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A ARTE PROCESSUAL EM OUTRA ETAPA, por Daniela Labra

 

Este texto procura investigar se a chamada arte processual de bases conceituais teria ainda hoje o efeito de agente ‘oxigenador’ das instituições de arte, tal como ocorreu nas décadas de 1960-70 em eventos, museus, centros culturais, bienais e galerias que abrigaram projetos cujo processo de pesquisa conceitual era parte tão integrante da obra como o objeto ‘final’ exibido ao público. Longe de ter respostas afirmativas, trago dúvidas como ponto de partida e espero que o leitor, paciente, me acompanhe no desenvolvimento das idéias que coloco a seguir.

Na virada da década de 1960-70, ocorre uma cisão entre a estética e a arte, fazendo esta voltar-se para si enquanto uma ‘idéia’. Naquele momento, a arte processual conceitual[1] surgiu como prática que incitava a uma reflexão acerca do fazer artístico enquanto instrumento intelectual por meio do qual o artista discutia em sua obra contextos, e não apenas questões morfológicas da obra acabada. Ao mesmo tempo, tais práticas se colocavam como resposta a um mercado investidor em arte que tem, até hoje, os principais museus e grandes mostras como um termômetro de seus investimentos.

Muitos dos questionamentos críticos da arte conceitual em geral eram voltados para a instituição Arte, isto é, para o conjunto de fatores que conformam o sistema da arte que legitima a obra. O objeto artístico então circulava por meio de proposições cujas características em comum eram, entre outras, “a transitoriedade, o sistema alternativo de circulação e distribuição (democrático na forma, mas nem sempre no conteúdo), a mistura aparentemente indissolúvel entre documento e obra”. (FREIRE, 1999:30)

Com tais proposições de conteúdo crítico e de formato pouco tradicional, a atuação de muitos artistas conseguia intervir nas próprias dinâmicas institucionais e seus métodos de gestão, o que naturalmente provocou uma reformulação que afetou instâncias diversas como a concepção de montagem expositiva e as técnicas de conservação de determinados acervos.[2]

Passado, contudo, o período reformulador propiciado por tais práticas, a instituição Arte começa a absorver aos poucos e com alguma tranqüilidade propostas conceituais que visavam a crítica institucional. Este fato acompanha toda a história da arte moderna, posto que desde os impressionistas observa-se que o sistema da arte primeiro repele o novo para depois incorporá-lo, assimilando o que antes era corpo estranho como bem cultural.

Enquanto absorvia as críticas e as mudanças paradigmáticas incentivadas pela produção de arte conceitual-processual na década de 1970, o sistema da arte, adequando-se aos tempos de consumismo global, institucionalizou alguns fenômenos gerados diretamente pela espetacularização da cultura e pela cristalização da noção de arte como investimento. No correr das décadas, o formato “evento de arte” foi aclamado, e proporcionou um boom mundial de exposições arrasa-quarteirão ligadas ao marketing corporativo, assim como de feiras de arte[3], além de impulsionar uma pandemia de bienais internacionais.

Vale lembrar, ainda, que a arte inserida na ordem dessa indústria do entretenimento, tem agora o apoio de leis, como a do Mecenato, que estimulam o marketing, que geralmente prefere investir em projetos de impacto, grandiosos ou pseudo-inovadores, que atraiam um público numeroso. Nessa lógica, que cara tem hoje a produção de arte processual? Quais são suas possibilidades transformadoras após a institucionalização de suas práticas críticas?

Com o formato absorvido, as práticas do processo podem apostar na força do discurso. A instauração de um cenário quase antropológico que desloca, na arte, a discussão de cunho político do campo social marxista para o cultural (FOSTER, 1996-2005) traz para dentro do espaço da arte obras processuais que ocorrem fora dele, em práticas que se aproximam do ativismo.

Este é o caso da instalação da eslovena Marjetica Potrc apresentada na 27ª Bienal, que investigou in situ a comunidade de Croa na região amazônica do Acre e criou objetos, fotografias e diagramas que supostamente apresentavam ao público projetos sociais tocados pelos moradores da localidade.

A artista apresentava, entre outros objetos, uma maquete em escala natural da “Escola Rural” de Croa: uma casinha de palafita em madeira, realisticamente pintada e equipada com uma antena parabólica. A escola em questão, é na verdade fruto de uma colaboração entre o governo brasileiro e a comunidade amazônica. Desse modo, o trabalho de Marjetica foi o de apresentar na instituição essa e outras situações que ela viu de perto, forçando um apoio do espaço da arte como difusor dos logros e problemas desta e outras minorias.

