A arte como meio de reflexão sobre corpo, gênero e sexualidade
"No plano da micropolítica do desejo, resistir é justamente se libertar de padrões genéricos e a subjetividade tolerar os momentos de crise, para que o desejo gere novas formas de viver", segundo a psicanalista Suely Rolnik, participante do encontro Arte, Gênero, Sexualidade - As Perplexidades do Pensamento Teórico, realizado no dia 31 de outubro e integrante da Jornada Relações do Conhecimento entre Arte e Ciência: Gênero, Neocolonialismo e Espaço Sideral.
Além dela, foram expositores no evento o curador e ativista Guilherme Altmayer (PUC-RJ), a fotógrafa Fernanda Magalhães (UEL), a artista visual Élle de Bernardini e o psiquiatra Jair de Jesus Mari. A moderadora foi a biomédica Helena Nader, titular da Cátedra Olavo Setubal de Arte, Cultura de Ciência,
Guilherme Altmayer, doutorando em design na PUC-RJ, falou das atividades artísticas que desenvolve tendo por referência a cultura LGBTQI. Hoje aos 47 anos, afirmou que só assumiu sua homossexualidade aos 30 anos e que as práticas artísticas foram um processo que pouco a pouco lhe trouxe uma "cura" para a sua própria questão do corpo.
Uma de suas curadorias, em parceria com Pablo León de la Barra, foi da exposição "Os Corpos São as Obras" (2017), na cidade do Rio de Janeiro. A mostra promoveu várias atividades e propôs um "diálogo entre algumas propostas dos anos 1970 e 1980 e uma geração de artistas e ativistas no Rio de Janeiro de hoje, trabalhando e repensando a ideia dos corpos-obra e obras-corpo como ferramenta política para desestabilizar normas e discursos hegemônicos", de acordo com texto de apresentação da mostra escrito por Altmayer.
Ele foi um dos participantes da exposição Queermuseu - Cartografias da Diferença na Arte Brasileira", interrompida em setembro de 2017, pelo Santander Cultural, em Porto Alegre, diante da pressão de grupos que consideraram as obras apologia à pedofilia, zoofilia e blasfêmia. Depois, a ida da mostra para o Museu de Arte do Rio (MAR) foi vetada pelo prefeito Marcelo Crivella. Finalmente, em agosto de 2018, o Queermuseu foi inaugurado na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, graças à mobilização da comunidade artística, que arrecadou R$ 1 milhão com a venda de obras de arte e show de Caetano Veloso.
Movimento
Para Altmayer, existe um movimento nesta década que ainda precisa ganhar um nome. "De 2012 a 2018, houve mais de 50 encontros ou mostras. "Mas 2019 está sendo uma incógnita, pois 90% dessas atividades acontecem em espaços alternativos, que estão com pouca verba. Há o risco de tudo evaporar."
No final de sua exposição, Altmayer apresentou o vídeo “Casa do Corpo Nu Luz del Fuego - Desde 1954”, que realizou em 2015. O trabalho retrata o abandono atual da Ilha do Sol, na Baia de Guanabara, onde Luz del Fuego (Dora Vivacqua, 1917-1967), uma das homenageadas pelo encontro, implantou a primeira colônia naturista do Brasil. As imagens são entremeadas com cenas do documentário "A Nativa Solitária: Luz del Fuego e os Adeptos de sua Colônia de Nudismo" (1954), de Francisco de Almeida Fleming, que trata da carreira da dançarina e naturista e de sua colônia.
A dançarina, stripper e naturista Luz del Fuego (1917-1967), cujo nome era Dora Vivacqua, e a escritora, jornalista e tradutora Patrícia Galvão, a Pagu (1910-1962), foram as homenageadas no encontro pelo que representaram do ponto de vista feminista e libertário.
O próprio corpo é referência para o trabalho artístico de Fernanda Magalhães, que o utiliza em performances, fotos e vídeos. Ela se define como artista, performer, ativista, gorda, feminista, fotógrafa e professora (da Universidade Estadual de Londrina).
"Meus trabalhos partem do meu corpo de mulher gorda. Nunca tive problemas com meu corpo. O trabalhou surgiu de meu inconformismo com o discurso que trata o corpo da mulher gorda como um corpo que não deve existir."
Durante sua exposição, Fernanda apresentou diversas imagens sobre suas performances e outros trabalhos, detalhando suas motivações e o encadeamento entre as várias séries, produzidas no Brasil e no exterior.
