História e mito na arte dos huni kuĩ e guarani mbya e na obra de Ernesto Neto
Nete, mulher do pajé Dua Busẽ, com traje feito com um dos padrões de kene, desenhos geométricos característicos da cultura huni kuĩ
Com a participação de dez expositores, entre os quais lideranças e artistas indígenas e pesquisadores, o 15º e o 16º encontros da Jornada Relações do Conhecimento entre Arte e Ciência: Gênero, Neocolonialismo e Espaço Sideral, nos dias 7 e 8 de novembro, respectivamente, trataram das relações entre história e mito e suas implicações na arte, no saber tradicional e na ciência. Os destaques foram as discussões sobre esses aspectos na cultura dos povos huni kuĩ e guarani e no trabalho do escultor Ernesto Neto.
Os expositores indígenas estiveram na mesa do dia 7, que teve o título História e Mitos: Os Povos Huni Kuĩ e Guarani. Foram eles o pajé Dua Busẽ (Manuel Vandique Kaxinawá) e o cineasta Zezinho Yube (José de Lima Kaxinawá), ambos dos huni kuĩ do rio Jordão, no Acre; o cineasta Carlos Papá, líder indígena guarani mbya de Bertioga, SP; e o artista plástico afro-indígena Xadalu (Dione Martins da Luz), guarani mbya do Rio Grande do Sul.
Também participaram as antropólogas Manuela Carneiro da Cunha, da USP e da Universidade de Chicago, EUA, e Elsje Maria Lagrou. A moderadora foi a editora Anna Dantes.
Em sintonia com o espírito do evento, o 15º foi aberto e encerrado de forma ritual, com cantos em homenagem à Mãe Terra entoados por Busẽ, que aos 86 continuar a atuar intensamente na preservação e divulgação da cultura huni kuĩ. Profundo conhecedor do uso de plantas medicinais, Busẽ contribuiu na elaboração do "Una Isĩ Kawaya - Livro da Cura do povo Huni Kuĩ do Rio Jordão" e organizou o “Uma Shubu Hiwea – Livro Escola Viva do Povo Huni Kuĩ".
Busẽ afirmou que passou a pesquisar e contribuir na produção de livros ao constatar que a cultura huni kuĩ estava se perdendo. Ele apresentou uma parte dessa história, sob forma mitológica, ao contar a estória do Huã Karu, o dono dos poderes da natureza.
“Hoje mantemos nossas alianças, continuamos com nossa cultura esabemos nos adaptar aos novos tempos. Hoje é o tempo da tecnologia. Precisamos acompanhá-la e aprender a resistir nesses novos tempos.” Assim se manifestou Zezinho Yube, para quem os povos que não fizeram alianças foram extintos, "os que sobreviveram foram os que fizeram alianças com os seringalistas, com os antropólogos".
Indagado se há uma diferença na forma de fazer cinema de um indígena, Yube disse que o diferencial é que o filme traz a visão de alguém que mora na comunidade, "diferente de alguém que não é de lá e apresenta sua interpretação, não a realidade". Outra característica - que exemplificou com o seu trabalho - é o fato de o filme ser feito com a comunidade, a primeira a assisti-lo, para aprová-lo ou não.
Uma vez que o encontro reuniu representantes do huni kuĩ e dos guarani mbya, Yube foi perguntado sobre a conexão de vários povos da Amazônia com os povos do Sul. Isso já acontecia antes dos colonizadores, segundo ele: "Compartilhávamos nossos conhecimentos, nossa medicina. Fazíamos intercâmbio também com os povos incas. Hoje estamos refazendo essas conexões".
Carlos Papá, cineasta há mais de 20 anos, falou da cosmologia dos guarani mbya, na qual o escuro é a mãe de todo o Universo. "Sua energia criou o Sol, nosso pai celestial. O escuro é uma energia que descansa toda a humanidade e o Universo. Depois de passar o dia trabalhando ou passeando, à noite a pessoa quer descansar e procura o colo da mãe, que é o escuro. Ao morrer, volta para os braços da mãe.”
Para seu povo, o pai celestial, o Sol, "por saber das coisas, criou seu próprio Universo e espalhou muito seres e a energia de cada coisa, terra, rio, árvores e tudo mais".
O espírito é como uma bateria que rege nosso ser e possibilita encontrar o encantamento, afirmou. "Por isso a gente acredita que a espiritualidade é fundamental, pois ela permite se expressar e se integrar em cada situação.
