Construção de Acervo Como Ato Político [resumo]
A palestra de Ülrich Krempel, que
inaugurou em outubro de 2003 a série de eventos do Fórum Permanente de
Museus, suscitou a discussão sobre dois assuntos muito pertinentes para
a reflexão museológica no Brasil: a proveniência das obras de arte que
formam os acervos e a questão do aumento do público frequentador de
museus.
O Museu Sprengel de Hannover, Alemanha, dirigido por
Krempel, foi fundado a partir da doação da coleção de Bernhard
Sprengel, em 1969. Este fabricante de chocolates adquiriu cerca de 600
obras do modernismo francês e expressionismo alemão durante a Segunda
Guerra, e refletir sobre a origem dessas peças é hoje uma das tarefas
dos pesquisadores que trabalham com a coleção. Obras de arte de
famílias perseguidas pelo regime nazista do Terceiro Reich foram
confiscadas e posteriormente repassadas a comerciantes e colecionadores
particulares, até chegarem aos acervos dos museus públicos que hoje as
abrigam. Krempel salientou a importância da "tarefa política" de um
museu: não apenas exibir obras da coleção, mas traçar e expor a
história do acervo. O próprio Bernhard Sprengel não sabia ao certo de
onde vinham as telas que adquiria e seus herdeiros apóiam a iniciativa
do museu de refazer os caminhos percorridos por cada obra. Assim, após
uma pesquisa de proveniência, o museu retornou aos proprietários
originais uma tela de Lovis Corinth comprada por Sprengel em 1948 que
fora confiscada da família proprietária em 1941.
Este assunto
gera reflexões sobre a formação dos acervos brasileiros. Pouco se
discute a história das coleções, os contextos que impulsionaram a ação
de colecionadores particulares, ou a lógica do colecionismo. Acervos
como o do Museu de Arte de São Paulo certamente guardam histórias
surpreendentes de proveniência. O estudo da origem das obras é, no
entanto, uma pequena parte de um trabalho que Krempel considera
fundamental na discussão do museu no século XXI: a importância da
pesquisa de acervo como um todo. Como exemplo desta atuação de trabalho
científico com o acervo, Krempel citou o projeto do Museu Sprengel de
catalogação da obra de Kurt Schwitters. O museu abriga o arquivo de
Schwitters, doado por seu filho, além de uma reconstrução da Merzbau,
feita em 1983 (o original construído no ateliê do artista entre 1923 e
1936 foi destruído num bombardeio em 1943). Outro destaque da coleção
do Sprengel é uma sala que abriga desde 1979 a reconstrução do Gabinete
de Abstração, de El Lissitzky. Criado em 1927 especialmente para o
museu municipal de Hannover, o gabinete era um ambiente reservado à
exibição de obras de arte contemporâneas, e como salientado por Marcelo
Araújo, pode ser considerado "a primeira obra que foi especificamente
pensada para um espaço museológico, instaurando uma prática artística
que é extremamente disseminada na atualidade." Destruído em 1937, o
gabinete foi recriado segundo o projeto original em 1969.
Outro
assunto abordado na conversa com Krempel muito pertinente no contexto
brasileiro diz respeito ao alargamento do público de museus,
através de ações educativas e de um trabalho de inclusão de minorias.
Enquanto lidamos no Brasil com o problema de inclusão social, a Europa
lida com o desafio de inclusão de minorias étnicas.
A partir de
uma das questões de Marcelo Araújo sobre a relação do Museu Sprengel
com a minoria turca que vive na Alemanha, Krempel posicionou-se contra
curadorias específicas para uma etnia, julgando que seria paternalista
e reducionista criar salas especiais para artistas de ascendência
turca: "não existe um discurso nem entre pessoas filiadas à esquerda,
ou entre pessoas de origem turca, ou entre curadores de origem turca
que insistam na instalação de salas especiais. Normalmente, na
Alemanha, isto é percebido como uma medida de exclusão, como uma medida
assistencialista ou paternalista, como se a tarefa fosse dar um papel
especial aos artistas. Mas isto nós já tivemos demais na Alemanha,
pensemos apenas na estratégia de exclusão do Terceiro Reich.
(...) Não existe esta apresentação especial, e entre os jovens artistas
profissionais, eles não temem nada mais que uma exposição que pudesse
ser mostrada pelo Goethe de São Paulo que diria 'Cinco artistas jovens
de origem turca'. Isto cheiraria a paternalismo, e isto é a pior coisa
que se pode desejar para artistas que querem seriamente participar da
vida profissional."
Krempel salientou que o Museu Sprengel
oferece programas de visitação específicos para idosos, crianças e
estudantes, categorias que já incluem turcos, marroquinos, e pessoas de
qualquer comunidade, dispensando portanto programações baseadas em
critérios étnicos. Outras ações que visam o alargamento do público do
museu são a abertura do museu em feriados mediante negociação com
sindicatos de funcionários e um programa para visitantes noturnos em
conjunto com outros museus da cidade que mantêm as portas abertas das
18:00 às 01:00h -- a "Longa Noite dos Museus", durante a qual os
visitantes compram um bilhete único para percorrer vários museus.
Krempel
salientou que evita soluções fáceis de aumento de público: "Alguns
colegas da Alemanha hoje recorrem a uma arma popular. Por exemplo fazem
uma exposição sobre 'Picasso e Erotismo', pois nús sempre vendem bem.
(...) Pode ser estratégia para ganhar muito dinheiro, isso é
muito importante, mas do ponto de vista da história da arte isso é um
objetivo relativamente modesto."
Ao discutir a história do
acervo e o relacionamento do Sprengel Museum com seu público, Krempel
enfatizou a complexidade da ação de um museu na comunidade em que se
insere e deixa questões, tais como a inclusão de minorias, que
aplicadas ao contexto brasileiro podem conduzir a uma valiosa troca de
idéias no ambiente virtual do Fórum Permanente.
[por Paula Braga]