Performance
O encontro teve uma performance de Élle de Bernardini, na qual ela caminhou de forma ritualística e portando um espelho de mesa do fundo do auditório até a mesa dos expositores, onde se sentou e passou a representar uma mulher trans retirando com uma pinça pelos da barba.
Durante toda a apresentação, ouviu-se uma narração gravada por ela com dados sobre assassinatos de travestis e transsexuais e outras violências homofóbicas e sobre as dificuldades que a comunidade LGBTQI encontra para viver plenamente em todas as esferas sociais.
Para ela, que é uma mulher trans, o momento é de crise do modelo do homem branco e eurocêntrico. "Mas a partir da crise surge uma revolução", afirmou, comparando a situação atual com as crises da ciência que antecedem as revoluções científicas, de acordo com o historiador e filósofo da ciência Thomas Kuhn, autor de "A Estrutura das Revoluções Científicas".
Élle defende a instauração de uma sociedade contrassexual, como definida pelo filósofo transgênero Paul Beatriz Preciado. "A coisa mais bela é que não haveria mais homem e mulher, só corpos, corpos falantes, indiferentes de identificação."
Jair de Jesus Mari, chefe do Departamento de Psiquiatria Universidade Federal de São Paulo, concordou com Élle de que "somos corpos falantes" e afirmou não haver níveis precisos de indicadores biológicos que possam definir se alguém é homem ou mulher, dada a variabilidade de fatores como a quantidade de hormônios sexuais a cada momento num organismo, a conformação genital e a presença de pares de cromossomos XX (femininos) em homens e XY (masculinos) em mulheres.
Mari destacou que a própria psiquiatria tem passado por grandes transformações nas últimas décadas em relação às questões de gênero e opção sexual. O homossexualismo deixou de ser considerado doença em 2003 e qualquer tipo de relação sexual consensual está fora do espectro de manifestações de distúrbios mentais, segundo o psiquiatra.
Ele também apresentou dados de pesquisa realizada pela Unifesp em São Paulo e no Rio de Janeiro sobre a saúde mental das mulheres em grandes cidades. De acordo com o levantamento, há um nível elevado de depressão entre elas - um quinto apresentará pelo menos um caso durante a vida -, além disso, 10% das mulheres apresentam sequelas importantes de traumas relevantes. "As mulheres estão mais vulneráveis a apresentar problemas de saúde mental."
Diante desses dados e considerando outros indicadores, como o aumento no número de suicídios entre meninas de 15 a 19 anos e de casos de feminicídio e quase um milhão de abortos por ano, Mari questionou se na sociedade moderna homens e mulheres estão se tornando mais iguais ou mais diferentes.
Negação do outro
Para Suely Rolnik, que além de psicanalista é crítica de arte e cultura, curadora e professora da PUC-SP, permaneceu na formação da cultura a negação da existência do outro, que é apenas "um objeto a serviço do meu gozo e da minha acumulação de capital e narcísica: é algo que não me diz respeito e está lá para ser abusado para meu gozo".
Segundo ela, "o outro é algo externo a mim sobre o qual eu projeto interpretações, mas outra dimensão é a de nossas experiências como viventes, na qual apreendemos estados de força do mundo que produzem efeitos no nosso corpo".
O sujeito utiliza os códigos de como pensar e agir e ao mesmo tempo é afetado pelas forças do mundo social, que produzem um estranhamento em seu corpo, de acordo com a psicanalista.
Para ela, isso é vivido como algo muito ruim, "mas talvez seja a experiência mais preciosa da vida", pois significa que a vida está "tocando um sinal de alarme e isso provoca o desejo, para que seja recuperado o equilíbrio". O que vai variar são as políticas de desejo frente a esse alarme vital, afirmou.
É possível definir qual a política de desejo predominante num regime, "mas essa política está totalmente silenciada atualmente", disse. "Ainda assim, o desejo vai agir para recuperar o equilíbrio. O sujeito via avaliar de forma básica: estão me amando ou não?"
Se a resposta for negativa, '"vou pensar que alguém é culpado: eu ou o outro". Se o sujeito se considera o culpado, seu desejo vai para o consumo, não só de coisas, mas também de discursos, "para recompor seu controle sobre o próprio discurso". No caso de considerar que a culpa é do outro, o sujeito vai projetar todo seu mal-estar nesse outro, disse Rolnik. "Todos os governos totalitários usaram isso no que difere de um padrão genérico."
Fonte: http://www.iea.usp.br/noticias/arte-genero-sexualidade