Discussão sobre desafios do futuro inaugura jornada que relaciona arte e ciência
A preocupação com o futuro parece estar no centro do debate de áreas que envolvem ciência, sustentabilidade, educação e cultura. Nos encontros dos dias 8 e 9 de agosto, quando começou a Jornada Relações do Conhecimento entre Arte e Ciência: Gênero, Neocolonialismo e Espaço Sideral (leia mais no box abaixo), organizada pela Cátedra Olavo Setubal de Arte, Cultura e Ciência em parceria com o Itaú Cultural, as considerações sobre as ameaças e os riscos para educação e a cultura brasileiras permearam as falas de parte dos expositores, enquanto outros se concentraram na urgência das demandas globais para mitigar os efeitos das mudanças climáticas.
Batizada de Arte, Cultura e Ciência e os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, a atividade dividiu o debate em dois momentos: “As urgências do futuro” (dia 8); e “Para qual futuro?” (dia 9). As discussões foram pautadas pelos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), propostos pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 2015. Os 17 objetivos, que têm 169 metas relacionadas, reconhecem que a erradicação da pobreza, em todas as suas formas e dimensões, é o maior desafio global atualmente e um requisito indispensável para o desenvolvimento sustentável.
Educação e ciência
Para acabar com a pobreza, investir em educação é reconhecidamente um dos principais caminhos. Roberto Lent, pesquisador da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e membro da Academia Brasileira de Ciências, relacionou sua fala à defesa de uma discussão cada vez mais atual: a gestão da educação precisa pautar-se pelas evidências da ciência.
“A elaboração de planos, primeiro passo do processo educacional, precisa ter base científica.”
Roberto Lent
Segundo ele, as intervenções dos diferentes governos brasileiros nesta área, na forma de projetos e decretos, não têm base científica. “Elas costumam ser intuitivas ou até mesmo ideológicas. Só a avaliação dos resultados, cerca de dez anos depois, que é pautada pela ciência. Isso aumenta muito a chance dos planos não darem certo”. Ao mostrar os resultados do último Programa Internacional de Avaliação de Alunos (Pisa), de 2016, Lent procurou demonstrar como a educação tem patinado no país: entre 70 países, o Brasil ficou na 63ª posição em ciências, na 59ª em leitura e na 66ª colocação em matemática.
“O governo precisa conversar com cientistas e ouví-los. Assim, podemos estabelecer uma ponte entre dois mundos: o da ciência e o da educação. Em benefício principalmente da segunda”, afirmou Lent.
Ensino superior
O tema educação voltou ao debate no dia 9, com a presença da jornalista Sabine Righetti, pesquisadora da Unicamp, e de Naomar de Almeida Filho, ex-reitor da Universidade Federal da Bahia e professor visitante no IEA. Ao tratar da qualidade do ensino superior, Sabine defendeu que o Brasil precisa ter uma indagação em mente: que modelo de universidade queremos para o futuro? Responsável pela metodologia do Ranking das Universidades do Brasil da Folha de S. Paulo (RUF), Sabine analisa e acompanha os diversos rankings globais que medem a qualidade das universidades. Este ano, explicou, o surgimento de um novo parâmetro mudou o paradigma das avaliações universitárias.
Enquanto os rankings globais clássicos costumam levar em conta critérios como o número de professores com doutorado e a quantidade de citações em pesquisas, a organização Times Higher Education lançou, em abril, uma metodologia totalmente alinhada aos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável da ONU. Para este indicador, boas universidades oferecem aos alunos, por exemplo, serviços de saúde mental e estrutura para praticar esportes. É levado em consideração o número de mulheres em cargos de comando e o de estudantes que são os primeiros de suas famílias a estudarem no ensino superior, e, ainda, quantas pesquisas tratam das mudanças climáticas.
“Há um sistema perverso de reprodução de desigualdades que impede a equidade na educação.” Naomar de Almeida Filho
Os resultados foram totalmente diferentes dos rankings clássicos, apontou Sabine. “Por isso, a pergunta é importante: O que consideramos como uma boa universidade? O que queremos construir para o futuro? A avaliação do ensino superior precisa olhar para isso. Precisamos saber o que queremos para poder avaliar”.
Outro aspecto problemático do ensino superior brasileiro foi abordado por Naomar. O pesquisador alertou para a situação que vê como um “ciclo vicioso” da educação no país — um problema, que, para ele, não é decorrente apenas da falta de qualidade ou de investimentos. “Há um sistema perverso de reprodução de desigualdades que impede a equidade”, disse.
Naomar explicou que, no Brasil, a carga de imposto para a população mais pobre é muito grande, em proporção ao seu salário — e essa proporção não aumenta conforme a renda sobe. “Como grande parte da população pertence a uma classe mais baixa, os serviços públicos são sustentados por essa parcela”, diz. “E essa população recebe o mínimo do Estado. A área da educação é um exemplo”.
O “ciclo vicioso”, conclui Naomar, está no fato da população com renda mais alta conseguir pagar uma educação básica de qualidade e, para o pobre, restar o serviço público de baixa qualidade. Depois, o mais rico consegue ingressar na universidade pública, gratuita e de qualidade, enquanto a classe mais baixa tem de pagar uma faculdade privada, geralmente de menor qualidade.
Arte e cultura
Critérios objetivos são importantes para medir a qualidade da educação de um país, mas os subjetivos, como a arte e a cultura, são fundamentais para a aprendizagem, lembraram os participantes. E para Juca Ferreira, ex-ministro da Cultura e atualmente secretário de Cultura de Belo Horizonte, é uma responsabilidade pública promover, incentivar e, em certos momentos, financiar essa áreas. “O Estado democrático tem um papel importante na construção das melhores condições para o desenvolvimento cultural dos países”, disse. “Como a sua responsabilidade não é fazer cultura, mas criar um ambiente favorável, deve existir também uma conexão com a sociedade e com os empreendedores”, afirmou ele no dia 8.
