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Encontros debatem a produção de artistas afrodescendentes e racismo na arte e na ciência

Por Mauro Bellesa para o IEA/USP em 06/12/2019

Rosana Paulino - 21/11/2019

A artista plástica Rosana Paulino

Realizados durante a Semana da Consciência Negra, os encontros dos dias 21 e 22 de novembro da Jornada Relações do Conhecimento entre Arte e Ciência: Gênero, Neocolonialismo e Espaço Sideral trataram da participação de artistas negros na história da arte brasileira, do trabalho de alguns artistas afrodescendentes contemporâneos, do papel do curador negro e do racismo, tanto na ciência quanto em práticas culturais.

O tema do 17º encontro (dia 21) foi Etnologia e Escravidão: (Des)Compromissos da Ciência com a Liberdade. O 18º encontro (dia 22) tratou de Técnicas de Apagamento e Reconstrução da Memória da Escravidão nos Espaços de Eugenia Urbanística.

Os eventos tiveram exposições dos artistas Rosana PaulinoJaime LaurianoRommulo Vieira ConceiçãoGiselle Beiguelman; dos curadores Paulo HerkenhoffHélio MenezesIgor Simões; da química Anna Maria Canavarro Benite; e do neurocientista Sidarta Ribeiro. Houve também a apresentação de dois vídeos: da performance “Vila Rica”, do Grupo EmpreZa,  e "Odiolândia", de Giselle Beiguelman.

Nova voz

Para Paulo Herkenhoff, titular da Cátedra Olavo Setubal de Arte, Cultura e Ciência e um dos coordenadores da jornada, a arte brasileira no século 21 se enriquece com um processo de abertura crítica para a sociedade e "decreta uma certa falência da soberania do formalismo". Nesse contexto, ele identifica uma explosão da expressão de gênero, uma arte amazônica para além do exotismo, a nova produção das sociedades indígenas e “a nova voz produzida pela maioria negra e mestiça do povo brasileiro”.

“Essa produção de arte por afrodescendentes não é apenas uma relação estatística, mas uma cartografia de um processo extremamente amplo de abordagens, de como recontar a história, fazer emergir aquilo que não pode ser esquecido, recuperar vozes abafadas, admitir o retorno do reprimido e ter clareza sobre as contradições do ambiente da arte afro-brasileira.”

Herkenhoff lembrou que no período colonial, os artistas afrodescendentes, como Aleijadinho e Mestre Valentim, eram especialmente mestiços com mãe negra que encontravam na arte a possibilidade de se expressar.

Com a criação da Academia Imperial de Belas Artes em 1816 por D. João VI dá-se uma revolução, segundo o curador, “não porque acabou com o barroco – quando ela foi implantada, o barroco já tinha perdido as condições que o propiciaram -, mas porque havia a necessidade de uma nova modernidade, dada pela ordem neoclássica a partir dos princípios da Revolução Francesa”.

A academia era um lugar de estudos, onde os artistas pensavam a partir de certas questões teóricas, mas era vedada aos negros, que tinham que entrar no liceu de artes e ofícios, afirmou.

O primeiro pintor negro formado pela academia foi Estêvão Silva, “uma espécie de Flávio de Carvalho da época”, segundo Herkenhoff. "Certa vez, Silva fez um retrato de um burguês, que se recusou a pagá-lo. Ele pintou grades de uma cela de prisão na frente do retrato e o expôs na rua do Ouvidor. Com isso o sujeito pagou o que devia imediatamente." Outro episódio relatado pelo curador foi o da suspensão do Salão Nacional por dois anos depois que Silva se recusou a receber um prêmio do salão pelo fato de os negros serem proibidos de ingressar na academia.

Segundo Herkenhoff, dos anos 1880 a 1920, um conjunto de práticas modernizadoras possibilitou o surgimento de novos personagens na produção cultural de afrodescendentes, como o artista e intelectual Manuel Quirino, na Bahia, e os irmãos pintores João e Arthur Timótheo da Costa, estes considerados pré-modernistas.

