As trajetórias de 4 artistas neoconcretos e sua influência até a Tropicália
A partir da esquerda, Celso Favaretto, Luiz Camillo Osório, Paulo Herkenhoff (moderador), Sérgio Bruno Martins, Tania Rivera e Helena Nader, participantes do 14º encontro da jornada
Os fundamentos teóricos do Neoconcretismo, a evolução de artistas ícones do movimento e o contexto científico do período foram discutidos no 12º encontro da Jornada Relações do Conhecimento entre Arte e Ciência: Gênero, Neocolonialismo e Espaço Sideral, no dia 18 de outubro.
Intitulado Brasil, do Neoconcretismo à Tropicália: Lygia Clark, Hélio Oiticica, Lygia Pape, Ferreira Gullar e José Celso Martinez, o evento teve como expositores os filósofos Celso Favaretto e Luiz Camillo Osório, o historiador da arte Sérgio Bruno Martins, a psicanalista Tania Rivera e a biomédica Helena Nader. A moderação foi do curador Paulo Herkenhoff. Nader e Herkenhoff são titulares da Cátedra Olavo Setubal de Arte, Cultura e Ciência, organizadora da jornada em parceria com a Pró-Reitoria de Pós-Graduação.
O objetivo do encontro foi analisar o processo construtivo na arte brasileira e as relações entre o Neoconcretismo e o Tropicalismo e seus artistas. Para Herkenhoff, propostas participativas e o encaminhamento em direção ao Tropicalismo foram os recursos utilizados pelo Neoconcretismo para fazer frente à crise das artes plásticas do país nos anos 60, decorrente do esgotamento da "geometria canônica". Isso ocorreu por meio de ações fundamentadas na produção de conhecimento e na presença do sujeito, segundo o curador.
Livre docente em filosofia e professor aposentado da Faculdade de Educação da USP, Celso Favaretto tratou da carreira do artista plástico Hélio Oiticica (1937-1980) [leia a íntegra da exposição]. Especialista em estética, educação e ensino de filosofia, Favaretto é o autor do livro “A Invenção de Hélio Oiticica” (1992).
Para ele, Oiticica, a partir do ideário neoconcreto, propôs a invenção de estruturas espaciais como solução para os impasses da crise da pintura. Em seus trabalhos buscou resolver as questões de estrutura, cor, espaço e tempo, "já introduzindo a categoria de participação, que a pontava o deslocamento da arte para os comportamentos”.
Oiticica situa-se no horizonte das transformações artísticas e ideias estéticas surgidas no que, posteriormente, ficou conhecido como “projeto construtivo brasileiro” dos anos 50, segundo o filósofo.
“Centrado na questão da estrutura-cor, Oiticica deslocou o lugar e o sentido da pintura como etapa preparatória para a chegada a uma ‘ordem ambiental’ que transformaria a arte em campo de ações em que se interceptariam construção e vivência.”
Isso se deu com a invenção do “Parangolé”, um programa in progress que ele desenvolveu do final dos anos 60 até sua morte em 1980. A concepção de antiarte presente no programa desdobrou-se em várias proposições (manifestações ambientais, suprassensorial, crelazer, Éden, ninhos, delírio ambulatório e contrabólides), explicou Favaretto.
Essa trajetória experimental “implicava extrema lucidez quanto aos desdobramentos do trabalho artístico e das relações entre arte e vida; sentido ético e sentido estético; inconformismo estético e inconformismo social, conjugados”.
De acordo com o expositor, a primeira totalização do programa ocorreu em 1969, quando Oiticica apresentou a instalação “Éden” em Londres, concebida como (nas palavras do artista) “um campus experimental, uma espécie de taba, onde todas as experiências humanas são permitidas”.
Depois de breves passagens pelo Brasil, Oiticica instalou-se em Nova York, onde faz de sua morada "um compacto ninho experimental, puxando novos fios, repropondo as linhas anteriores e tecendo novos surtos da invenção”, disse Favaretto.
Quando voltou ao Rio de Janeiro em 1978, deparou-se com uma situação artístico-cultural muito diluída e se dispõe a nela intervir, interessado em realizar projetos que delineara em Nova York, afirmou.
“A morte colheu-o em 1980 em plena efervescência, no momento em que dizia estar apenas começando. Entendia tudo o que tinha feito antes como um ‘prelúdio’ ao que estava vindo: ‘o ovo do novo’, tal como em suas últimas manifestações ambientais no Rio de Janeiro e em São Paulo.”
Nas últimas décadas, Oiticica passou a ser considerado um artista seminal por críticos e artistas brasileiros e estrangeiros, disse o expositor. “Foi instituído como um dos maiores inventores da arte do século 20, que abriu possibilidade inéditas para os desenvolvimentos da arte contemporânea.”
