Uma jornada de aprendizado sobre relações entre arte e ciência
O curador Paulo Herkenhoff e a biomédica Helena Nader, titulares da Cátedra Olavo Setubal de Arte, Cultura e Ciência e coordenadores da jornada
"Só me interessa o que não sei; não tenho mais tempo para o que sei”. "Entrei de um jeito e estou saindo de outro". Essas foram as afirmações iniciais de, respectivamente, Paulo Herkenhoff e Helena Nader no balanço de cada um sobre os 18 encontros da Jornada Relações do Conhecimento entre Arte e Ciência: Gênero, Neocolonialismo e Espaço Sideral,
E não faltaram coisas que os dois titulares da Cátedra Olavo Setubal de Arte, Cultura e Ciência (parceria entre o IEA e o Itáu Cultural) desconheciam nas falas de mais de 80 expositores ao longo da jornada. A biomédica Nader ressaltou o conhecimento obtido sobre áreas científicas diferentes da sua e o quanto aprendeu sobre a produção artística contemporânea. Curador, crítico e historiador de arte, Herkenhoff afirmou que o resultado foi de "crescimento intelectual e pessoal".
As manifestações de Nader e Herkenhoff ocorreram no encontro de encerramento da jornada, no dia 5 de dezembro, quando ambos destacaram os principais temas discutidos nos 18 encontros anteriores. Também participaram do evento o vice-diretor do IEA, Guilherme Ary Plonski, o diretor do Itaú Cultural, Eduardo Saron, e o coordenador acadêmico da cátedra, Martin Grossmann.
A jornada foi uma disciplina de pós-graduação aberta à participação do público oferecida pela cátedra e a Pró-Reitoria de Pós-Graduação da USP. A idealização e coordenação foram de Herkenhoff e Nader .
A iniciativa foi uma homenagem ao professor Alfredo Bosi, ex-diretor do IEA, editor da revista do Instituto de 1989 a meados deste ano e estudioso das interseções entre arte e ciência.
A intenção foi promover uma discussão profunda sobre as inter-relações arte e ciência ao longo dos tempos, perpassando por aspectos como proeminência cultural de um país sobre outro, questões de gênero, de estilos e formatos.
Ao todo, foram 19 encontros de agosto e dezembro, com a participação de palestrantes e debatedores de diversos campos do conhecimento, líderes em suas áreas de atuação. Uma síntese de todas as exposições será publicada em forma de livro em 2020, de acordo com a coordenadora executiva da cátedra, Liliana Sousa e Silva.
O encontro de encerramento da jornada também foi marcado pelo anúncio feito por Saron de que estão em andamento as tratativas entre o Itaú Cultural e o IEA para a renovação do convênio da cátedra por mais cinco anos.
Aprendizado
Herkenhoff disse ter aprendido sobre, entre outras coisas, as novas dimensões da topologia, a relação da fita de Moebius com a obra "Unidade Tripartida", de Max Bill (apresentada na 1ª Bienal de São Paulo, em 1956), o mundo da inteligência artificial, a origem do inconsciente ( "algo que cada um inventa na experiência) e e outros sentidos da Gestalt.
O comentário mais crítico de Herkenhoff foi sobre o papel que a cidade de São Paulo tem no país, crítica relacionada com a discussão, em um dos encontros, sobre concretismo e industrialização nos anos 50. Segundo ele, o fato de São Paulo ser "a capital do capital" coloca "graves questões de natureza ética".
Também citou os comentários que fez em alguns encontros a respeito do projeto da Universidade de São Paulo, que seria, de acordo com ele, o de ser "o centro cultural hegemônico do país", o que causaria "pequeno assassinatos culturais".
"O paulistanocentrismo é incompatível com o conhecimento", afirmou. "Raros são os paulistas cientes do efeito devastador desse projeto hegemônico ou que possuam a mínima percepção dos efeitos da cidade sobre todo o país ".
Ele relembrou a manifestação de sua perplexidade diante da fala "agressiva" do líder indígena Aílton Krenac, que "não admite alianças", e ressaltou os novos conhecimentos que adquiriu sobre a arte dos afrodescendentes.
"Posições foram colocadas, inclusive de que não existe uma hegemonia da verdade na ciência", afirmou Nader ao lembrar as de divergências de opiniões em alguns dos temas debatidos nos encontros.
Ela considerou de extrema relevância a jornada ter começado com encontros sobre os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU e destacou também as discussões sobre artistas-cientistas, gênero, racismo e povos indígenas.
Uma coincidência apontada por Nader é o fato de São Paulo abrigar, justamente no período da jornada, exposições dos dois "artistas-cientistas" discutidos em encontros: Leornado da Vinci (no Museu da Imagem e do Som, até 1º de março) e Cildo Meireles (no Sesc Pompeia, até 2 de fevereiro).
Assim como Herkenhoff, ela também comentou o que se espera da academia. A universidade brasileira está errada e precisa fazer autocrítica, caso contrário "estará decretando seu próprio fim", disse. A principal mudança defendida por Nader é "tornar os cursos mais abertos, sem a superespecialização atual".