O curador considera o pintor Di Cavalcanti uma figura central no Movimento Modernista de 1922: “Nele, há uma diferença de identificação da cultura afro-brasileira; enquanto muitos pintavam apenas mulheres negras e mulatas, ele pintava um grupo de choro, o Carnaval, uma roda de samba".

Na Bahia, no pós-guerra, acontece uma “eclosão da brasilidade, que se confunde com baianidade, de acordo com Herkenhoff. São da mesma geração o escritor Jorge Amado e os artistas Mario Cravo Jr. e Rubem Valentin, “o grande pintor afro das Américas”. Se os pintores negros americanos “eram muito mais cronistas da vida social e os cubanos transformadores da selva num ambiente de realismo fantástico, em Valentim há um profundo salto epistemológico, uma alteração política da leitura do Brasil, das Américas e do universo experimentado a partir da escravidão”.

Paulo Herkenhoff - 21/11/2019
O curador Paulo Herkenhoff

Para Herkenhoff, Valentim retira a mitologia da sexualidade afro que estava em Di Cavalcanti e Tarsila, “isso não é assunto para o grande cristal dele”. Também difere de Mário de Andrade, Câmara Cascudo, antropólogos e folcloristas "ao tratar das práticas religiosas afro como cultura espiritual.”

Valentim vê em todas as religiões afro sistemas axiológicos espirituais que se interligam, explicou. “No processo de lapidação de seu cristal, a simbologia dos orixás será reduzida a um vocabulário mínimo, mas mantendo seu valor simbólico."

Depois, Herkenhoff destaca o surgimento da escritora Carolina Maria de Jesus, da intelectual e ativista Lélia Gonzales e da pintora Maria Auxiliadora. Em Emanoel Araújo, ele vê o artista que volta à África em busca de uma atualização estética.

Chegando à atualidade, afirmou que houve uma fermentação na literatura e na música - como sempre - de afrodescendentes, "com a reivindicação do direito de dizer um grande projeto coletivo em que o Brasil se aprofunda em si mesmo”. Alguns dos artistas plásticos negros contemporâneos destacados por ele são Rosana Paulino, Arjan Martins, Ayrson Heráclito, Tiago Martins de Melo, Antonio Obá e o Grupo EmpreZa.

Ressignificação de imagens

O projeto atual Rosana Paulino, doutora pela Escola de Comunicação e Artes (ECA) da USP, teve início há dez anos e tem como base a ressignificação de imagens como "processo de cura". Tudo começou, segundo ela, quando encontrou uma imagem com fotografias de uma mulher negra nua vista de frente, de lado e de costas.

As fotografias foram tiradas por August Stahl, durante a missão científica Thayer, em 1865/66, liderada pelo naturalista suíço-americano Louis de Agassiz. Tratava-se de um dos retratos de "tipo" do país, trabalho que incluía retratos e fotografias antropométricas de escravos negros e chineses que viviam no Rio de Janeiro.

Segundo Paulino, Agassiz era um cientista criacionista que via uma hierarquização das raças na qual os negros eram os inferiores, abaixo dos amarelos. “Para ele, a mistura de raças levaria à degeneração de todos os envolvidos. Ele vem ao Brasil, que já era miscigenado, para provar as suas teses.”

Ela comentou as políticas de branqueamento no país a partir do século 19 baseadas em pseudociências e disse que seu trabalho é dedicado à desconstrução de ideias racistas presentes na ciência e nas artes. “A animalização dos corpos negros não é discutida de maneira apropriada. Um negro leva 80 tiros e isso é visto como normalidade. Passou no lugar errado e na hora errada.”