“A tensão entre conceitualismo e participação e a inclusão das vivências no empenho de desestetização, retirando-a da simples desconstrução das formas, são marcas específicas de suas proposições."
Exemplo disso, segundo Favaretto, é a instalação “Tropicália”, de 1967, onde "a estrutura ambiental mescla-se a proposições culturais de referência popular, exige comportamentos renovados dos participantes, mobiliza imagens emblemáticas do Brasil, desatualizando-as, e abre a imaginação para ações transformadoras do que é designado como arte".
Para Favaretto, “Tropicália” insere-se no “formidável ímpeto transformador de arte e de crítica da cultura brasileira” que caracterizou aquele ano. “Basta lembrar que em 1967 apareceram também: 'Terra em Transe', de Glauber Rocha; a montagem de “O Rei da Vela”, de Oswald de Andrade, por José Celso Martinez Corrêa, no Teatro Oficina; o livro-epopeia 'PanAmérica', de José Agrippino de Paula; e o surgimento do grupo baiano de música popular, com destaque para a música “Tropicália”, de Caetano Veloso, cujo funcionamento estético é estruturado como um percurso, semelhante ao que solicita o ambiente de Oiticica."
A música este presente na produção de outro expoente do Neoconcretismo, a multiartista Lygia Pape, tema da exposição de Luiz Camillo Osório, diretor do Departamento de Filosofia da PUC-RJ.
Ele tratou sobretudo do recorte da obra da artista em que há um diálogo com a transsensorialidade, com a incorporação da música e do cinema já nos anos 60. “Há um exercício experimental da liberdade atravessado pela energia popular, pulsação climática e natureza.”
Para Osório, é empobrecedora a leitura que vê em trabalhos de Pape uma abordagem enviesada da hierarquia social brasileira. Sua arte faz surgir “uma cultura que estava silenciada” e demonstra “a potência do que não é dito”.
O grande desenvolvimento do ambiente artístico nos anos 50, com a criação da Bienal de São Paulo, dos Museus de Arte Moderna de São Paulo e do Rio de Janeiro, a chegada do concretismo ao Brasil e as participações dos escultores Max Bill (1908-1994) e Alexander Calder (1898-1976) nas Bienais de 1951 e 1953, respectivamente, "levaram Pape a optar por formas geométricas, por uma paleta mais restrita, a abandonar a intensidade gestual e a uma estratégia para tirar o criador da fatura da obra", disse Osório.
De acordo com o expositor, Pape passa a ver o fazer artístico como uma experiencia estética singular, com contraste de luz e sombra, rasuras, expressividade intrínseca ao rigor geométrico, xilogravura. "A geometria deveria se tornar algo singular. Ela quer ir além de si numa nova relação entre expressão e subjetividade". Mas como fazer isso, sem ser impessoal? "Aí entra a disciplina poética de Pape", afirmou Osório.
Crucial no processo de espacialização de formas geométricas de Pape é a experimentação de materiais e linguagens. Exemplos disso citados por Osório são as obras “Balé Neoconcreto” e “Poema-Luz”.
Com a ditadura militar em 1964, a questão passou a ser como propor uma arte de vanguarda que fizesse da marginalidade uma forma de resistência, disse o expositor. Com a crise do movimento neoconcreto em 1962/3 e o agravamento do panorama político, surgiu o Centro Popular de Cultura (CPC), vinculado à União Nacional dos Estudantes (UNE), que "fugiu da experimentação para produzir uma arte mais pedagógica".
Contra o modelo do CPC, Oiticica, Clark e Pape buscaram outra experimentação para gerar um novo tipo de engajamento e novas formas de arte: “Em vez de falar em nome dos oprimidos, buscavam viabilizar a participação de novos corpos, com a obra sendo uma proposição e o espectador convocado como participante. Dessa convocação dos corpos marginalizados, vimos aparecer os parangolés de Oiticica e as experiências sensórias de Clark.”
Na opinião de Osório, a apropriação do espaço popular por Pape em filmes de 1975 e 1975 deu-se por sua colaboração anterior com diretores do cinema novo, como Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos e Paulo César Sarraceni.
No diálogo dela com a tradição ameríndia, por sua vez, não há apenas o interesse superficial nos padrões geométricos. O objetivo é compreender a produção de arte na precariedade. "Em vez de falar do sofrimento, instaurar nele o gesto transformador."
