O lugar paradoxal do artista dentro da Universidade

Por Sylvia Miguel para o IEA/USP em 17/08/2016.

Aquarela do artista Poty sobre a vida universitária.

Aquarela do artista Poty Lazzarotto sobre a vida universitária. Cortesia Acervo MAC-USP.

Num embate ocorrido na adolescência, um professor da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP foi desafiado por um colega: “Você vai ser crítico de arte, mas eu vou ser um artista”. O professor em questão, Marco Giannotti, que também é artista e pesquisador de arte, usou o exemplo da infância para criticar a dicotomia existente na cultura artística brasileira, de que quem atua na academia não é artista e quem está no mercado de arte não tem espaço na academia. A contextualização e a problematização do papel da arte na Universidade foi o foco da mesa-redonda Arte, Artista, Universidade, realizada no dia 15 de agosto no IEA.

Como parte das atividades organizadas pela Cátedra Olavo Setubal de Arte, Cultura e Ciência, o debate reuniu, além de seu primeiro titular, Sergio Paulo Rouanet, os professores-artistas Katia Maciel, da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro; Raquel  Garbelotti, Universidade Federal do Espírito Santo; Ricardo Basbaum, do Instituto de Artes da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, além de Rubens Mano, artista visual e mestre em Poéticas Visuais pela ECA-USP.  A moderação foi de Martin Grossmann, professor da ECA-USP e coordenador acadêmico da Cátedra.

Existem aproximadamente 20 cursos de pós-graduação em artes visuais no Brasil. A ECA foi pioneira ao criar o primeiro doutorado em artes, em 1980. A partir da década de 1970, o ensino da arte começou a ser estruturado nas universidades públicas federais e estaduais, sendo a ECA também uma das pioneiras ao criar o curso de Educação Artística, em 1972, e o mestrado em Artes, em 1974.

“Embora incluída na estrutura universitária e científica do país, o campo das artes não é visto como uma área de conhecimento em termos equivalentes às ciências, como as Engenharias e a Medicina, por exemplo”, afirma Grossmann. O debate buscou explorar as razões dessa diferenciação.

Na opinião de Giannotti, durante muito tempo, a Universidade ficou sendo vista como o “lugar da alienação”. De forma geral, acredita-se que o artista deve estar no mercado. Essa tensão se faz presente até hoje, segundo o professor.

“Curioso que no Brasil os artistas tenham mais possibilidade de exercer sua vida artística após sair da Universidade. Em outros países, ao contrário, o grande momento em que o artista celebra sua maturidade é quando ele é convidado para a Universidade”, destaca Giannotti.

Esse mal entendido ocorre porque o país alimenta uma cultura de não enxergar a educação como lugar da imaginação, acredita. “Existe uma tensão contínua diante da maluquice de padrões de produtividade estabelecidos pela Capes. E sendo assim, uma exposição na Pinacoteca nunca vai ter o mesmo peso de um texto escrito segundo as normas ABNT”, critica.

Um dos aspectos da problemática diz respeito à relação do artista com a escrita formal da academia. “A obra não é um objeto formal, mas o discurso do artista sobre sua obra é. Uma questão a ser problematizada é o discurso feito pelo próprio artista sobre sua obra e não pelos críticos de arte”, pontua Kátia Maciel.

No artigo "A imagem escrita", produzido para a revista ARS, do Departamento de Artes da ECA, Giannotti nota: “Na área de Poéticas Visuais, o aluno se depara com algo que não estava familiarizado: o dilema da escrita. Como escrever um texto condizente com sua produção visual? A pós-graduação é o lugar ideal para uma reflexão contínua sobre esta questão. O artista que vai para a Universidade deve estar ciente de que sua formação também implica em fomentar um discurso artístico”.

“Escrever sobre arte significa assumir uma postura crítica não só em relação ao seu trabalho como também significa um engajamento diante de um meio cultural”, escreve Giannotti em seu artigo.

Arte, Artista, Universidade - Mesa

A partir da esq.: Raquel Garbelotti, Rubens Mano, Martin Grossmann, Sergio Paulo Rouanet, Katia Maciel, Ricardo Basbaum e Marco Giannotti.

Segundo Giannotti, a escrita do artista não é dedutiva, nem ilustrativa, mas pode literalmente projetar suas abstrações artísticas. Cita textos do pintor, escultor e artista plástico Hélio Oiticica, que o artista usou como estratégia de tudo o que ele iria criar anos depois. Cita ainda o exemplo de um aluno que orientou no mestrado e doutorado, o pintor, desenhista, gravador, escultor e professor José Spaniol. “Interessante como a tese dele apontava para série de questões que anos depois a obra realizou”, disse.