Para ela, os brasileiros adotaram as imagens presentes nas cartes de visite de Auguste Sthal e Christiano Junior ou nos desenhos dos artistas viajantes, como Rugendas e Debret, produzidos a partir do olhar estrangeiro. Os efeitos negativos de imagens como a feita por Stahl devem ser combatidos com a produção de novas imagens, de acordo com a artista.

A reinterpretação de parte dessas imagens está no trabalho de Rosana “¿História Natural?”, livro da artista de 2016. Ela pesquisou durante cinco anos para realizar o livro, constituídos por pranchas gravadas manualmente com duas técnicas de gravura.

Tradição e contemporaneidade

Romullo Vieira Conceição - 22/11/2019
O artista visual e geólogo Romullo Vieira Conceição

 

O artista Rommulo Vieira Conceição, que é também professor de geologia na UFRGS, disse não conseguir se inserir na definição de artista afro-brasileiro. “Como artista e negro, me parece que quando se entra na discussão sobre afro-brasilidade há algo muito protocolar. Quando meu corpo se manifesta no espaço, o afro-brasileiro não transparece.”

“Salvador é essa África brasileira, capoeira, Olodum, arquitetura, religião forte, sincretismo. Quando morava lá, ficava meio sufocado por aquela tradição.” Sua dúvida é como "contar com a tradição e ao mesmo tempo ser contemporâneo". Por outro lado, considera impossível que o trabalho de um artista negro não manifeste o fato de ele ser negro.

Desde 2015, Jaime Lauriano tem produzido desenhos em que procura evidenciar o passado colonial e a desigualdade do país. Antes sua produção não se baseava em sua historia pessoal, mas voltou-se para ela quando percebeu que a maioria dos autores que teve de ler em sua formação acadêmica eram brancos. Ele disse ter compreendido melhor esse conflito ao refletir sobre sua família paterna negra e a materna branca.

Jaime Lauriano - 22-11-2019
O artista plástico Jaime Lauriano

Nesse trabalho dos últimos anos, Lauriano fez uma releitura de mapas históricos do Brasil e das Américas. Nas obras, as imagens que ilustravam os mapas, como índios nus, animais, árvores, foram substituídas por temas como etnocídio, invasão, escravidão. Em outro trabalho, identificou 12 lugares relacionados com a escravidão no último mapa da cidade de São Paulo feito antes da Abolição e procurou justapô-lo à planta atual da cidade.

Discurso de ódio

Única artista não negra dos dois encontros, Giselle Bieguelman, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP, apresentou o vídeo “Odiolândia”, que trata da invasão da Cracolândia - área de concentração de usuários de drogas no centro de São Paulo - por forças policiais na madrugada do dia 21 de maio de 2017.

Com áudio extraído de vídeos gravados pelos próprios participantes da invasão, o vídeo apresenta sobre um fundo negro um letreiro com comentários feitos nas redes sociais sobre o fato. Sob um fundo negro corre um letreiro com comentários feitos nas redes sociais sobre o fato. A obra foi criada para a exposição "São Paulo Não É uma Cidade: As Invenções do Centro", realizada em 2018 no Sesc 24 de maio.

O vídeo faz parte de projeto em que Giselle trata com a mesma metodologia os comentários feitos na internet sobre o assassinato da vereadora  Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes em 14 de março de 2018 e do incêndio e desabamento do Edifício Wilton Paes de Almeida, no Largo do Paissandu, centro de São Paulo, no dia 1º de maio de 2018, com sete mortos e dois desaparecidos. Os comentários sobre os três fatos caracterizam-se, segundo ela, pela culpabilização das vítimas e o desejo de expandir seus destinos trágicos a outros integrantes de minorias.

Giselle Beiguelman - 22/11/2019
A artista e professora da FAU-USP Giselle Beiguelman

Para Giselle, os três fatos são sintomas dos conflitos e dilemas atuais do país e chamam atenção para a debilidade das políticas de saúde pública, o preconceito racial, sexual e de classe e a gravidade da situação habitacional nos grandes centros.

