As vozes das mulheres na arte e na ciência do Brasil
O 8º encontro da jornada teve a participação de (a partir da esq.) Suzana Pasternak, Nádia Batella Gotlib, Liliana Sousa e Silva (moderadora), Regina Pekelmann Markus, Tânia Rivera e Denise Stoklos
Por meio de exposições sobre personagens emblemáticas da contribuição das mulheres na arte e na ciência do Brasil, o encontro Matriarcado de Pindorama - A Impossibilidade do Silêncio, no dia 13 de setembro, possibilitou um panorama, ainda que parcial, do protagonismo feminino na sociedade e na cultura do país, com vozes que não podem e não devem se calar.
As expositoras foram Nádia Batella Gotlib (FFLCH-USP), Suzana Pasternak (IEA e FAU), Regina Pekelmann Markus (IB-USP) e Tânia Rivera (UFF). A moderação foi de Liliana Sousa e Silva, em pós-doutorado no IEA e coordenadora executiva da Cátedra Olavo Setubal de Arte, Cultura e Ciência.
Literatura como encontro
Nádia Batella Gotlib tratou de uma possibilidade de leitura de dois textos de Clarice Lispector: a crônica "Mineirinho" (junho de 1962) e a novela "Água Viva" (versão definitiva em 1973), segundo ela, "dois registros que, aparentemente, surgem de fontes diversas, percorrem caminhos específicos, suscitam no leitor reações divergentes, mas que se juntam no ponto de uma encruzilhada de opções marcada por um denominador comum: o da escrita como um processo de encontro". [Leia a íntegra da apresentação.]
Na crônica, Clarice comenta a execução com 13 tiros de metralhadora do criminoso José Rosa de Miranda, o Mineirinho, cujo corpo foi encontrado na Estrada de Jacarepaguá, Rio de Janeiro, segundo notícias publicadas pelos jornais em 1º de maio de 1962. Na novela, uma artista conta sua historia, "destituindo-a de fatos", observou Gotlib.
"Se em 'Mineirinho' a narradora Clarice 'incorpora' a figura da vítima assassinada, transfigurando-se no outro, e contando a história de dentro para fora, contrariamente a todo um direcionamento mais objetivo dos romances sociais dos anos 1930, em 'Água Viva' a artista pintora escritora dialoga com um ser imaginário, um 'ele', ou 'ela' ou 'nós', no seu 'processo' de 'busca da coisa' ou da incorporação da coisa."
Desigualdade
Assim como em "Mineirinho", a barbárie social e a injustiça fazem parte da obra literária que serviu de contraponto para Suzana Pasternak falar sobre a realidade das favelas e da população de rua da cidade de São Paulo.
A partir de "Quarto de Despejo - Diário de uma Favelada", no qual Carolina Maria de Jesus fdescreve sua vida na Favela do Canindé, na margem esquerda do rio Tietê, Pasternak tratou das condições de vida nas favelas paulistanas nas décadas de 50 e 60 e apresentou dados sobre a situação dessas comunidades na atualidade.
Os temas recorrentes no livro de Carolina de Jesus são a fome, dificuldades para conseguir água, falta de coleta de esgoto e de pavimentação, precariedade dos barracos e pouca sociabilidade, comentou Pasternak.
Ela disse que uma das diferenças em relação à época da escritora é que a maioria das favelas agora estão em áreas mais periféricas da cidade. Pesquisas mostram um crescimento no número de favelas de 188 em 1980 para 1.020 (com 1,28 milhão de moradores) em 2010, afirmou a pesquisadora.
"A favela é ruim, mas não é mais como no tempo de Carolina de Jesus." A coleta de esgoto atinge 67,4% dos domicílios (mais do que a taxa do Brasil como um todo, que é de 51%"). O acesso à água, energia elétrica e coleta de lixo é praticamente universal, bem como a construção em alvenaria, com paredes internas, banheiro e piso, disse.
Segundo ela, os problemas agora são outros, como o tráfico de drogas, violência, falta de equipamentos sociais e o mercado de compra, venda e aluguel das casas.
Em relação à população de rua, em 2000 estimava-se que era de 8.700 pessoas, hoje a estimativa é de 20.000 pessoas (incluindo os que utilizam albergues. "Esse problema não é só de moradia e assistência social. Há também a questão dos usuários de drogas, pessoas com transtornos mentais e vítimas de violência doméstica."
Da pesquisa à gestão
Coube a Regina Pekelmann Markus falar da "impossibilidade do silêncio" das mulheres no Brasil no campo da ciência. Ela fez uma analogia com o tema Matriarcado de Pindorama do título do encontro com a transmissão de informações genéticas pelo DNA mitocondrial apenas pelas mães aos filhos. "Cientificamente, o matriarcado é no tempo, pela herança genética no tempo."
