Literatura periférica: a vida contada sem intermediários
Encontro reuniu poetas e pesquisadores da literatura periférica
Desde novembro de 2000, uma noite por semana, uma centena de pessoas se reúne para declamar e ouvir poesia no Bar do Zé Batidão, no Jardim Guarujá, Zona Sul da cidade de São Paulo. O clima é de poesia viva, com raízes na oralidade, apresentada de forma performática e impregnada pela condição de vida, lutas e anseios dos moradores da periferia. É o sarau da Cooperifa, fundada pelo poeta Sergio Vaz para estimular o contato da comunidade do bairro com a literatura e os livros e propiciar um espaço onde os poetas locais pudessem apresentar seus trabalhos ao público.
A importância e o vigor dessa poesia e a relação da universidade com ela foi o tema da primeira atividade pública de 2018 da Cátedra Olavo Setubal de Arte, Cultura e Ciência, no dia 13 de junho. O seminário Reflexões sobre Literatura Periférica e Universidade, iniciou o ciclo Centralidades Periféricas, organizado pela cátedra para aproximar a USP da efervescente vida cultural da periferia da cidade de São Paulo. A coordenação foi da ativista e educadora Eliana Sousa Silva, titular da cátedra.
Além de Sergio Vaz, participaram como expositores o poeta e pesquisador Marcio Vidal, também vinculado à Cooperifa, professor do ensino médio e mestre em literatura comparada pela USP; a crítica literária Heloisa Buarque de Hollanda, professora da UFRJ, onde coordena a Universidade das Quebradas; e a pesquisadora da produção cultural da periferia paulistana Erica Peçanha do Nascimento, mestre e doutora em antropologia social pela USP, onde também fez pesquisa de pós-doutorado em educação.
Cooperifa
"Para nós, a literatura periférica não é maior nem melhor: é nossa!", proclamou Vaz em sua apresentação, lembrando que a Cooperifa acabou se transformando num centro cultural, com várias outras atividades, como o Cinema na Laje, apresentações de música, teatro e dança, biblioteca e saraus em escolas.
Ele contou que ao servir o Exército, em 1983, colocou para tocar no quartel a música "Para Não Dizer que Não Falei das Flores", de Geraldo Vandré, cantada pela Simone, e um sargento ficou bravo. "Disse que era música de comunistas, guevaristas. Uma música poderia significar tudo isso? Foi aí que descobri as metáforas. Comecei a me interessar por poesia, Pablo Neruda, música brasileira. Depois veio 'Fim de Semana no Parque', dos Racionais MC's. Vi que era preciso dar voz às pessoas. Resolvi escrever sobre minha rua, meu vizinho, violência policial, sofrimento das mulheres."
Em 1988, Vaz lançou de forma independente seu primeiro livro: "Subindo a Ladeira Mora a Noite". Desde então, já publicou mais sete obras, entre elas "Flores de Alvenaria", "Colecionador de Pedras", "Cooperifa – Antropologia Periférica".
O sarau começou a ser realizado no bar às quartas-feiras "porque é dia de jogo de futebol e vai pouca gente para beber" [agora é às terças-feiras]. "Começou a vir gente de todos os lugares. Era um dos poucos espaços onde havia um microfone onde as pessoas podiam falar e ser ouvidas."
"A literatura não está só no papel. Há muita dor, lágrimas, muita coisa que não foi dita sobre o que acontece com negros, pobres, gays, mulheres. Talvez ainda não seja literatura, mas a gente quer se libertar, ser gente."
Sergio Vaz: "Talvez ainda não seja literatura, mas a gente quer se libertar, ser gente" |
Para Vaz, está havendo uma "Primavera Periférica, como outras que aconteceram pelo mundo, mas só que tudo está acontecendo ao mesmo tempo". A Cooperifa é parte importante desse movimento, pois "estimulou o surgimento de mais de 50 saraus de poesia em outras regiões da cidade".