 

Cultura e grade curricular

Num contexto de ameaças de privatizações de universidades públicas, quando as Humanidades vêm perdendo o papel de crítica dos saberes e num momento de desmantelamento de organismos voltados à cultura no Brasil, é preciso entender que relativamente à arte, a Universidade está na dobra de duas posições – mercado e academia – que parecem inconciliáveis. “No entanto, qual seria o papel da Universidade, senão formar sujeitos críticos e conscientes do seu contexto, e criadores de novos mercados?”, questiona Raquel.

Segundo a professora, as normativas acadêmicas e a forma disciplinar como está ordenado o conhecimento dentro da Universidade impedem o aluno e o pesquisador de arte de fazer voos mais altos. “Por isso estamos repensando o curso de artes no Espírito Santo, flexibilizando a grade curricular, levando artistas para ministrar disciplinas nos departamentos de teoria e história da arte. E também abrimos a possibilidade dos candidatos apresentarem portfólio. Em vez de achar culpados, precisamos repensar a questão dentro da Universidade”, afirma.

Para Raquel, se os cursos de arte não forem pensados por artistas, cada vez mais se acentuarão as disparidades do papel da arte em relação à ciência. “Não é possível pensar uma grade curricular de artes nos termos modernos, com áreas divididas por fazeres como pintura, escultura, desenho etc. Isso reitera o discurso moderno de que a arte é um saber dissociado de tudo, apartado do mundo”, disse.

Para Rubens Mano, há uma “fissura conceitual na sociedade”, haja vista as políticas de Estado na área cultural e a recente fusão do Ministério da Cultura com o da Educação. “É preciso olhar o problema de frente e fazer uma revisão de arraigadas práticas sociais e estruturas de pensamento”, afirma.

Por outro lado, é preciso pensar parâmetros para que se promova a equivalência do status da arte com o da ciência, afirma Mano. “A busca da desejada equivalência da arte com a ciência não deve significar o aceite de linhas de enquadramentos e injustificados constrangimentos da arte”, afirma.

A equivalência arte com a ciência deverá “enfrentar o momento crítico no qual vivemos”, diz Mano, no qual “a subjetividade sofre constante constrangimento, os repertórios se esvaziam e a linguagem corrente retrocede a ponto de perdermos o sensível da linguagem”.

O artista acredita que há “uma falência na relação entre sociedade e cultura”, em que as instituições estão balizadas por “critérios hegemônicos e uniformizadores”.

Nesse contexto, vale questionar a Universidade temos e a que queremos, afirma Giannotti. “Temos um resíduo do projeto Iluminista, ou uma Universidade em frangalhos, fragmentada pelo debate político e muitas vezes alienante?”, disse Giannotti.

 

'Monumento Mínimo', de Néle Azevedo, Santiago, Chile, 2012

"Monumento Mínimo", de Néle Azevedo, Santiago, Chile, 2012.

O artista pesquisador

De fato, o lugar da arte é a sociedade, seu espectro maior. Quem faz a  arte é o público receptor. Sem o público, ela não tem sua necessária ativação, politização. Para isso se dar, a obra precisa provocar a sociedade. Mas a arte pode ser tensionada no arquivo discursivo e crítico da Universidade”, afirma Ricardo Basbaum.

Basbaum lembra que o espaço das artes dentro do aparelho institucional das universidades se manifesta a partir de uma mediação diversa. O trabalho da arte transforma-se em pesquisa e o artista em pesquisador. Sendo assim, cada ambiente segue um rito diferente, seja o mercado de arte, a agência de fomento, ou o coletivo independente.

Para o professor, é preciso reconhecer essa diferença como um ganho: “Devemos nos perguntar, diante dessa diferença, que caminhos podem ser inaugurados; quais possibilidades podem ser apontadas?”.

Por outro lado, em seu artigo “O artista como pesquisador”, Basbaum lembra que a exigência de um grau de Doutor, por exemplo, para que um artista possa oferecer um curso de pós-graduação, “indica claramente um conflito de legitimações, em que o aparato universitário não abre mão de abrigar primeiramente aquele reconhecidos pelo seu próprio processo de formação/formatação”, ensina.

Fonte: http://www.iea.usp.br/noticias/o-lugar-paradoxal-do-artista-dentro-da-universidade