Juca alertou, porém, que a maior das responsabilidades do Estado é manter um clima de liberdade de expressão absoluta, para que todos possam de fato se sentir seguros para cumprir seu papel cultural. Para ele, o Brasil vive um momento “sombrio” neste sentido — o que a moderadora dos debates, a titular da cátedra Helena Nader, chamou de “um momento de negação da cultura, da educação e da ciência”. Para Juca, há hoje no país um “eclipse cultural”. “E digo eclipse pois sou otimista e acho que isto vai passar. Com sua imensa produção cultural, o Brasil não cabe neste projeto medíocre”.
“Estamos vivendo um momento de eclipse cultural. E digo eclipse pois sou otimista e acho que isto vai passar.”
Juca Ferreira
O pesquisador Otávio Velho, professor Emérito da UFRJ e membro da Academia Brasileira de Ciências, também refletiu sobre este ponto no primeiro dia da atividade. “Estamos vivendo um momento de tal trauma que nós tendemos a ficar em uma posição de defesa retórica da razão, mas ao mesmo tempo, de uma certa paralisia diante desta ‘não razão’ que nos assaltou”, disse. “Isso me preocupa. Como a razão pode lidar com a ‘não razão’? Muitos autores importantes já pensaram neste aspecto. Nós temos de rememorar isso e aprender, de alguma maneira, a lidar”.
Neste contexto de negação da ciência, Sabine Righetti lembrou que os ataques às universidades e as promessas de corte na educação do governo do presidente Jair Bolsonaro podem ter consequências devastadoras para o país. “Mesmo quando a produção científica estava crescendo no Brasil, estávamos em um ritmo lento ao compararmos com a situação de países com políticas adequadas para a pesquisa”, explicou. “Isso porque eles estavam acelerando muito mais que nós. Imagine como será com europeus, asiáticos e americanos acelerando e nós regredindo”.
Para piorar, completou, as consequências negativas da falta de investimentos ainda podem ser usadas no futuro como justificativa para desprestigiar ainda mais a área. “Podem dizer: se a produção científica está caindo, por que querem mais verbas? Precisamos mostrar como tudo isso está errado e como sairá muito caro para nós deixar de investir na pesquisa e na ciência”.
Ao comentar a situação, o crítico, curador e historiador de arte Paulo Herkenhoff disse que “antes de construir uma casa, é preciso preparar o terreno. Nós estamos despreparando o terreno e a casa nem estava pronta ainda”.
Mudanças climáticas e nosso futuro
O professor do Instituto de Física (IF) da USP Paulo Artaxo lembrou, no dia 9, que quase todos os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável da ONU têm questões associadas às mudanças climáticas. “Seja o fornecimento de água e alimento para a população como a redução da desigualdade, os objetivos têm uma associação muito próxima com o processo que vem sendo discutido sobre as mudanças climáticas”, disse o físico, integrante do Grupo de Pesquisa Meio Ambiente e Sociedade do IEA.
As evidências científicas dessas alterações vão muito além do aumento da média de temperatura do planeta, lembrou. Entre elas, estão a alteração de distribuição de chuvas, acidificação dos oceanos, aumento do nível do mar, redução de área de gelo e eventos climáticos extremos.
“Atingir a sustentabilidade em nossa complexa sociedade vai exigir muita ação, governança e visão planetária de longo prazo.” Paulo Artaxo
“Se considerarmos, então, que a premissa dos ODS é buscar um desenvolvimento que procura satisfazer as necessidades da geração atual sem comprometer a capacidade das futuras gerações de satisfazerem suas próprias necessidades, já estamos falhando na tentativa de seguir esse objetivos”, afirma Artaxo. “Já ultrapassamos os limites do planeta em várias áreas da sustentabilidade”.
Ainda que o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) das ONU, do qual Artaxo faz parte, mostre os caminhos possíveis para reverter essa situação, o desafio para o futuro é muito grande. O físico explicou que, para seguir os ODS, temos sinergias a fazer — ou trade offs. É como se a tentativa de atenuar alguns problemas pudesse ampliar a gravidade de outros. “Por exemplo: como fornecer água para 7 bilhões de pessoas? Hoje, só um terço delas tem acesso à água potável. Precisaremos de mais suprimento de energia, de mais terra disponível. Ao mesmo tempo, como reflorestar áreas para sequestrar CO² da atmosfera?”, indagou Artaxo.
Na opinião dele, o papel da ciência nestes dilemas está cada vez mais claro. “Há um meio termo entre as nossas necessidades e os limites do planeta. Precisamos chegar nesse ponto, que seria ‘o lugar seguro e justo para a humanidade’. Para isso, precisamos de muita ciência sólida e interdisciplinar. Atingir a sustentabilidade em nossa complexa sociedade vai exigir muita ação, governança e visão planetária de longo prazo.”
A Jornada |
---|
A Jornada Relações do Conhecimento entre Arte e Ciência: Gênero, Neocolonialismo e Espaço Sideral é composta por 19 aulas, que acontecem entre os meses de agosto e dezembro. Elas compõem uma disciplina oferecida pela Pró-Reitoria de Pós-Graduação, com 40 vagas por aula para o público em geral. O programa foi formulado pelos dois titulares da Cátedra em 2019: o crítico, curador e historiador de arte Paulo Herkenhoff e a biomédica Helena Nader, professora da Unifesp e presidente de honra da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). Nos encontros, eles se revezarão nos papéis de moderadores e comentaristas. |
Fotos: Leonor Calasans/IEA-USP