Artista-cidadão
Nascido e criado no Jardim Ângela, na zona sul, Marcio Vidal já publicou três livros de poesia: "Receitas Para Amar no Século 21", "A Vida em Três Tempos" e "21 Gramas". Sua trajetória tanto como poeta quanto como acadêmico é diretamente influenciada pela Cooperifa. Em 2016, tornou-se mestre em literatura comparada pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP com a dissertação "Cooperifa e a Literatura Periférica: Poetas da Periferia e a Tradição Literária Brasileira"
"Comecei lendo as coisas do Fuzzil [também da Cooperifa e presente na plateia do seminário] e do Sérgio. Fui comprando os livros deles - pedindo desconto - e montando minha biblioteca. Na época também surgiu meu interesse em traçar o processo de desenvolvimento daquele movimento."
Para ele, qualquer um pode ser um poeta marginal ao se contrapor a algo. "Muitos poetas do Modernismo poderiam ser chamados de marginais a escrever poemas como "Ode ao Burguês", de Mário de Andrade, ou "O Bicho", de Manuel Bandeira." No entanto, a poesia periférica é diferente: "É possível contrapor o poema 'Gente Miúda', do Sergio Vaz, ao poema do Bandeira. Os dois tratam da situação de um morador de rua remexendo no lixo. Em Bandeira há o espanto e a animalização daquele sujeito. No Sergio, ele é humanizado. Isso marca nosso local de fala".
Marcio Vidal: "Queremos ler, mas também queremos ser lidos" |
O "Manifesto da Antropofagia Periférica", publicado por Vaz em 2007, é um complemento ao "Manifesto Antropofágico" de Oswald de Andrade, na opinião de Vidal. "O Sergio sinaliza o que seria a literatura periférica, a importância de o poeta ser um artista-cidadão, falar a partir da vivência de seu lugar e não compactuar com as injustiças e desigualdades."
Antes de encerrar sua exposição declamando o poema "Álvaro de Campos foi à Cooperifa", Vidal disse que a famosa declaração do crítico Antonio Candido (1918-2017) de que ler Dostoievsky deveria estar entre os direitos fundamentais, como casa, comida, instrução e saúde - no ensaio "Direito à Literatura", de 1995 -, foi superada pelos escritores da periferia: "Queremos ler, mas também queremos ser lidos".
Pesquisa
Para Érica Peçanha do Nascimento, o fenômeno da literatura periférica não é inédito na literatura brasileira, e "não é nova também a estetização do contexto e da vida na periferia". Ela estudou o tema tanto em seu mestrado, com a dissertação "Literatura Marginal: Os Escritores da Periferia Entram em Cena", e no doutorado, com a tese "É Tudo Nosso! Produção Cultural na Periferia Paulistana".
Ela considera as três edições da revista "Caros Amigos", publicadas em 2001, 2002 e 2004, com 80 trabalhos de autores da periferia um marco para pensar a presença desses escritores na literatura brasileira. "Foi a primeira oportunidade de publicação impressa para muitos deles e uma oportunidade para os trabalhos terem circulação nacional."
A partir de suas pesquisas, ela traçou um perfil dessa literatura. "Nos últimos 20 anos, a produção é de maior quantidade de textos poéticos em relação aos em prosa, que são geralmente contos e crônicas. Prevalecem elementos documentais e biográficos. Se no início o referencial geográfico e as dificuldades da vida eram os assuntos predominantes, depois passou a haver uma diversificação temática, com a inclusão do conflito de classes, do mundo do trabalho, do erotismo e do feminismo."
Do ponto de vista formal, há uma valorização das formas de falar da periferia e de manifestações linguísticas não hegemônicas. "Os textos apresentam regras próprias de concordância verbal e de uso do plural, gírias, neologismos e pontuação escassa."
Érica Peçanha do Nascimento: "Diversificação do perfil social dos escritores brasileiros e do discurso literário" |
Ainda predomina a participação masculina, sendo menor o número de mulheres que ganham visibilidade e conseguem publicar seus trabalhos. Geralmente os escritores estão envolvidos também em projetos de ação cultural. "Os saraus possibilitaram que vários jovens pudessem desenvolver carreiras em arte-educação, produção cultural e outras áreas profissionais."
Uma característica peculiar dos escritores é o fato de o suporte não ser o livro na maior parte dos casos, mas sim o próprio corpo do poeta. "A linguagem e a escrita também ganham voz por meio da performance dos poetas, enriquecida pelas características dos ambientes dos saraus, como os aromas, as cores, as reações do público. Os saraus não formam só leitores, mas também espectadores de performances poéticas."