Assim, percebemos que a possibilidade transformadora desta obra, para a instituição Arte, se dá pelo discurso contido no processo de pesquisa que inclui um trabalho social ativo.

Por outro lado, podemos pensar que o ativismo apresentado em praças artísticas estetiza a política e obriga a instituição – e o público - a prescindir da Arte (despojada da estética desde os anos 1970).

Mas, como nem todas as práticas processuais atuais buscam uma prática ativista, voltamos então a tratar de generalizações.

No que tange à institucionalização do processo, que abrigará projetos-arquivo, coleções de artistas, pesquisas corporais, científicas, entre outros, o financiamento para pesquisa artística tornou-se uma praxe. Isso é atestado pelos inúmeros programas de bolsas de investigação e também os de residências internacionais em muitos países (mas ainda com pouco incentivo no Brasil). Estes investem mais na vivência do artista em determinado local/contexto que efetivamente num projeto final de exposição.

Do mesmo modo, vemos surgir eventos em instituições de arte que estimulam ocupações artísticas com poucas regras e restrições, visando principalmente algum resultado poético advindo da (con)vivência entre indivíduos. Estes eventos, porém, de certa forma apenas atualizam formatos de exposições em processo realizadas desde os anos 1960, e muitas vezes acolhem pacificamente críticas estruturais que são propostas nos trabalhos.      

É interessante perceber ainda que a absorção do legado da arte processual contribuiu para dinamizar práticas curatoriais que pensam num projeto expositivo como um organismo em processo, mais preocupadas em promover pesquisas de longo prazo do que estimular uma produção e exposição de obras de arte no sentido tradicional.

Dentro de nossa discussão, deixamos de fora o caso de certos espaços autônomos geridos por artistas, onde a arte processual tem um papel central, uma vez que freqüentemente o fazer é confundido com o viver, levando todo e qualquer resultado artístico a se remeter ao processo da vivência mesma entre indivíduos.

Após esta explanação, talvez a pergunta “como as práticas processuais atuais podem oxigenar a instituição Arte?” possa ser respondida: pelo discurso. Porém, como não é possível desassociar na arte a forma do conteúdo, deixo o caminho aberto para novas indagações sobre as possibilidades da arte processual hoje. E começamos então, um novo processo de pesquisa.


Daniela Labra


FREIRE, Cristina. Poéticas do Processo: Arte Conceitual no Museu. São Paulo, ed. Iluminuras, 1999

FOSTER, Hal. “O Artista como Etnógrafo”. In Revista Arte & Ensaios nº 12. Rio de Janeiro. EBA-UFRJ, 2005

KOSUTH, Joseph. “A Arte Depois da Filosofia”. In: FERREIRA, Glória e COTRIM, Cecília. “Escritos de Artistas – Anos 60/70”. Rio de Janeiro. Jorge Zahar Editor, 2006

        

[1] Apontamos aqui a prática processual como sendo característica da produção de arte das décadas de 1960-70. No entanto, é desde os anos 1950 que a arte passa a recorrer ao processo de investigação como elemento agregador de valor estético ao produto final. A partir de Jackson Pollock, se começa a pensar no objeto de arte como produto de um processo que, no caso deste artista, estaria ligado a uma idéia de transcendência psicológica. Nas décadas seguintes, ao processo de pesquisa de carga psicológica acrescentou-se o elemento político (o contexto), e o processo de investigação poética deu uma cara-metade teórica e filosófica à obra acabada.

[2] Cristina Freire (1999) analisa obras conceituais na coleção do MAC-USP, que, por terem formato que não se encaixava nas categorias convencionais de obras de arte (como documentos, cartas, postais, gráficos, entre outros) permaneceram décadas armazenadas sem catalogação, numa espécie de limbo. Nessa linha conceitual-processual de crítica direta à instituição de arte podemos destacar os trabalhos de artistas como Joseph Beuys, Daniel Buren, Gordon Matta-Clark, Hans Haacke, Joseph Kosuth, Fluxus, Cildo Meireles, Artur Barrio e Antonio Manuel

[3] A primeira feira de arte da história é a Cologne Art Fair, em Colônia, Alemanha, fundada em 1967, em plena efervescência da arte processual e conceitual. É importante lembrar que as feiras são acontecimentos voltados para o consumo de obras de arte e seus derivados, mas que tendem a incluir atividades de cunho cultural como lançamentos de livros e palestras com críticos e artistas, numa estratégia para reunir um público diverso, além dos seletos colecionadores/compradores, mascarando, de certo modo, a intenção primeira de vender tudo o que se expõe ali.