Seminário sobre Machado de Assis conclui período de Rouanet em cátedra
Sérgio Paulo Rouanet
A partir de "Memórias Póstumas de Brás Cubas", publicado em livro em 1881, Machado de Assis adotou um padrão peculiar para a construção de seus romances, valendo-se de recursos utilizados sobretudo pelos chamados escritores humoristas ingleses, especialmente Lawrence Sterne (1713-1768), autor de "A Vida e as Opiniões de Tristam Shandy".
Para o filósofo, cientista político e ensaísta Sérgio Paulo Rouanet, membro da Academia Brasileira de Letras (ABL), os procedimentos adotados pelo Bruxo do Cosme Velho configuram o que ele chama de "forma shandiana", constituída por quatro elementos: hipertrofia da subjetividade; fragmentação e digressividade do texto; paradoxos espaço-temporais; e mescla de riso e melancolia.
A forma shandiana foi o tema central de mesa-redonda no dia 16 de março que marcou o encerramento do período de Rouanet como primeiro titular da Cátedra Olavo Setubal de Arte, Cultura e Ciência, convênio entre o IEA e o Itaú Cultural. Ele foi sucedido pelo gestor cultural e designer gráfico Ricardo Ohtake, que tomou posse na cátedra em cerimônia na Sala do Conselho Universitário no dia 17 de março.
A escolha do tema foi uma forma de contemplar mais um dos diversos objetos de investigação de Rouanet. Nas conferências e seminários anteriores organizados pela cátedra, ele discutiu as ambivalências da modernidade; o prazer desinteressado da arte; as fronteiras da ciência; a arte e o artista na universidade; e as relações entre cinema e psicanálise.
Outro tema do encontro foi a vasta correspondência machadiana com escritores, políticos, amigos, familiares e desconhecidos. Entre os muitos correspondentes figuravam Quintino Bocaiúva, Joaquim Nabuco, Salvador de Mendonça, Joaquim Serra e Mário de Alencar. As cartas foram organizados por Rouanet e pelas as pesquisadores da ABL Sílvia Eleutério e Irene Moutinho. A ABL lançou os cinco volumes entre 2008 e 2016.
Além de Rouanet e Sílvia Eleutério, foram expositores no seminário o crítico literário Alfredo Bosi, emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, membro da ABL e editor da revista "Estudos Avançados", e o professor de literatura brasileira Hélio de Seixas Guimarães, da FFLCH-USP e editor da revista eletrônica "Machado de Assis em Linha".
Martin Grossmann (à esq.), ex-diretor do IEA e coordenador da Cátedra Olavo Setubal, e Paulo Saldiva, atual diretor do Instituto, abriram o seminário |
Na abertura do evento, o coordenador da cátedra, Martin Grossmann, ex-diretor do IEA, e o atual diretor do Instituto, Paulo Saldiva, falaram da importância da cátedra tanto por ser a primeira a incluir a arte em sua temática quanto pelo ineditismo da parceria com uma instituição cultural privada. Grossmann destacou também a escolha de Rouanet para ser o primeiro titular do posto, dada sua competência para tratar de temas fundamentais para a reflexão sobre arte, cultura e ciência.
Mestre universal
Em sua breve exposição, Rouanet disse que a forma shandiana tem Sterne como patricarca, sendo cultivada também pelos franceses Denis Diderot (1713-1784) e Xavier de Maistre (1763-1852) e pelo português Almeida Garrett (1799-1854), entre outros. Aliás, Sterne e De Maistre são citados como influência literária pelo narrador Brás Cubas na mensagem ao leitor de suas memórias póstumas, e Machado, no prólogo à terceira edição, cita Garrett.
Rouanet observou, no entanto, que o estudo da forma shandiana não trata apenas da influência daqueles escritores sobre Machado, mas também da análise de como o escritor fluminense se relaciona com o conjunto da cultural internacional, em especial com a literatura.
Para ele, foi Machado quem consolidou o modelo da forma shandiana, tornando-o uma ferramenta para a compreensão crítica das obras de diversos autores. "Trata-se do caso pouco comum de um influenciado que influencia a compreensão crítica de quem o influenciou."
É por isso que Rouanet considera Machado um integrante da literatura universal e "não um mestre na periferia, como disse o crítico Roberto Schwarz" [autor de "Um Mestre na Periferia do Capitalismo" (1990)].
Originalidade
Em sua participação, Bosi relacionou as características da forma shandiana com a impropriedade das análises de críticos que veem em Machado uma preponderância da crítica social.