Para que a contribuição da jornada ao debate das relações entre arte e ciência não se complemente apenas com o livro a ser lançado em 2020, ela instou os pós-graduandos da USP e outras pessoas que acompanharam a jornada a propagarem os debates ocorridos e indicarem os vídeos dos encontros, disponíveis na Midiateca do IEA.
Interdisciplinaridade
Ary Plonski lembrou que este ano foram comemorados os 60 anos da célebre conferência ““Two Cultures”, proferida pelo físico molecular e romancista britânico C. P. Snow (1905-1980) na Universidade de Cambridge, Reino Unido.
Na conferência, comentou Plonski, “Snow lamentava o rompimento crescente da comunicação entre dois grupos, cientistas e engenheiros, de um lado, e estudiosos das humanidades e artistas, de outro, em prejuízo da solução dos grandes problemas do mundo, particularmente no declínio da qualidade da educação.
“Se C. P. Snow retornasse em 2019, ficaria satisfeito de ver como o panorama intelectual mudou bastante com relação ao que motivou o seu alerta nos idos de 1959”, disse.
Houve um notável avanço da interdisciplinaridade, segundo Plonski, “primeiro no bojo das ciências e, mais recentemente, as humanidades se aproximaram bastante das tecnologias computacionais”.
No entanto, ele chamou a atenção para um alerta feito por Walter Massey, do Instituto de Artes da Universidade de Chicago, em recente artigo. “Ele chama a atenção para uma nova preocupação a exigir a energia articulada de todos – artistas, produtores e operadores da cultura, cientistas e engenheiros. É, nas palavras dele, ‘o declínio no valor percebido por alguns segmentos da sociedade no intelectualismo e nos estudos’.”
No caso Brasil, esse desafio é acompanhado de outras preocupações, como “as atuais campanhas de negação da ciência e de satanização das artes”, que “recendem a políticas governamentais do século passado que tiveram consequências desastrosas”, disse.
Plonski declarou ser otimista quanto à capacidade da sociedade brasileira em resistir, com "expressivas responsabilidades da universidade nessa resistência construtiva".
Participação
Para Eduardo Saron, “não se encontram adjetivos para o momento do país, com tantos absurdos acontecendo em pleno século 21”. Mas considera que é preciso uma autocrítica, saber “qual a parte que nos cabe nesse latifúndio, para que as coisas aconteçam como estão acontecendo”.
Saron pensa que setores da sociedade, inclusive os mundos da ciência e da arte, contribuíram para a criação de uma bolha na qual “falamos para nós mesmos, pregamos para catequizar”.
Em sua opinião, é preciso romper essa bolha por meio de políticas culturais diferentes das enfatizadas nos últimos 20 anos. “Sempre pensamos na democratização do acesso ao tratar de políticas culturais. Ela foi essencial nos primeiros dez anos desse período, era preciso que mais artistas dialogassem com o público e que um maior número de pessoas tivesse acesso a linguagens e experiências artísticas.”
“Estagnamos no pensamento de que a democratização do acesso seja o primeiro e único espaço de construção de políticas públicas para o setor. Perdemos de vista onde está o campo de transformação cultural.” Nesse aspecto, Saron disse concordar com o educador Anísio Teixeira, para quem a transmissão do conhecimento não pode ser um fim em si mesma.
“Afinal, qual é o nosso paradigma, o que nos move para que o sujeito se transforme e a partir disso possa questionar seu passado e tornar-se empoderado para transformar o seu entorno? A gente achava que a simples democratização do acesso provocaria essa transformação.”
Segundo ele, é óbvio que o país precisa de mais ações para a democratização do acesso. "O percentual de municípios com ao menos uma biblioteca pública, que já foi de 92%, agora caiu para 85%.
“A gente se perdeu nisso. A cultura – bem como a universidade – se perdeu na ideia de que só transmitir conhecimento daria conta.” No entanto, destacou, “há 72 anos, no início do artigo 27 de Declaração Universal dos Direitos Humanos, já se falou em participação na cultura e no progresso científico e em seus benefícios”. Esse é o espírito da Constituição Federal, a chamada “Constituição Cidadã”, que inclusive abriu espaço para apresentação de propostas de emenda de iniciativa popular, afirmou.
Saron argumentou que em nome da democratização, defendeu-se a catraca (número de pessoas ingressantes em exposições e espetáculos), a espetacularização da arte (“mais ‘fogos de artifício’ e aproximação ao mundo da comunicação/marketing”) e a construção de prédios (“embriagados com o boom das commodities, construímos instalações culturais em várias cidades do país).
Essa trilogia catraca-espetacularização-prédio, o “CEP”, como ele gosta de chamar, “drenou o que seria mais importante para a política cultural”. No lugar do CEP, Saron propõe o FFF: formação, fomento e fruição.
Na formação, a ênfase evidentemente é na educação. No caso do fomento, Sauron defende uma visão sob a ótica do processo. Quanto à fruição, está relacionada à democratização, mas parte do princípio de que deve haver troca, construção conjunta.
Fotos: Leonor Calasans/IEA-USP
Fonte: http://www.iea.usp.br/noticias/um-balanco-da-jornada-da-catedra-olavo-setubal