“Os grandes sábios dizem que o pai celestial criou o Universo para a gente escolher entre o feio e o belo. Se ninguém tivesse olho, a gente ouviria apenas os sons e não teria como escolher entre o feio e o belo. Mas o olho não deixa ver o interior da pessoa, por isso a gente sofre. Os olhos de alguém veem a multidão, mas não veem a própria pessoa. Por isso você depende do outro e o outro depende de você.”
Expressão e defesa da cultura guarani mbya e integração a ela são as marcas do trabalho artístico de Xadalu, que foi morador de rua com a mãe e a avó. Hoje ele convive diariamente com os moradores de uma aldeia em Porto Alegre, RS.
“Há várias aldeias e a comunidade tem de ir para o centro da cidade vender artesanato. Meu trabalho é relatar os problemas que acontecem lá, com muito tensionamento entre indígenas e não indígenas. A partir da discussão na aldeia sobre os acontecimentos na cidade, inclusive com as crianças, produzimos arte urbana para ser colocada na cidade."
Seu primeiro trabalho com a comunidade das aldeias decorreu do ataque de comerciantes aos indígenas. Uma lei os havia retirado do centro de Porto Alegre. “Os caciques me pediram para falar à população da cidade que o centro também é terra indígena, pois foi um cemitério dos guarani mbya."
“Fizemos mil cartazes com os dizeres 'Atenção – Terra Indígena' e colamos em vários locais do centro. No dia seguinte os jornais divulgaram a ação. Algumas pessoas ficaram preocupadas com uma possível invasão guarani, achavam que a Prefeitura tinha demarcado o lugar."
Depois houve um trabalho que se chamou "Seres Invisíveis", no qual Xadalu imprimiu fotos em tamanho natural dos indígenas que costumavam ir para o centro vender artesanato. "As pessoas rasgavam as fotos, que se tornaram motivo de muito orgulho nas comunidades. Houve ameaças, diziam que eu deveria ser preso."
Segundo ele, seu trabalho com a comunidade foi absorvido por museus e galerias e agora há aldeias que sustentam parte de suas necessidades com ele. Das vendas de trabalhos na galeria que o representa, 50% do valor vão para as aldeias, 25% ficam com a galeria e 25% com ele.
Com a onda atual de violência contra os indígenas, o trabalho começou a enfraquecer materialmente e agora os recursos são destinados apenas à compra de comida, relatou Xadalu. “Mas como me disse um sábio, há momentos na vida que para sobreviver e resistir basta ficar em pé.”
No encontro no dia seguinte ao dos representantes indígenas e antropólogos, o escultor Ernesto Neto também fez comentários sobre a cultura dos povos originários, em especial a dos huni kuĩ. Citou a questão de não existir a palavra cultura em muitas sociedades indígenas, mencionada por outro expositor, e destacou que a palavra natureza também não existe na língua dos huni kuĩ.
Disse que ao passar um tempo com huni kuĩ percebeu como a relação da arte com a vida é diferente entre eles. “O sentimento que tive é que lá todo mundo é artista.”
Para ele, a ciência e as narrativas indígenas procuram conversar com o inumano, o invisível. “Os índios fazem com que tudo fale, assim como nós fazemos com a ciência. Isso dá a unidade de tudo.”
Ainda no encontro do dia 7, Elsje Maria Lagrou defendeu a urgência do ativismo artístico em relação às questões indígenas, como a empreendida por Xadalu. Afirmou que há artistas indígenas que inclusive questionam o conceito de arte.
Para ela, é urgente redefinir os mitos e histórias de origem ocidentais, superando os mitos cristãos de superioridade do homem sobre a natureza. “Na América Latina, procuram-se formar novas ontologias, inspiradas nas ontologias indígenas, substituindo aquelas que são dualistas, que opõem natureza e cultura, por ontologias translacionais, onde as plantas foram gente, que foram animais e são atacadas pela vingança dos animais, a floresta sendo uma rede de relações."
Falando sobre os huni kuĩ, disse que o povo "já se tornou uma celebridade", por uma conjunção de fatores, como a abertura e hospitalidade e os kenes (pronuncia-se kãnãs) desenhos geométricos que utilizam em tecidos, cestaria, cerâmica e pintura corporal.
As mulheres do rio Jordão passaram a receber a visita de mulheres parentes afastadas em outras aldeias para ensiná-las os padrões e uso de cores nos kenes. “Antes havia uma convivência com a mestra de kene, rituais e dieta. Agora, com a retomada do contato com grupos afastados, foi preciso repensar a forma de transmissão do conhecimento sobre os desenhos.” Outra transformação recente foi na pintura facial: antes feita na linha dos olhos, agora desceu para passar sobre o nariz, explicou Elsje Maria.
