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O HOMEM NU E O HELICÓPTERO, por Daniela Labra

O homem nu e o helicóptero


São Paulo. Sob um viaduto, moradores inchados e cães magros. Ao lado deles, uma vitrine expõe a TV assistida por 80 milhões de espectadores iguais  ao redor do país-planeta.  Nas calçadas laterais desse viaduto homens e mulheres passam vestindo algumas cores e nem pensam em olhar para o céu. Relógios apressam os microcomputadores nas oficinas próximas, e janelas com isolante termoacústico fecham as cortinas.  As pistas de alta velocidade carregam ônibus lotados de gente que se acotovela e automóveis apressados buscando um escoamento entre a bruma de gases, chuva e poeira que coça os narizes. Há tantas pessoas que não é possível sabermos seus nomes nem ver seus rostos.  Na paisagem, há tantos escritos e borrados em tantos lugares que não se pode distinguí-los nem decifrar seu conteúdo.

Ainda sob esse mesmo viaduto, próximo a um sinal de trânsito, um pedestre mais atento pode reparar no nome “Basquiat” pichado a pilot numa caixa cinza da CET-SP que fica ao longo da calçada. Dobrando a esquina, alguns metros adiante também pode-se ler “Yoko” pichado da mesma maneira numa outra caixa semelhante. Olhe para o lado.  Escreveram algo na parede.

- Cadê o cara?

-  Acho que correu para lá.

Desta vez é “Picabia” quem foi posto na rua.

 

Diluídas e tão impessoais como uma placa escrita “Vende-se. Tel: XXXX XXXX”, as celebridades da história da arte e da cultura estética contemporânea ocidentais pichadas nas ruas, são imediatamente engolidas pela massa uniformemente heterogênea de signos visuais que poluem o espaço.

Para a exposição/ ocupação Genius Loci, ocorrida na Vila Buarque, próximo ao centro de São Paulo, em maio  de 2002, Marcelo Cidade (nome e sobrenome de certidão) apresentou um projeto para o bairro onde vem escrevendo em caixas da CET-SP e da Cia. de Telefonia, nomes de 100 artistas consagrados pela história da arte e ignorados pela massa que anda nas ruas e entope os transportes públicos.  Os nomes ficam ali, sem Aura, sem apoio teórico, sem identidade alguma.

O nome “Mickey Mouse” grafitado num poste tem mais força imagética como personalidade que um “Picabia” pichado em lugar semelhante. E provavelmente isso soe mais engraçado para muitos transeuntes também. É mais eficaz.

 

Clínicas:

Nas imediações das avenidas vizinhas ao complexo de Hospitais chamado “Clínicas” e do cemitério que fica em frente, há muitas bancas de flores para os mortos e os vivos, muitas lanchonetes para os pêsames e para os charutos de recém-nascidos. Pois foi ali perto, numa tarde num dia de semana que o artista despiu-se e se apoiou em riste à 90 graus num poste. Ele dava sua contribuição de retas e impessoalidade ao entorno caótico. A ação de Marcelo Cidade durou apenas uns poucos segundos, sendo relâmpago como o stress do a-cada-minuto. Mas o registro fica e comprova que uma ação de maior impessoalidade e personalidade juntas não há: em tempo real, o sujeito do artista nu se impõe em fisicalidade mas se pulveriza instantaneamente como imagem numa paisagem tão igual e saturada. Na foto, o contrário: o corpo se impõe eternamente como elemento visual sobre a paisagem carregada. O tempo pousa para a foto.

           

Marcelo Cidade pesquisa a cor cinza.

 

Bela Higienópolis

Há poucos meses, os transeuntes que passassem em frente ao casarão que abriga o 7º Batalhão da PM instalada na ainda aristocrática Avenida Angélica, bairro de Higienópolis, se deparavam com grandes fotos fixadas no muro do edifício.  Ali podia-se ver a imagem de policiais fardados sorridentes e pouco confortáveis ao lado de um cara com jeito de “artista”, também sorrindo amarelo. Simpática e estranha, a situação sugeria uma aproximação impessoal entre o cidadão comum e os policiais.

Um marketing da polícia para melhorar a auto-estima?

-     E esses hômi aí com esse cara...??

-          Policial com jeito de gente, ô!  É bonito...

As muitas pessoas que passaram por ali nunca souberam se deveriam acreditar na estampada simpatia dos policiais-modelo posando com o cidadão. É ano de eleição.

 

“Blitz” chama-se esse trabalho desenvolvido por Daniel Lima também para a exposição à céu aberto Gennius Loci, em maio. 

Daniel tem um trabalho interdisciplinar, que mistura elementos de narrativa, ação e registro:         

 

Outro dia, um helicóptero barulhento sobrevoava em círculos as torres da Catedral da Sé, marco zero da cidade. Em baixo, um cara tirava fotos. Era noite e só durou cinco minutos.

Os mais incrédulos diziam: “É coisa da televisão”. Não era.

-          Mas, e houve algum choque ou medo de terrorismo entre a população?

-          Não... Hoje em dia quem é que vai ter medo de helicóptero voando baixo e filmando tudo?

Barulho e vigilância. O homem se adapta ao meio.

Em 30 minutos o helicóptero já havia pairado sobre outros dois lugares: Avenida Paulista e Vila Madalena, deixando rastros de luz no céu de uma foto. O projeto nasceu da vontade de desenhar o céu com luz. O trabalho fotografado não lembra a ação realizada. 

                         

As metrópoles. Cinzentas, tristonhas, retilíneas, cheias de carros e pessoas, visualmente sobrecarregadas, são a definição e conseqüência de tudo o que o homem vem produzindo até agora.

            Nesse ambiente saturado de imagens, esses artistas abordam os não-códigos da metrópole, aqueles que de tão evidentes e corriqueiros tornam-se invisíveis ao habitante local.

         Tais ações suprem a fome de curiosidade e de novidades da comunidade alucinada que nos reflete. O artista oferta à cidade o que é da cidade. Temporalmente estanques, as intervenções urbanas de “baixo impacto” são trabalhos orgânicos que necessitam da mutação e da agitação do entorno para serem decodificadas, para viver e então morrer em tempo breve e real. 


Daniela Labra

 

SP,  Junho de 2002