Para Érica, a principal contribuição cultural dessa literatura é a diversificação do perfil social dos escritores brasileiros e do discurso literário.
Parceria
Heloísa Buarque de Hollanda falou do papel do intelectual em relação à cultura da periferia a partir dos anos 70. "Naquela década, os acadêmicos iam à favela dizer o que os pobres deveriam fazer. Nos anos 80, o intelectual teve de se repensar, pois começou a sentir-se desconfortável naquele papel pedagogizante. Surgem as ONGs, que não tem mais aquele tipo de motivação. Uma ONG é uma negociação. O intelectual passa a ser alguém que negocia demandas populares com o Estado."
"Em 93 passei a ter contato com a cultura emergente fortíssima da periferia. Aí fiquei totalmente desconfortável. Não se tratava mais de, por exemplo, dizer como se deve fazer poesia, ou dizer ao MEC que o Sergio Vaz é bom."
Heloísa considera os autores e produtores culturais uma "tribo de elite da favela, que fala a língua da favela, a língua do Estado - quando precisa lidar com ele- e a língua do mercado, quando vai para a televisão".
A cultura da periferia não é de raiz, é de fluxo e é pop, segundo Heloísa. "Começamos a pensar que o lugar possível do intelectual nessa relação é o de parceiro. Quanto mais se chega perto da periferia, mais constatamos a existência nela de intelectuais muito potentes, de uma massa pensante muito sólida. Não estamos nos anos 70, 80. Agora temos uma classe em transformação."
Heloisa Buarque de Hollanda: "O intelectual deve aprender a ouvir" |
Heloísa apresentou a Universidade das Quebradas como um exemplo de parceria entre os intelectuais da academia e da periferia. Criado em 2010 como um Laboratório de Tecnologias Sociais, o projeto possibilita o aprendizado das duas partes por meio de seminários de um dia inteiro uma vez por semana ao longo de um ano.
"Professores de história da arte, filosofia, antropologia e outras áreas, os melhores, apresentam seminários para os quebradeiros. Pedimos que não facilitem sua linguagem pelo fato de o público ser da periferia. Nos debates, os quebradeiros dão o seu retorno. Depois os papeis se invertem e são eles os expositores, e nós reagimos da mesma maneira." O resultado, segundo ela, é que tanto a equipe acadêmica quanto os quebradeiros mudam depois dessa interação.
É muito difícil para a academia receber a periferia, segundo Heloísa. "Mas deve-se apostar na ideia do diferente, que não tem nada a ver com a ideia de desigualdade. O intelectual deve aprender a ouvir, de forma dura e conflitiva, e soltar a imaginação de quem está à sua frente."
Essa produção passou a disputar a formulação de conceitos e consensos com a universidade, na opinião de Ivana. "A cultura periférica fez as discussões mais interessantes no país nos últimos 10, 20 anos."
Centralidades
De acordo com Eliana Sousa Silva (foto), o plano de um ano para sua atuação à frente da Cátedra Olavo Setubal de Arte, Cultura e Ciência tem a meta de aproximar a USP da periferia.
Integrante do grupo fundador e diretor da Redes da Maré, no conjunto de favelas da Maré, na cidade do Rio de Janeiro, ela utilizou os primeiros meses de vínculo com o IEA para conhecer um pouco da realidade paulistana e dos trabalhos acadêmicos sobre a periferia. "Existem iniciativas isoladas de pesquisadores, mas não há uma centralidade sobre o tema na Universidade", afirmou.
Esse período inicial foi dedicado também a reuniões com dirigentes da USP sobre o desenvolvimento de projetos de extensão.
O ciclo Centralidades Periféricas é uma das linhas de atuação da cátedra em 2018. As outras duas são um projeto para a construção de uma plataforma digital dedicada à cultura da periferia e a formulação de projetos de extensão que possibilitem à USP contribuir para a melhoria da qualidade de vida dos moradores da comunidade São Remo, vizinha à Cidade Universitária, e de outras comunidades da região.
Fotos: Leonor Calasans/IEA-USP
Fonte: http://www.iea.usp.br/noticias/literatura-da-periferia