Mesa 1 - Desafios para museus face à diversidade cultural [resumo]
Desafios para museus face à diversidade cultural, com Helmut Friedel (Alemanha), Stijn Huijts (Países-Baixos) e moderação de Martin Grossmann
A discussão sobre o museu face à diversidade cultural foi iniciada na fala de Martin Grossmann pela questão do museu como representante de valores nacionais instaurada pelo Iluminismo. Desse ponto de vista, instituições como o Museu Nacional de Belas Artes ou a Biblioteca Nacional, ambos no Rio de Janeiro, antiga capital do Brasil, teriam a função de abrigar o conhecimento gerado pela ciência e arte brasileira. No modernismo, no entanto, esse caráter nacionalista dos museus sofre uma reviravolta: o modelo do museu como cubo branco assume também a função de difundir a internacionalização da arte – suposta internacionalização que tramita no eixo Europa-EUA e deixa de fora países periféricos. Substituindo os museus na tarefa de difundir a arte produzida nas culturas periféricas, as galerias comerciais são hoje as grandes responsáveis pela internacionalização da arte. Uma exceção a este modelo é o Moma de Nova Iorque que desde sua fundação estabeleceu boas relações diplomáticas com a América so Sul e possui uma considerável coleção de arte produzida nos países latino-americanos.
Este resumo da atuação dos museus na questão centro-periferia contextualizou os principais pontos para discussão daquela primeira mesa da jornada de debates com comissários e artistas da bienal. Como o museu, instituição que carrega em sua história uma vocação nacionalista ou no mínimo exludente em relação a culturas periféricas poderá encarregar-se dos hibridismos (e Grossmann citou Canclini), das mesclas culturais? Não seria a cultura antropofágica brasileira, tão bem discutida na bienal de 1998 organizada por Paulo Herkenhoff, um caminho para a mescla, para o amálgama cultural que desestabilizará a solidez do eixo Europa-EUA? Grossmann citou ainda que dois expoentes da arte contemporânea brasileira – Hélio Oiticia e Lygia Clark – têm abalado a linha de pensamento que estabelece um centro e uma periferia. Desde a criticável exposição de 1989 do Centro Georges Pompidou Les Magiciens de la Terre, tornou-se indispensável para críticos e pensadores da arte do mundo todo interrogarem-se sobre as situações criativas que geraram obras como as de Oiticica e Clark: como um país periférico produziu um pensamento e entendimento da arte moderna que causa tamanho estranhamento e fascínio ao centro? O mesmo vale para a produção de arte das várias culturas do continente africano, China e do antigo bloco soviético.
Martin Grossmann convidou então Stijn Huijts e Helmut Friedel a comentarem duas idéias surgidas em outras edições do Fórum Permanente: a auto-percepção de Maarten Bertheux, do Stedelijk Museum de Amsterdã, que considera sua intituição um “museu da periferia” (certamente em comparação com museus de outros grandes centros culturais como Paris e Nova Iorque, mas ainda uma percepção espantosa a ouvintes brasileiros para quem a Holanda se enquadra como ponto do eixo Europa-EUA) e a defesa de Nicholas Serrota, que ao contrário de enaltecer o gigantismo de sua instituição – a Tate Gallery – convocou museus menores a resgatarem suas próprias qualidades, seus contextos locais, em contraposição a moldarem-se pela atuação de instituições do porte da Tate ou do Guggenheim.