“A intuição de que essa violência vem crescendo se confirmou. Há um discurso de ódio que traz à tona nossas histórias mais caladas, que comungam com os processos de discriminação, o racismo estrutural e estruturante, a abominação à diferença, às opções sexuais e identidades de gênero e culpabilização dos mais fracos, mais próximos dos elos mais frágeis dessa cadeia.

Sub-representatividade

Em sua exposição, Hélio Meneses, que além de curador independente é doutorando em antropologia social na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, partiu da indagação sobre o que se entende por história da arte no contexto brasileiro de racismo cultural e institucional.

Apesar de ver na atualidade um momento de sopro e oxigenação, com uma multiplicidade de artistas negros, o resgate de nomes apagados e a revelação de novos, expressões artísticas antes ignoradas, considera que "a sub-representatividade de artistas negros em acervos, galerias e museus revelam que a cor da pele ainda um critério camuflado para a exclusão".

Ele mostrou fotografias icônicas de como os negros eram retratados durante escravidão e a reinterpretação dessas imagens por artistas negros contemporâneos.

Hélio Menezes - 21/11/2019
O curador e antropólogo Hélio Menezes

Uma delas é a foto de 1860 de João Ferreira Vilella em que aparecem o menino branco Augusto Gomes Leal e sua ama de leite Mônica. “Quase todo o Brasil cabe nessa foto”. O modelo é o da "carte de visite”, espécie de souvenir vendido a viajantes que visitavam o país, explicou.

Ele citou a obra “As Amas” (2009) de Rosana Paulino, na qual fitas de cetim saem dos seios de reproduções de imagens de várias mulheres negras, entre elas Mônica, e terminam amarrados a pequenas garrafas, como se as mulheres se conectassem e nutrissem umas às outras.

Comentou também os trabalhos de vários outros artistas negros contemporâneos e com propostas estéticas muito variadas, entre os quais Sidnei Amaral, Jacques Arago, Michele Mattiuzzi, Yhuri Cruz, Jaime Lauriano, e Paulo Nazareth.

“Podemos destacar valores aproximados nesses artistas, certas imagens, situações de trabalhos, dilemas do presente, predileção por temas como a exploração colonial, racimos e outros.” Para ele, esses artistas não se encaixam em modelos pré-formatados e clamam por outras abordagens curatoriais.

Eugenia

O curador Igor Simões, professor da Uergs, comentou que 52% dos brasileiros se declaram negros ou pardos, mas o país ainda flerta com um silenciamento dessas vozes nas artes. “De que maneira poderíamos aventar uma história da arte que não considerasse o elemento raça?” Mas foi isso o que aconteceu, afirmou. “A maioria dos artistas, críticos, curadores, historiadores, galeristas e diretores de instituições são brancos. É uma narrativa de brancos sobre brancos.”

Igor Simões - 22/11/2019
O curador e professor da UFRGS Igor Simões

Qual a possibilidade de ação cultural de um sujeito negro num contexto ainda tão branco? Segundo ele, o histórico do Museu de Arte de São Paulo (Masp) apresenta a participação de apenas dois curadores negros. Além disso, "são poucos os negros nos cursos destinados a pensar o trabalho de curadoria".

A propagação de pseudociências eugenistas em museus e institutos históricos forjou o imaginário de um novo país marcado pela escravidão, disse. Previa-se um branqueamento do país com a chegada dos imigrantes e “até hoje nos deparamos com uma arte branqueadora e embranquecida”, afirmou.

Para Simões, o curador atual deve "curar as narrativas" que sedimentam a sociedade brasileira e questionar as noções de raça, gênero e classe que tecem as relações contemporâneas na arte: "Ao curador negro não é dada a benesse de uma prática descompromissadas."

Ciência e racismo

Anna Maria Canavarro Benite, professora do Departamento de Química da UFG, onde criou o Coletivo Ciata (Grupo de Estudos sobre a Descolonização do Currículo de Ciências), ex-presidente da Associação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as (ABPN), falou sobre “como a ciência tem se esmerado em apagar a história do povo negro e da diáspora africana”.