Para ele, Rouanet é um crítico literário original por duas razões: 1) capacidade de ler o texto literário num regime transversal, cruzando disciplinas como a hermenêutica, a psicanálise e a crítica dialética da cultura; 2) a convicta afirmação de uma literatura universal, "na acepção goethiana do conceito" [Goethe opunha-se às restrições nacionalistas do romantismo alemão e via toda produção literária como um bem da humanidade].
Alfredo Bosi |
Bosi afirmou que sempre o impressionou a capacidade de Rouanet de aproximar "amistosamente" a literatura universal e a literatura brasileira, "um método nem sempre seguido por quem estuda a literatura brasileira, pois há a tendência explicável de acentuar as características nacionais, que é também um caminho válido".
Ele disse que essa postura de Rouanet "relativista e nuança certa obsessiva reiteração do par centro-periferia tomados como opostos radicais, reiteração que continua sendo o prato forte de uma leitura estritamente sociológica do texto ficcional".
"É preciso ter cuidado para não criar pseudoconceitos quando passamos da empiria para o conceito universal. A empiria nos ensina que há experiência nacional e periférica que temos de aprofundar, mas o conceito de periferia pode ser extrapolado a tal ponto que pode gerar a ideia de absoluto: existiriam algo absolutamente centro e algo absolutamente periférico, como se fossem duas substâncias intocáveis."
Na opinião de Bosi, no entanto, a história vem mostrando são as interações, os conflitos, as razões, as divergências, enfim, o relacionamento dessas instâncias. "Com isso, fica relativizado o par centro/periferia, que para muitos é uma espécie de muleta que acaba explicando todos os fenômenos literários ligados ao Brasil ou às nações ex-coloniais."
Ele recomenda aos interessados na questão a leitura do ensaio "Elogio do Incesto" de Rouanet, publicado na coletânea "Pensamento Brasileiro", editada pela Embaixada do Brasil na Itália. Nele, o autor traça um quadro dos vários momentos da história intelectual brasileira em que surge "um discurso nacionalista que acusa todas as instituições brasileiras de imitação toscas e indevidas das instituições dos países hegemônicos do Ocidente".
O desdém pela suposta “macaqueação” vai repetir-se em discursos autoritários de direita e de esquerda, segundo Bosi. "Em todas as formulações, sobrevivem as acusações de 'transoceanismo cultural' (expressão de Capistrano de Abreu), de farsa, repetidas à saciedade pela crítica universitária e seus filamentos jornalísticos."
O ensaio de Rouanet mostra os riscos que podem resultar do fechamento de uma cultura em seu próprio espaço ideológico, afirmou. Ao contrário, à medida que "se deixasse permear pelos ideais universalistas da ilustração e da defesa dos direitos do homem, essa cultura poderia tornar-se mais progressista e mais democrática".
A identificação do uso de forma shandiana por Machado "só é possível ao acreditarmos que a cultura ocidental não é feita de elementos estanques, mas que um grande escritor brasileiro pode retomar a seu modo procedimentos estilísticos que foram inicialmente usados por um escritor inglês do final do século 18", argumentou Bosi.
A crítica tipicamente nacionalista sempre teve muita dificuldade em aceitar isso, de acordo com ele: "Como é possível que o maior escritor brasileiro tenha aplicado em seu primeiro grande romance justamente um esquema de procedimentos estilísticos integrantes de uma tradição europeia?".
Para Bosi, a interação entre "Memórias Póstumas" e "Tristam Shandy" proposta por Rouanet é "renovadora na história de crítica machadiana".
Ele retomou os quatro aspectos da forma shandiana, exemplificando sua aplicação por Machado. No caso da presença enfática do narrador, disse que este interfere, interpreta, está sempre se manifestando, exprimindo seus sentimentos, mostrando enfaticamente que é o autor do narrador. Quanto à técnica de composição livre, explicou que há um jogo, com a colocação dos capítulos fora da ordem cronológica, "desnorteando um pouco o leitor, produzindo um texto fragmentado que, no entanto, possui 'janelas' pelas quais podemos observar a narrativa"; o uso arbitrário do tempo e do espaço, por sua vez, "se concentra na ideia, (ausente em Sterne, mas avançada por Machado) de que a verdadeira vida começa depois da morte".
Riso e melancolia
Bosi dedicou mais tempo ao comentário sobre a quarta característica da forma shandiana: a interpenetração de riso e melancolia. Lembrou que o narrador de "Memórias Póstumas", ao descrever seu processo de escrita no prólogo do romance, fala que usou a "pena da galhofa e a tinta da melancolia".
Esse processo também pode ser aplicado às relações entre texto e contexto, segundo Bosi. "Em 'Memórias Póstumas', a galhofa tem uma função sutilmente crítica, pois compreende uma sátira aos costumes e à mentalidade dominante no tecido social fluminense da época".