Manuela Carneiro da Cunha afirmou que o povo guarani é o mais oprimido atualmente no Brasil. Relatou que no final de outubro, os avá guarani, que "já haviam sido confinados numa língua de terra quando da construção de Itaipu, começaram a ser novamente empurrados para fora".
“Foi feita uma denúncia há quatro ou cinco anos ao Ministério Público Federal, que determinou a constituição de uma força tarefa. No entanto, a ação não foi apresentada ao Supremo Tribunal Federal pelo então procurador geral da República, Rodrigo Janot. Quando Raquel Dodge tomou posse, foi procurada pelos indígenas e se comprometeu a entrar com a ação, mas só o fez nos últimos dias de seu mandato. O atual procurador geral desistiu da ação, apesar de ela já ter sido proposta e ter o de acordo do STF.”
Sobre a distinção entre fato histórico e mito, a antropóloga disse considerar justa a caracterização feita pelo antropólogo Claude Lévi-Strauss: “Para ele, história e mito não se distinguem pela verdade ou falsidade, uma narrativa pode ser mítica e verdadeira ou histórica e falsa. Uma história também pode ser mítica, como a da Revolução Francesa”.
Outro aspecto destacado por Manuela Carneiro é o fato de a ideia de verdade para os indígenas ser muito diferente da dos não indígenas. “No Alto Rio Negro, há uma grande produção de livros sobre os mitos. Os mitos de origem de vários clãs contam a mesma história, mas de forma diferente, e ninguém se incomoda com isso.”
Outro antropólogo expositor na jornada (mas no encontro do dia seguinte), Massimo Canevacci, ex-professor visitante do IEA e professor titular da Universidade de Roma “La Sapienza”, participou diretamente da Itália, via internet. Foi ele quem destacou o fato (comentado depois por Ernesto Neto) de em muitas culturas indígenas não existir a palavra arte, "pois tudo está relacionado com a arte".
Nesse contexto, afirmou, o conceito de mimésis é fundamental, e é diferente do conceito de identificação, de cópia. “Para mim, trata-se de um movimento de transformação identitária."
Ele exemplificou com o funeral bororo, que dura três meses. O corpo é enterrado com pouca terra por cima no centro da aldeia e regado constantemente. Na exumação, os ossos são limpos e o crânio não é mais o crânio do morto: "Há um ritual com dois mestres de canto, choro, plumas e o crânio se transforma numa arara, o pássaro ancestral."
“Quando se olha para esse crânio-arara, nossa subjetividade não pode ficar mais a mesma. Uma obra de arte é isso; quando ficamos perturbados, não podemos ficar mais como éramos.” Respondendo a questão sobre o conceito de sublime na cultura bororo, Canevacci disse que ele não é apropriado, mas sim o de estranhamento, o "estranho-familiar" - Unheimliche - de Freud.
No encontro do dia 8, cujo tema foi Escultura, Física e Política para as Mitologias Indígenas, além de Ernesto Neto e Massimo Canevacci, participaram o curador Paulo Herkenhoff, titular da Cátedra Olavo Setubal de Arte, Cultura e Ciência, e o físico e curador Luiz Alberto Oliveira, da UFRJ e do Museu do Amanhã. A moderadora foi a biomédica Helena Nader, também titular da cátedra.
Herkenhoff apresentou ensaio que escreveu quando da participação de Ernesto Neto com a obra "Leviathan Thot" no Festival de Outono de Paris, em 2006. Segundo ele, o escultor despontou nos anos 80 com um trabalho muito próximo da poética e da física dos materiais. Citou como exemplo desse período a obra “BarraBola” (1987), onde uma bola de borracha é pressionada contra a parede por uma barra de ferro. “Ali já estava o artista que iria pensar a física como um processo complexo e humano.”
Para Herkenhoff, em Ernesto Neto há a consolidação de uma trajetória artística brasileira em que o interesse inicial pelas ciências se desloca para o respeito, solidariedade e trocas com o saber das sociedades originárias do Brasil. “Isso acontece também com Cildo Meireles, que lida com a matemática e outras ciências e professa solidariedade com sociedades indígenas. Não se trata de influência, mas de convergência.”
De acordo com o curador, o "Leviathan Thot" faz uma referência bíblica direta ao levar o nome do monstro marinho da mitologia judaica que teria engolido o profeta Jonas. Além disso, dialoga com o monstro mencionado por Thomas Hobbes "ao discutir o Estado e colocar a questão do mal entre os homens".
Herkenhoff lembrou que no espaço do Panthéon onde ficou a instalação está o Pêndulo de Foucault [uma cópia exata do original instalado em 1851 por Léon Foucault e que hoje está no Conservatório de Artes e Ofícios de Paris], o primeiro experimento a produzir uma evidência concreta da rotação da Terra.