Para ela, a ciência moderna interdita outras produções que são suas precursoras e marca relação estrutural de produção e dependência de conhecimento, numa relação racista.

O conhecimento produzido por homens brancos sob parâmetros eurocêntricos é dado quase como verdade absoluta por uma sociedade de consumo de produtos tecnológicos, com demérito de outras matrizes culturais, comentou. "Essa mesma ciência e sua política de rankings faz com que o Brasil seja o 13º colocado na produção científica e, por outro lado, ocupe a 79ª posição em termos de qualidade de vida."

Anna Maria Canavarro Benite - 22/11/2019
A química Anna Maria Canavarro Benite, da UFG

"A ciência não dialoga com quem somos e a academia segue propagando seus mitos ideológicos”, afirmou. Há outra maneira de produzir ciência, na qual se aprende com os ancestrais e a ciência se coloca como pertencente à natureza e não exploradora dela, de acordo com Anna Maria: “Há povos que não separaram mitos de seus conhecimentos científicos”.

Ela também destacou a contribuição de cientistas negras brasileiras na ciência de alta performance.

Cultura e criminalização

Sidarta Ribeiro, vice-diretor do Instituto do Cérebro da UFRN, falou da trajetória da capoeira - da qual é contramestre - na cultura brasileira, do racismo na ciência e de aspectos que considera relevantes na discussão sobre a legalização da maconha. Ribeiro é um participante destacado do debate nacional sobre políticas públicas referente às drogas.

Há evidências que a capoeira tenha surgido a partir de práticas em Angola segundo ele, “mas o jogo, o ritual, a complexidade simbólica, foram invenções brasileiras”. Ele lembrou que sua prática era criminalizada até os anos 30, mas se expandiu a partir dos anos 50 e hoje em dia é um esporte praticado em escolas e quarteis e até em outros países.

No final do Império, formou-se um grupo de capoeiristas próximo à Princesa Izabel, dando origem à Guarda Negra, que a protegia e defendia o governo monárquico, relatou. “Com a República, uma das primeiras medidas foi criminalizar a capoeira”. De acordo com Ribeiro, um mestre branco se tornou chefe de polícia e mandou prender os outros mestres e praticantes, acabando com a capoeira na cidade do Rio de Janeiro.

“Gosto de fazer um paralelo entre a capoeira e a ciência: ambas requerem disciplina, hierarquia, rigor e princípio de realidade, mas também requerem alegria, liberdade e o princípio do prazer. Para funcionarem direito têm de estar sob a égide do princípio do prazer.”

Em sua opinião, toda ciência que se coloca a serviço do sistema não está mostrando sua visão da realidade. "Isso faz com que muitas vezes a ciência seja racista." Ele citou o caso de um estudo comparativo entre o cérebro branco e o cérebro humano publicado numa revista: “Os dados do estudo não indicaram nenhuma diferença, mas a conclusão foi de que existe diferença”.

Algo similar acontece em relação às drogas, segundo Ribeiro. “A ciência acende velas para santos opostos, constata uma coisa e na hora de publicizar conta outra estória.” Disse que no livro “A Tragédia da Maconha”, editado pelo Conselho Federal de Medicina este ano, apesar do título, "não há nada que indique a existência de uma tragédia da maconha no país".

Em sua opinião, boa parte do racismo em ciência ocorre pela abordagem enviesada dos fatos, “sem um exame completo, apenas do invólucro”. Exemplificou com o livro “IQ and the Wealth of Nations" (o QI e a riqueza das nações) (2002), escrito pelo psicólogo britânico Richard Lynne e pelo cientista político finlandês Tatu Vanhanen. Os autores argumentam que as diferenças do PIB per capita dos países está em correlação direta com as diferenças entre os QIs nacionais médios dos países. O livro apontou que o desempenho nos testes de QI é muito baixo na África.

