Enganos, método e rigor na ciência e na arte
A mesa do encontro teve a participação de (a partir da esq.) Fernando Lindote, Hernan Chaimovitch, Helena Nader (moderadora), Raul Antelo, Paulo Herkenhoff (comentarista), e Letícia Ramos; Walmor Corrêa participou com gravação em vídeo
Verdade, método, consenso, síntese e rigor foram os principais conceitos debatidos - alguns em relação à arte, outros em sua aplicação na ciência - no encontro Da Fragilidade, da Falta de Rigor, dos Enganos da Ciência e do Falseamento da Paisagem, no dia 12 de setembro.
Os expositores foram: os artistas plásticos Walmor Corrêa (em vídeo gravado), Fernando Lindote e Letícia Ramos; o bioquímico Hernan Chaimovich, professor titular do Instituto de Química (IQ) da USP; e o crítico Raul Antelo, professor de literatura da UFSC. O evento teve moderação de Helena Nader , titular da cátedra, e comentários de Paulo Herkenhoff, também titular da cátedra.
Enganos
Walmor Corrêa falou de seu trabalho "Biblioteca dos Enganos", baseado na interpretação errônea que os naturalistas estrangeiros faziam da fauna brasileira. [Assista ao vídeo da apresentação.]
Nos seus estudos de arquitetura e no Instituto de Artes na UFRGS, ele teve contato com os trabalhos dos naturalistas que percorreram o país no passado. Ao pesquisar sobre o botânico Fritz Muller (1822-1897), chegou à obra de outro teuto-brasileiro, o zoólogo Hermann von Ihering (1850-1930), que viveu 12 anos no Rio Grande do Sul e depois mudou-se para São Paulo, onde fundou o Museu Paulista e o dirigiu por 25 anos.
No livro "Investigação Ornitológica no Brasil", de Ihering, Corrêa encontrou a questão que despertou o desenvolvimento de seu trabalho: o zoólogo comenta que talvez as andorinhas hibernassem, pois não eram vistas migrando.
Corrêa recorreu a pesquisadores da Fundação Zoobotânica do Rio Grande do Sul para esclarecer cerca de 100 problemas que encontrou no trabalho de Ihering. No final restaram 25 equívocos.
Em cada um desses casos, Corrêa produziu duas páginas de livro em encadernação antiga, na página do lado direito colocou o texto de Ihering manuscrito, na página da esquerda, ilustrações que fez dos animais conforme a descrição equivocada do pesquisador.
Grande parte da exposição de Letícia Ramos também foi relacionado com um aspecto histórico: o terremoto de Lisboa em 1755, que suscitou inclusive discussões à época sobre a providência divina entre Voltaire e Jean-Jacques Rousseau.
Afirmou que quando estava expondo na capital portuguesa começou a notar que o terremoto era um tabu para os lisboetas, talvez por viverem no mesmo local onde ele ocorreu e a cidade foi reconstruída. Esse interesse se tornou uma residência artística de seis meses para a pesquisa histórica sobre o terremoto.
Na verdade, a tragédia não foi constituída apenas pelo terremoto, pois em seguida houve um tsunami e depois o incêndio de grande parte das construções.
Ramos lembrou que uma das dificuldades para interpretar a tragédia é a falta de imagens mais precisas sobre o fato, pois as que foram produzidas basearam-se em maremotos e incêndios antigos.
O trabalho da artista resultou em obras com "muitos efeitos especiais", tendo com suporte fotografias e vídeos com várias técnicas. Um desses trabalhos foi a simulação de um terremoto no Instituto de Química da USP a partir de "receita" (limalha de ferro, enxofre e água) de Kant, um dos pensadores que analisaram a ocorrência da tragédia.
Outra obra foi a construção de uma pequena gaiola pombalina (estrutura em madeira supostamente antissísmica usada nos novos edifícios durante a reconstrução de Lisboa), submetendo-a a pressões variadas.
Lindote por sua vez não tratou de aspectos históricos nem de enganos científicos, mas sim de método (e sua dogmatização) e da falta dele, questão abordada depois por Chaimovitch, único cientista do grupo.
Método
Chamado por Paulo Herkenhoff como um artista sem estilo, Lindote disse que seu método inicial é como o de muitos artistas, com uma estreita relação entre um conceito e o modo de realização da obra, "mas abandono o método, assim que começo a trabalhar". Seu interesse é se desvincular das noções de síntese e rigor "presentes em boa parte da produção artística brasileira"
"Entendo a necessidade da síntese e do desenvolvimento do trabalho com rigor, mas quando passamos à leitura dos trabalhos, o que parecia um instrumento útil e aberto ao aprofundamento das questões vira uma lei, um fundamento, e as obras são avaliadas em função de sua adequação a essa lei."
Essa espécie de questionamento da imposição de rigor, método e razão foi, de alguma forma, o pano de fundo da apresentação de Antelo. Ele utilizou como exemplos o trabalho de Lindote, as análises de Georges Bataille sobre a série de gravuras "Os Caprichos" (1799) de Francisco de Goya e como Jacques Lacan tratou da obra do Marquês de Sade.
Ele ressaltou que Bataille qualificou Goya não só como o primeiro pintor moderno, mas também o primeiro pintor do dilaceramento, da vertigem e da desordem. No caso de Lacan, Antelo disse que o psicanalista tratou da complementaridade entre razão e perversão no texto "Kant com Sade".
Essas reflexões permitiram a Antelo discutir temas como a potência do falso, a indecidibilidade onde se pensa encontrar a verdade, a distinção entre especialistas e eruditos e o fato de "o tempo se conservar na memória, mas se repetir na matéria".
Consenso
A questão da verdade foi retomada por Chaimovich, com a ressalva de que "inexiste a verdade como categoria absoluta na ciência". Ele discutiu também a essencialidade do consenso em ciência e as características do método científico.
Segundo ele, o método é simples: primeiro define-se o que é observável de acordo com os critérios científicos -"Nem tudo aquilo que se observa é o observável legítimo" - e esse observável deve ser aceito como legítimo pela comunidade científica. O segundo passo é inserir a constatação num marco conceitual estabelecido pela comunidade científica. A teoria resultante tem de prever o que é observável pela comunidade.
"Todos nós temos de entender a força do método científico. É a forma mais eficiente de construir as coisas. é um método que funciona para descrever a realidade. E há outro aspecto, tão importante quanto: sem um ensino elementar que inclua o método científico, estamos fadados a que se use o poder como argumento."
Para Chaimovich, um problema da atualidade é a enorme quantidade de dados surgidos de experimentos a partir da Segunda Guerra e a dificuldade de repeti-los. "Para que o consenso seja mantido, a atenção da comunidade tem de estar focada no universo desse consenso. Com o grande aumento no número de cientistas, é quase impossível que a atenção da comunidade esteja centrada nos consensos que criou", disse.
"Hoje, muito mais que no passado, a comunidade científica tem de refletir com cuidado o que é consenso e o que é consenso aparente, que pode ser destruído, causando um terremoto intelectual do qual não poderemos escapar."
Fonte: http://www.iea.usp.br/noticias/encontro-7-jornada-catedra-olavo-setubal