Markus apresentou dados sobre as presença das mulheres nas áreas científicas no país - que se dá principalmente nas ciências biológicas e da saúde - e também na gestão de instituições científicas, como as mulheres que presidiram a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) - Carolina Bori, Glaci Zancan e Helena Nader -, a primeira mulher a assumir a Reitora da UFRJ, Denise Pires de Carvalho, e a primeira a dirigir a Escola Politécnica (EP) da USP, Liede Bernucci.
Para ela, chegou a hora de a mulher olhar a política como mulher, a exemplo da ex-senadora Eva Play e da militância de Helena Nader em defesa das mulheres e da ciência.
O trabalho de Johanna Döbereiner sobre bactérias fixadoras de nitrogênio, essencial para a produção agrícola no Cerrado, também foi mencionado por Markus, ao lado das contribuições de Marta Vannucci, Ruth Nussensweig, Maria Zaíra Turchi e Celina Turchi (descobridora da relação entre o vírus Zika e a microcefalia).
Ela citou ainda cientistas importantes na esfera internacional no século 20, como a matemática da Nasa Katherine Johnson e ganhadoras do Nobel, caso da física Rosalyn Sussman Yalon e Rita Levi-Montalcini, "que fez o experimento que lhe possibilitou o Nobel no laboratório de Hertha Meyer na UFRJ".
Poética e micropolítica
Os espaços de destaque na ciência brasileira conquistados por inúmeras mulheres, conforme o panorama traçado por Markus, refletem a importância de pensar o lugar da mulher no Brasil. Para Tânia Rivera, que além de professora é psicanalista, essa reflexão deve levar em consideração "a impossibilidade do silêncio".
A manifestação das mulheres no Brasil das mais variadas formas em todas as áreas, apesar dos inúmeros empecilhos, aflora independentemente das condições sociais, como no caso de Carolina Maria de Jesus. Rivera exemplificou isso com a história de vida e produção artística e poética de três internas de instituições psiquiátricas.
A mulher que parece encarnar a "impossibilidade de silêncio", segundo Ribeiro, é a empregada doméstica Stela do Patrocínio, internada aos 21 anos no Hospital Pedro II (depois Colônia Júlio Moreira), na cidade do Rio de Janeiro. Ela morreu em 1992, aos 51 anos. Sua mãe também tinha sido interna da colônia. De acordo com Rivera, a longa internação de Stela talvez seja explicada mais pelo fato de ser negra do que pelo diagnóstico de esquizofrenia que recebeu.
Alguns artistas a descobriram nos anos 80 e passaram a gravar suas longas falas poéticas (chamadas por ela de "falatórios") entremeadas por silêncios significativos. Nessas falas, Rivera vê "uma ação micropolítica, numa estratégia muito sofisticada de desatar a linguagem, já que era impossível desatar as correntes que a prendiam no hospício e fora dele".
Outras mulheres receberam etiquetas psiquiátricas que as retiraram do mundo e conseguiram forjar estratagemas, disfarçando sintomas psiquiátricos para fazer micropolítica, afirmou Rivera. Um caso desse tipo foi a prostituta Aurora Cursino, internada com o diagnóstico de "personalidade psicopática amoral" no Hospital Psiquiátrico do Juquery.
Rivera destaca que "é importante ver a produção de pessoas delirantes não só como comportamento poético, mas também como possibilidade de modulação de estratagemas políticos".
Aurora fez muito sucesso no início dos anos 50. Com traços expressionistas em cartolinas de 50 x 40cm, pintava fabulações ou sobre fatos, inclusive tratando de questões de gênero e com críticas à Igreja e à política.
A expositora falou ainda sobre a produção de Natália Leite, hoje com 76, internada aos 14 anos no Hospital São Pedro, em Porto Alegra. Portadora mais de um déficit cognitivo do que uma condição psiquiátrica, segundo Rivera, chegou a deixar o hospital, mas pediu para voltar a ficar lá.
"Ela não fala desde então e participa da oficina de arte desde os anos 80. Faz sobretudo bordados, com temas campestres - possivelmente por causa de sua origem no meio rural -, com casas, animais, figuras humanas, rudimentos de perspectivas subvertidas. Parece querer reconstruir o mundo reconstruindo seus elementos a partir de sua subjetividade."
O encontro contou também com participação especial da atriz Denise Stoklos, que leu textos de Anna Maria Maiolino, artista plástica e multimídia e escritora, e apresentação de vídeo sobre a videoinstalação "Pontes sobre Abismos", de Aline Mattos, que teve texto de sua autoria lido pela doutoranda em geologia Cláudia Rodrigues, aluna da jornada.
Fonte: http://www.iea.usp.br/noticias/encontro8-jornada-catedra-olavo-setubal