho de arte, textos de Rosalind Krauss, Daniel Soutif, Katharina Hegewich, Thomas MacEvilley e uma entrevista de Harald Szeemann a Carolle Thea. A colaboração de professores e estudantes tem permeado a revista com artigos, resumos de monografias, resenhas e trabalhos inéditos, sendo decisiva a participação dos mestrandos e doutorandos na sua equipe editorial. Às capas realizadas, especialmente para a revista, por Lygia Pape, Amílcar de Castro, Cildo Meireles, Antonio Dias, Aluísio Carvão, Abraham Palatnik, Eduardo Sued, Carmela Gross e Carlos Zilio, se somam importantes depoimentos desses artistas sobre suas formações, trajetórias e opções estéticas, constituindo um corpus significativo de reflexão sobre a prática artística no nosso meio.

Embora insuficiente, é notória a expansão do mercado editorial para publicações em arte no Brasil, ressaltando-se os livros monográficos sobre os artistas. Torna-se premente, creio, uma política sistemática de incentivo do governo para publicações na medida em que são precárias as edições de pesquisas, não apenas as acadêmicas, que vêm sendo produzidas em diversas instâncias. Dirigida a um público amplo, o objetivo da Coleção Arte+ de apresentar questões relativas à conceituação da arte, sua prática e recepção, revela-se viável, e necessária, diante desse fecundo manancial de pesquisas existentes.    

 

Como você vê a escassez de opções, em nível acadêmico, para a formação e aprofundamento teórico em crítica e história da arte no país? São praticamente inexistentes os cursos de graduação em teoria da arte por aqui [à exceção da recente opção criada na Uerj, salvo engano]...a saída ainda seria, além do auto-didatismo, estudar fora?

 

De fato, a escassez de opções é enorme. Pergunto-me se essa situação não estaria relacionada à dificuldade, mais estrutural, de pensarmos a nossa própria inserção na história da arte.

 

A propósito de sua também extensa atuação como curadora - e do mote da próxima edição da Arte & Ensaios, que segundo nos consta será em torno da produção artística em vigor nos últimos 10 anos no Brasil -, você poderia emitir impressões acerca dessa movimentação? Seria também uma forma de saber um pouco como você vê a arte brasileira hoje ["arte brasileira" não entendida como uma 'categoria', claro, mas como um corpo de produções diversificado e plural]... 

 

Tendo a crer que o horizonte estético-teórico do pensamento sobre arte no Brasil postulado a partir dos anos 1950, particularmente pelo neoconcretismo, conjugado à exigência de uma história crítica da arte brasileira e da arte moderna, tem propiciado a possibilidade de uma pluralidade de produção artística  de grande riqueza e qualidade, bem como de uma reflexão teórica importante. As precariedades e adversidades são, contudo, como sabemos, imensas, o que, no atual momento de acelerada globalização, não deixam de acentuar a assimetria das trocas, exigindo que não esqueçamos o necessário diálogo entre a singularidade da arte aqui produzida e a de outras regiões igualmente periféricas.