Entretanto, Bosi considera que se a obra só contivesse esse traço de crítica social e ideológica não ficaria patente ou demonstrada a tinta da melancolia, que "não está necessariamente ligada à crítica social e pode ser de pessimismo, a exemplo do velho moralismo francês dos séculos 17 e 18, em que os costumes são descritos com muita agudeza, mas colocados num contexto universal".
Para Bosi, "essa tinta de melancolia dá uma dimensão moral transnacional ao romance, ainda que desenvolvida a partir da dimensão local, que é realista, primeiro estímulo do autor para fazer a crítica social".
Hélio Guimaraes |
Guimarães falou sobre a produção de Rouanet a respeito de Machado e sobre a avaliação de "Memórias Póstumas de Brás Cubas" pela crítica desde sua publicação parcelada pela "Revista Brasileira" em 1880.
Ele lembrou que o primeiro texto sobre Machado de Rouanet foi “Contribuição para a Dialética da Volubilidade”, no nº 9 da "Revista USP", em 1991, e depois incluído no livro “Mal-Estar da Modernidade”, em 1993.
"Em 1995, ele publicou na sétima fase da “Revista Brasileira” o artigo “Machado de Assis e a Estética da Fragmentação”, no qual já se aproximava de aspectos da escrita machadiana como a fragmentação e a digressão, que seriam centrais na em sua grande obra sobre o escritor “Riso e Melancolia”, de 2007."
De acordo com Guimarães, “Riso e Melancolia” trata de forma mais bem-acabada uma questão que há muito rondava os estudos sobre Machado: a relação de escritor brasileiros com os escritores de língua inglesa, especialmente com os humoristas, e mais especificamente com a prosa de Sterne.
Recepção da crítica
Guimarães apresentou uma retrospectiva sintética das reações da crítica à forma shandiana adotada por Machado. "A primeira recepção positiva foi do jornalista Artur Barreiras, ainda em 1880, quando o romance estava saindo em partes na 'Revista Brasileira'."
Mas ele foi uma exceção, segundo Guimarães. "O restante da crítica questionou a ousadia de Machado em utilizar como referência autores que não pertenciam à tradição francesa. Sílvio Romero acusou Machado de “macaqueação” de Sterne e isso foi tão marcante que, quase 60 anos depois, Mário de Andrade usou o mesmo termo para criticar a relação de Machado com a tradição inglesa."
Outro que viu de forma positiva a relação de Machado com os ingleses foi Alcides Maia, "no primeiro estudo de folego dedicado a Machado depois de sua morte". No entanto, foi Eugênio Gomes que produziu a obra mais abrangente sobre essa relação, de acordo com Guimarães. Para ele, o estudo de Rouanet se alinha a essa tradição crítica valorizadora do diálogo com os ingleses.
"Mais do que mostrar influências, Rouanet mostra afinidades internas e inverte completamente a ideia da macaqueação. Como Bosi disse, não é uma ideia de submissão ao modelo estrangeiro, mas uma ideia de participação na tradição de autores de vários lugares."
Corrrespondência
Sílvia Eleutério |
Outra contribuição decisiva de Rouanet, de acordo com Guimarães, foi a organização, com Sílvia Eleutéria e Irene Moutinho, da correspondência de Machado, trabalho que "modificou bastante a visão que se tinha até agora sobre as cartas escritas e recebidas pelo escritor".
Ele comentou que o crítico Augusto Meyer disse que a correspondência de Machado era um “monumento de insignificância”. Para Guimarães, é verdade que boa parte das cartas é protocolar, sobre questões do dia, respondendo sucintamente a perguntas ou cedendo a insistências do interlocutor, mas "ainda que sejam poucas as cartas relevantes quando analisadas individualmente, o conjunto delas representam um documento inigualável sobre o homem e sobre o escritor".
Sílvia informou que os cinco volumes da correspondência de Machado contêm 1.178 itens, incluindo cartas enviadas e recebidas, cartas abertas, bilhetes, memorandos e outros documento do trabalho do escritor no serviço público. Ela explicou que o projeto teve início em 2006 e o critério de organização foi o da ordem cronológica, sugerido por Rouanet para que fosse possível "acompanhar o fluxo da comunicação de Machado".
"Há muitas lacunas. Uma carta vai para um interlocutor e a resposta não vem. Ás vezes, entre o envio de uma carta e a resposta do interlocutor, várias outras cartas se interpõem. E convém lembrar que naquela época uma carta da Europa demorava quase um mês para chegar."
Fotos: Leonor Calasans/IEA-USP