A exemplo de manifestações de Paulo Herkenhoff em outros encontros da jornada, o historiador da arte Sérgio Bruno Martins, professor da PUC-RJ, também considera que o Manifesto Concretista não rompeu com o passado
Para ele, o poeta Ferreira Gullar propôs uma reconstrução, com a prevalência da obra sobre a teoria. "No início da Teoria do Não Objeto [1960], Gullar anuncia o fim de pintura.”
A história teleológica da arte moderna é vista à luz do novo conceito, que tem o não objeto como ponto central, disse o expositor. "Gullar repensa todo o sentido da história da arte a partir da poética do neoconcretismo, num esforço para inseri-lo na história."
Segundo Martins, Oiticica foi um dos maiores entusiastas da teoria, mais do que o próprio Gullar, para quem a prevalência da obra sobre a teoria também vale para a teoria do não objeto. "Deve-se revelar o não objeto a partir das obras. Encontrar os pontos de uma tradição, não seguir com a teoria do não objeto como uma chave cognitiva."
De acordo com Martins, Gullar vê o não objeto com uma negação mais da pintura do que da escultura. "Isso faz do conceito algo mais talhado para explicar as obras de gente como Clark e Oiticica."
Para Gullar, a obra não é determinada pelo passo a passo da produção, explicou Martins. “Daí a repetição de esculturas Amilcar de Castro. São tentativas de encontrar algo sem jamais conseguir.”
Quanto ao Gullar poeta, Martins disse que o recurso a fenomenologia dos sentidos do filósofo francês Maurice Merleau-Ponty (1908-1961) traz ganhos não no debate com o concretismo paulista, mas sim na oposição aos poemas do livro "A Luta Corporal” (1954), do próprio Gullar. Nessa obra, o poeta maranhense tenta "tocar as coisas e elas lhe escapam, ao ponto de a linguagem se desagregar". No neoconcretismo ele "vai encontrar estabilidade, à qual o pensamento de Merleau-Ponty acrescentará uma perspectiva fenomenológica".
A psicanalista Tania Rivera, professora da UFF, tratou da relação entre o Lygia Clark e psicanalista francês Pierre Fédida e da utilização de objetos para fins terapêuticos.
Clark chamava de terapêutica sua proposta Estruturação do Self e deu atendimentos individuais em seu apartamento no Rio de Janeiro até perto de sua morte, em 1988.
As anotações clínicas de Clark foram resgatas e editadas por Herkenhoff, informou Rivera, que considera esse trabalho da artista “uma derivação em relação ao projeto neoconcreto coerente com sua trajetória. “
A Estruturação do Self talvez leve a um extremo. Primeiro por Gullar, mas certamente compartilhado pelo grupo, afirmou. "Gullar faz menção a organismos vivos, similares às obras. A Estruturação do Self, por sua vez, considera os organismos em si. A ideia é construir com o corpo algo contrário a um organismo, mas coerente com os órgãos: construir corpos-órgãos."
Trata-se da quebra de ideia do corpo como um organismo que funciona de certa maneira, com a funcionalidade em primeiro plano, mas com caráter uno, como um campo de fluxos, disse Rivera.
Mas há também uma crítica ao organismo em Clark, com o corpo sendo situado nos objetos, fora dele. Os objetos constituiriam espécies de órgãos, comporiam o corpo, comentou a psicanalista. “Pode-se dizer que a Estruturação do Self ecoa a estruturação do não objeto. Uma das caracterizações do não objeto fala de um objeto especial em que se efetua uma síntese de experiências sensoriais e existenciais: a experiência psíquica.”
Há um apelo ao corpo, “mas nunca se trata do corpo como evidência física, e sim como a questão fundamental da arte de Clark: não é só participação, mas algo muito mais fundamental e que tem a ver com corpo e gesto, sem um se esgotar no outro”.
Rivera lembrou que o período entre os anos 60 e 70 viu florescer técnicas corporais as mais diversas, inclusive várias terapias corporais. "A Estruturação do Self não declina da participação do espectador, à maneira das terapias corporais. Constitui uma relação muito mais complexa. Ecoa uma certa ideologia de plenitude presente até hoje em algumas propostas, a ideia de uma recuperação mecânica de uma certa memória do próprio corpo."
Em projeto que realizou com jovens na Sorbonne, centrado na experiencia da arte como um itinerário fora de si, Clark constatou o surgimento de efeitos terapêuticos e aí começou a pensar em fazer algo terapêutico em sua obra. “Ela chegou a dizer que pensou em se tornar analista, mas percebeu que queria permanecer na fronteira. Não se tratava de abandonar o mundo da arte para se tornar terapeuta, mas assumir uma posição entre arte e terapia.”
De 1972 a 1974, em Paris, Clark foi analisanda de Fédida, que usava objetos em seu consultório. Nos relatos dela sobre as sessões da Estruturação do Self, que duravam muito tempo, vê-se que era fundamental que os pacientes relatassem o que estavam sentindo enquanto Clark os tocava com diferentes objetos, comentou Rivera.