“O Panthéon não sendo mais o lugar do Paraíso que abriga os deuses, torna-se um espaço de entendimento científico sobre a Terra.”
Por outro lado, o nome da obra também cita o deus Thot, “o deus da medida do tempo, da matemática e da geometria e inventor, segundo os gregos, da astronomia e do governo civilizado”. Na obra, “Thot pode conversar com o Pêndulo de Foucault”, afirmou.
Em sua exposição, Luiz Alberto Oliveira apresentou uma narrativa sobre o surgimento do pensamento ocidental e relacionou alguns aspectos científicos ao trabalho de Ernesto Neto.
Oliveira propôs aos presentes imaginar um grego caminhando pela praia num final de tarde há 2.500 anos e que, de repente, constata que aquele pôr do sol é um acontecimento único, mas que se repetirá inúmeras vezes. “Ele chega à conclusão de que o irrepetível se repete, que há uma irregularidade regular, que a unidade se exprime na diversidade, que o infinito se repete. Essa constatação quase o leva a se atirar no mar. Ele recua e busca o mínimo do múltiplo. Verifica que há dois polos, o presenciador e o presenciado, como se o ato de presenciar se dissolvesse entre os dois."
Essa constatação vai colocar o problema fundamental, segundo Oliveira: a adequação entre o presenciador e o presenciado, a relação entre eles. "Há uma relação ilusória e uma verídica. Desvendar o véu da ilusão vai fundamentar o pensamento do Ocidente. Ser ocidental é sair da relação binária sujeito e objeto e encontrar, restaurar o presenciado."
Ele vê esse tipo de ação no “Leviathan Thot”. “Num lugar onde o passado está enterrado [restos mortais de grandes personagens da filosofia, ciência, arte e literatura da França], Ernesto vislumbrou uma estrutura translúcida de tensões, que traz outra imagem de temporalidade, uma imagem de iminência, de algo que está para acontecer."
O que Ernesto sugere, afirmou, é o tempo da membrana, do atravessamento. “O que acontece no interior de uma célula é o passado. Mas a função da membrana é separar e conectar. Por meio dela, o passado e o futuro se engatam. E assim, o presente não passa, não é um agora móvel", comentou.
Ele associou a referência ao deus do conhecimento e da escrita egípcio Thot no título da instalação ao uso da geometria pelos egípcios para determinar áreas de terras e volumes, a geometria sendo utilizada para relações de comprimentos. “Esse conhecimento era eminentemente prático, utilizados pelos egípcios durante muito tempo. Tales de Mileto levou essa geometria para a Grécia com um sentido alterado, como um modelo de pensamento, para pensar relações formais, e ela vai ser usada como elemento imagético central do mundo."
“Os gregos usaram essas imagens geométricas para a primeira ideia do Cosmos, como se fosse uma cebola, com várias camadas cristalinas concêntricas onde estão as órbitas dos planetas. Há 2.600 anos, Imaginaram a Terra como um disco no centro, mas já desconfiavam que era uma semiesfera, e há 2.500 anos descobriram que a Terra não é plana."
As histórias de origem se fundiram com as tradições judaico-cristãs e com o cálculo e a partir de então o Ocidente passou a ter uma imagem do que é o mundo, de acordo com Oliveira. Outra constatação foi a de que os movimentos celestes são perfeitos, ao passo que os movimentos na Terra são entendidos como precários. “Isso marca o pensamento ocidental, assim como a relação sujeito-objeto”.
Oliveira encerrou sua exposição perguntando a Ernesto Neto por que ele se definia como não ocidental, uma vez que maneja elementos do Ocidente em seus trabalhos. O escultor respondeu que sua dúvida sobre ser ocidental surgiu quando foi perguntado por uma estudante finlandesa "como se sentia estando no Ocidente". Depois de ouvir algumas especulações sobre a questão, como a influência africana ou o “jeito de corpo” da cultura brasileira, descobriu "que não somos ocidentais porque somos pobres". Para ele, quanto mais estudada, mais ocidentalizada a pessoa se torna. "Ocidental é o povo que separa e classifica”, afirmou.
De acordo com Ernesto Neto, todo trabalhado que faz tem a ver com relacionamento, "um objeto encontrando o outro". "A arte não está exatamente nos componentes de uma obra. Está no entre. Talvez na linha orgânica de Lígia Clark [a fronteira entre a pintura e a moldura]."
Fotos: Leonor Calasans/IEA-USP, exceto: Nete (Mauro Bellesa), "BarraBola" (Stein Johannastein) e "Leviathan Thot" (Suncana)