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INFINITO E FINITO NA FILOSOFIA, por Eduardo Brandão

 

Imagine-se, leitor, como bibliotecário em uma biblioteca infinita, em que todos os livros tivessem uma mesma capa, por exemplo branca, sem qualquer inscrição. Sua missão seria compreender esse acervo. Bem, se considerarmos o bibliotecário um filósofo, eis aí uma aproximação com a sua investigação acerca do infinito. Uma primeira tarefa seria tentar defini-lo. Na filosofia, encontramos várias maneiras.

Como não poderia deixar de ser, um primeiro sentido remete à quantificação desse infinito, e tem naturalmente uma interface com a matemática, em alguns casos. Nesse registro, fala-se em infinito potencial (como algo que pode tornar-se infinito – algo indefinido ou infinitamente grande: encontraremos uma discussão sobre esse infinito, por exemplo, no livro III da Física de Aristóteles); e em infinito atual (o que é maior atualmente do que qualquer quantidade dada da mesma natureza: o que significou garantir, com a matemática do século XIX – George Cantor, por exemplo – que a parte equivale ao todo). Dentro dessa perspectiva, pode-se falar também em uma distinção entre um infinito relativo (sem nenhum limite assinalável – o infinitamente grande ou pequeno) e um infinito absoluto (sem nenhum limite possível): nesta última acepção, estamos fora do conceito de grandeza. Existem na filosofia, no entanto, inúmeras outras concepções de infinito, de modo que qualquer tentativa de classificação da noção sempre carrega consigo seus limites. Nesse sentido, explicitar alguns usos do infinito na filosofia ajuda a preencher algumas lacunas.

A partir da noção de infinito absoluto (que difere em termos qualitativos, e não quantitativos, dos outros sentidos apresentados) pode-se pensar em um dos principais empregos do infinito na filosofia: o teológico. Pelo menos desde o neoplatonismo de Plotino, o infinito, ao ser associado ao seu Uno original, pode ter essa referência, em maior ou menor grau, ao divino. Nesse percurso, o infinito será associado à figura do Deus cristão na filosofia medieval: Duns Scot, por exemplo, sustenta que o infinito é um modo intrínseco de Deus. Em torno dessas relações articulam-se (já desde os gregos, note-se) outras noções clássicas da filosofia, como ser e nada, essência e existência, forma e matéria – consulte-se, por exemplo, o tratamento da noção de infinito em Tomás de Aquino. Voltemos ao exemplo do acervo infinito da biblioteca: para conhecer o acervo, seria necessário também examinar cada livro individualmente. Numa analogia tanto grosseira como ilustrativa, esses pares de noções filosóficas (que são, naturalmente, usadas em sentido mais amplo – imagine-se, por exemplo, o mundo no lugar da biblioteca) buscariam explicar a relação entre os livros e o acervo: assim, conhecer o acervo é identificar cada livro; e é também preencher sua capa branca, conhecer o conteúdo de cada obra, determiná-la. Sem uma tal operação, dificilmente conheceríamos as características do acervo. Como se, para conhecê-lo, fosse preciso negá-lo enquanto totalidade (determinando algumas de suas partes) ou, em outros termos: o infinito só se dá a conhecer a partir do finito.

Esse jogo entre finito e infinito ganha novos contornos (ou talvez: explicita temas latentes) com a entrada em cena da modernidade filosófica (que a maioria dos intérpretes julga iniciada com Descartes, no século XVII), pela construção de uma nova noção de subjetividade. Com esse dado novo, trata-se desde então de pensar esse infinito diante de sua relação com um novo lugar da finitude, o sujeito. É nesse registro, por exemplo, que também se podem entender as relações entre o sujeito e Deus nas filosofias de Descartes, Leibniz, Espinosa e Malebranche, por exemplo – Merleau-Ponty (em Signos, no artigo Por toda parte e em parte alguma), vendo nesse período do século  XVII uma passagem não problemática entre finitude e infinitude, chamará esse período de grande racionalismo, marcado pela idéia de um infinito positivo (poderíamos dizer, nos termos acima: absoluto). Mas o preço dessa noção de subjetividade será cobrado já com Hume, e contabilizará seu custo exemplar na filosofia de Kant: o sujeito, então protagonista do conhecimento, fará da finitude a marca registrada do saber humano e a noção de infinitude só encontrará novamente um lugar claramente privilegiado na moral kantiana – relacionada ao campo do conhecimento prático – onde surgirá vinculada às idéias de imortalidade da alma e de Deus e, portanto, à idéia de liberdade.

O criticismo kantiano deixa como questão à posteridade a passagem problemática entre finitude e infinitude, não autorizada como conhecimento teórico e legada como tarefa – não por acaso, infinita – à moral. Para ilustrar, uma busca do chamado idealismo alemão, no século XIX – cujos representantes privilegiados seriam Fichte, Schelling e Hegel – é calcificar essa fratura que Kant produziu entre finito e infinito e, assim, pavimentar a via entre teoria e prática, entre necessidade e liberdade (conceito que também remete ao infinito): não será por acaso que todos serão sistemas da liberdade. O Absoluto, em Hegel, é uma espécie de resumo desta reconquista do infinito – e, sintomaticamente, Deus será uma das figuras do Absoluto, este personificado, digamos, como espírito, espécie de hipersubjetividade. Todos no registro da analítica da finitude, diríamos inspirados, em parte, em Foucault (As palavras e as coisas).

Este é, assim, um dos problemas fundamentais da filosofia, espécie de pano de fundo das questões epistemológicas, éticas, teológicas. À ambição de se buscar certas respostas para isso no século XIX contrapõem-se novos saberes que, por princípio, afastam-se da filosofia: por exemplo, o positivismo de Comte, a psicanálise de Freud ou a análise da economia em Marx. Mas poderíamos perguntar se, mesmo nesse afastamento, não estaríamos ainda sobre o solo da questão, mesmo recusando-a: e isso valeria, também, para algumas correntes filosóficas do século XX (basta desqualificar ou afastar certos problemas?). Por outro lado, reencontramos o tema implícita ou explicitamente em vários momentos no mesmo período: a pergunta pelo ser de Heidegger, a relação entre o ser e o nada em Sartre, a questão do plano da imanência de Deleuze e Guatari (“O problema da filosofia”, escrevem em O que é a filosofia, “é de adquirir uma consistência, sem perder o infinito no qual o pensamento mergulha…”) são exemplos disso.      

Em suma, mesmo não tematizada explicitamente, a noção de infinitude talvez resuma, no limite, uma perspectiva humana: o desejo por sua completude. Nesse sentido, o infinito talvez seja a busca de si de um homem que sempre se põe diante de si mesmo. Eis talvez um momento privilegiado – entre tantos outros – para a arte. Mesmo porque ela talvez possa suspeitar que o homem pode encontrar-se diferentemente se ele se buscar de outra maneira. Nietzsche e Marx, cada um a seu modo, confiavam nisso.                    

Eduardo Brandão