A Estruturação do Self ainda é praticada por Gina Ferreira e seu marido, Lula Wanderley, que a aprenderam com Lygia. Gina é bem mais fiel às proposições de Clark, segundo Rivera.
O desenvolvimento da obra e da reflexão de Oiticica, Pape, Gullar e Clark deu-se num período de grande transformação da ciência brasileira, de acordo com Helena Nader.
“Na verdade, a ciência brasileira de forma estruturada começa no pós-guerra. Até a vinda da família real, em 1808, o país não podia nem ter impressoras." Depois, começaram a surgir as primeiras escolas de medicina, direito e de outras áreas e no início do século 20 foram criados institutos de pesquisa como o Instituto Oswaldo Cruz e o Instituto Butantan, recordou Nader. “Mas tudo isso aconteceu sem uma organização."
A organização da ciência começa de verdade no pós-guerra, segundo ela. Mesmo as primeiras universidades, como a USP, a Universidade do Brasil (atual UFRJ) e a Universidade do Paraná (atual UFPR) ainda não tinham uma filosofia própria de uma universidade, afirmou. “A pesquisa era feita em institutos de pesquisa, não em universidades."
Um marco na estrutura da ciência brasileira, foi a criação, em 1940, da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), “não com a ideia de competir com as sociedades científicas, mas para reunir cientistas de todas as áreas para discutirem o papel que a ciência deveria ter no país”.
Em 1951, foram criados o Conselho Nacional de Pesquisa Científica (CNPq) e a Coordenação de Aperfeiçoamento do Pessoal de Ensino Superior (Capes). Na segunda metade da década de 60 surgiram a Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), o regime de tempo integral nas universidades, o sistema de pós-graduação e o Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT)
Nader criticou o fato de integrantes do governo atual considerarem alguns desses avanços ações da esquerda, quando na verdade foram implementados durante a ditadura militar. Questionando as manifestações do governo pela eliminação ou fusão de instituições ou ainda sua realocação em ministérios inapropriados, Nader disse que “tudo que foi construído nos últimos 70 anos está ameaçado de destituição”.
A intenção de transferir o FNDCT para o Ministério da Economia e tornar a Finep novamente uma secretaria na estrutura do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) foi questionada pela expositora. “O Ministério da Economia não tem capacidade de gerir o FBDCT. A Finep nasceu dentro BNDES, mas constatou-se que nos países avançados o investimento em inovação envolve capital de risco, e o BNDES é um banco, não pode ter risco.”
Ela citou a criação da Embraer, do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA) e da Embrapa como outros exemplos do desenvolvimento científico do país. “Somos o maior produtor de grãos do mundo graças a muita tecnologia. Essa ciência mostrou ao mundo as implicações da infecção pelo vírus Zika.”
“Em 30 anos, o Brasil passou de uma posição de rabeira no ranking da produção científica para a 13ª posição. Fala-se que não é preciso formar tantos doutores, mas o número que temos deles está aquém dos números de toda a América Latina. Proporcionalmente, a Argentina tem o dobro de doutores”
Nader dedicou sua fala ao bioquímico Isaías Raw, hoje com 90 anos. “Além de um cientista genial, ele sempre foi inquieto, preocupado com o país.” Para uma visão geral da carreira e pensamento de Raw, Nader recomendou a leitura da entrevista “Isaías Raw: cientista bom de briga”, feita pelos jornalistas Claudia Izique e Marcos Marcolino para a revista “Pesquisa Fapesp” (julho, 2005).
“Isaías é fundador da Editora da USP e a Editora da UnB. Quando era docente da Faculdade de Medicina da USP criou o curso de medicina experimental. Criou feiras de ciências e kits para experimentos de estudantes. Criou também o primeiro vestibular unificado, o Cecem, para áreas médicas e biológicas. O sonho dele era criar na Galeria Prestes Maia [passagem em uma das cabeceiras do Viaduto do Chá, no centro de São Paulo] exposições contínuas sobre ciências para motivar os jovens para a atividade.”
Em 1964, Isaías foi preso. disseram que ele era comunista, mas o soltaram depois de vários ganhadores do Nobel assinarem carta ao general Castelo Branco pedindo sua liberdade, relatou Nader. Mas com o AI5, em dezembro de 1968, foi mandado embora da USP, preso e teve de se exilar. Foi primeiro para Israel e depois para os Estados Unidos, atuando na Universidade Harvard e no MIT.
Fonte: http://www.iea.usp.br/noticias/do-neoconcretismo-a-tropicalia