"Aí vem todo o viés do instrumento de medida. Se o teste de QI era algo importante para medir as habilidades dos exércitos europeus no final do século 19 e início do século 20, como é que isso pode ser aplicado para medir inteligência no planeta?"

Ribeiro também mencionou o livro “Is Science Racist?” (2017), no qual Jonathan Marks indica vários momentos em que a ciência foi racista.

Para Ribeiro, é mais fácil defender a legalização da maconha do que outras drogas por que ela "é praticamente um remédio". Não se sabe como era a planta antes de suas variedades começarem a ser selecionadas, há cerca de 6 mil anos.

Sidarta Ribeiro - 21-11-2019
O neurocientista Sidarta Ribeiro, da UFRN

Há em torno de 450 substâncias psicoativas diferentes na maconha, afirmou. A ressalva médica conhecida, disse, é quanto as pessoas com tendência à psicose, que não devem usar o THC (tetraidrocanabinol). Disse que estudo publicado em uma revista científica em 2017 apontou que camundongos jovens sofriam efeitos negativos do THC, "ficavam bobos, ao passo que os velhos ficavam super espertos".

Segundo Ribeiro, num adolescente, o THC vai produzir um excesso de sinapses no cérebro e "isso é ruim para o aprendizado, pode confundir a cabeça". As pessoas mais velhas podem se beneficiar com esse aumento de sinapses, segundo Ribeiro. “Toda a geriatria vai depender do THC.”

Para ele, além da legalização é preciso garantir o autocultivo e o cooperativismo para a produção de extratos. "É preciso também o suporte tecnológico da universidade e institutos de pesquisa para a dosagem de canabinoides e o controle de qualidade, pois as maconhas são todas diferentes."

Ribeiro defende também "um ecossistema empresarial de medicina canábica, com alta diversidade e livre de oligopólios e a inclusão nessa economia das comunidades vulneráveis mais afetadas pela 'guerra às drogas'".

Apesar de considerar que a legislação melhorou, criticou o fato de não haver um critério objetivo para distinguir usuário de traficante. "A prisão por drogas é o grande motor da superpopulação carcerária, constituída em sua maioria por homens jovens negros e pardos." Para ele, a política repressiva legitima a “guerra às drogas” e “é causa direta de confronto com esses jovens e sua execução”.

Riscos de retrocesso

No debate que se seguiu às exposições do dia 22, Martin Grossmann, coordenador acadêmico da Cátedra Olavo Setubal de Arte, Cultura e Ciência, disse que só 2% dos professores da USP se autoidentificam como negros e, além disso, a Universidade foi a última a adotar cotas raciais. “Como professor, notei que meu alunato mudou nos últimos 15 anos. O Brasil começou a estar na sala. E recentemente foi anunciado que os negros são maioria nas universidades públicas". Ele perguntou aos expositores se consideram que o quadro mudou com a democracias dos últimos 30 anos e se acreditam que não há mais volta.

Para Anna Maria, "o racismo social e racial são a base da etnopolítica brasileira e o que assistimos é uma tímida reação a essa etnopolítica". Quanto à informação de que os negros são maioria nas universidades públicas, considera isso uma grande falácia: “Nem todo pardo está na universidade por política de cota. No curso de medicina da minha universidade, apesar de existirem pardos na matrícula, não há nenhum no curso. Esses dados podem ser usados para deslegitimar a política de cotas.”

"Diante dos ataques neonazistas e tudo mais que estamos vivenciando", Giselle disse duvidar se as conquistas democráticas alcançadas pelo país não podem retroceder. Para ela, “não estaríamos nos perguntando certas coisas se não fosse necessário problematizar essa questão do ‘sem volta’.”

Fotos: Leonor Calasans/IEA-USP

Fonte: http://www.iea.usp.br/noticias/arte-ciencia-e-racismo