Stijn Huijts, diretor do Museu Het Domein (http://www.hetdomein.nl) da pequena cidade holandesa Sittard, definiu sua instituição como estando no “centro da periferia”. Sittard está a menos de cem quilômetros de grandes centros culturais como Bruxelas, Colônia, e Dusseldorf, o que coloca um pequeno museu de arte contemporânea de uma pequena cidade na “periferia” no contexto cultural holandês. Mas, com bom humor, Huijts diz que sua instituição é mais um dos muitos “centros” do mundo, por sua política cultural peculiar e diferenciada: o Het Domein é um museu muito jovem, que beneficiou-se de seu pequeno porte e ausência de um passado histórico, tratando estas qualidades como vantagens e não falhas: sem o peso histórico nas costas constituiu-se do zero, definindo seu próprio caminho que inclui: 1. não trabalhar com restrições geográficas ou com conceitos de “arte local” 2. evitar abordagens históricas para discutir arte 3. agir de modo impulsivo, orientado por intuições 4. trabalhar principalmente com jovens artistas (Ray Johnson, Öyvind Fahlström, Sigurdur Gudmundsson, …). De forma bastante intuitiva o Het Domein mistura esses artistas e tenta orientar-se por atitudes e não por categorias (pintura, escultura, fotografia…): como é a atitude do artista ao abordar o fazer artístico? Há artistas que priorizam uma atitude política, outros que desconstróem a ideologia da cultura visual, da cultura de massa, artistas que trabalham quase como cientistas…
O museu de Huits também se envolve em projetos ambiciosos como o Nascimento/Renascimento, que o Het desenvolve com uma instituição italiana, invenstigando a possibilidade de um modelo de artista similar ao modelo do artista do renascimento, que também era um cientista e que trabalhva fora deste pequeno mundo chamado arte. Esse projeto envolveu, além da instituição italiana e do Het Domein, o museu S.M.A.K. em Gant, na Bélgica (http://www.smak.be), o Palais de Tokio, em Paris (www.palaisdetokyo.com) e o museu Arken de Copenhagen (http://www.arken.dk). Nascimento/Renascimento produz, além de exposições, fóruns, publicações, intercâmbios entre artistas. Atualmente, como parte do Nascimento/ Renascimento, o Het exibe T-Zone (de Transformation Zone), um projeto de 5 meses de reflexão sobre a paisagem industrial, desenvolvimento urbano e o trabalho do museu. Esse trabalho acontece convidando artistas a refletirem junto com o museu e também através de palestras semanais, que ocorrem em um espaço planejado por arquitetos e designers especialmente para receber o público deste projeto. Sendo um pequeno museu muito ativo em uma pequena cidade, o Het Domein consegue perceber a atuação de seus projetos na comunidade de Sittard.
Huijts então passou à segunda parte de sua palestra, sobre diversos desafios da instituição cultural contemporânea. Há uma pluralidade de forças agindo hoje no museu, por exemplo, forças culturais e econômicas, que tendem a agir não mais em um embate mas de forma bastante similar: os dois âmbitos estão quase se tocando e um setor utiliza as estratégias do outro (setor comercial usando estratégias artísticas para vender coisas e vice-versa). Cabe ao museu aceitar essa onda ou oferecer resistência a ela. Outro assunto polêmico é a relação do museu com os governos: não há mais uma herança cultural comum para o museu representar: o modelo histórico do museu representando uma nacionalidade não mais se sustenta. Mas como obter financiamento governamental para uma instituição que não possui mais vínculos com a idéia de nação? Temos então que repensar, auto-criticar, a relação entre museu e financiamento público. Sobre outra questão tensa, a da diversidade cultural, Huits defendeu que museus precisam lidar mais com as questões ocidente-oriente, Africa e ocidente por exemplo. Especialmente porque paradigmas como “cultura ocidental” não se sustentam mais. Huijts salienta que há outra possível história da arte. A arte precisa ser julgada mais pelo contexto, não funciona mais num cubo branco, e por contexto ele entende não só a tradição histórica que coloca a obra de arte em um certo caminho mas também o tempo atual, a maneira como o artista trabalha com a situação social, política de seu tempo, e Huijts defendeu a idéia do artista como uma antena de seu tempo.
Acima de tudo, uma discussão sobre os desafios para os museus face à diversidade cultural depende, para Huijts, de um esclarecimento maior sobre termos que usamos na discussão. Há grandes dificuldades de definição. Por trás da palavra “museu” há uma série caleidoscópica de instituições que variam em tamanho, história, natureza de financiamento, papel jurídico, objetivos e até mesmo instituições que não possuem acervos como as Kunsthalle (espaços de exposições, como o Palais de Tokyo ou o Paço das Artes, que não possuem coleções). Huijts descreveu sua percepção sobre a linguagem usada para a reflexão sobre o museu como uma torre de babel de princípios e conceitos elaborados com entusiasmo durante o século 20, mas que não significam o mesmo para cada pensador. Huits recusa a explicação de que esta confusão semântica advenha da “dissolução de fronteiras” entre disciplinas (blurring of the boundaries) pois o intercâmbio entre disciplinas não é novo ou marca de nossa época, uma opinião aliás bastante coerente para alguém que trabalha em um projeto sobre o Renascimento. Esse diagnóstico de “dissolução das fronteiras” não é a explicação e sim a causa da existência de termos vagos como “liberdade artística”, “arte autônoma”, “crossovers”, “paradigmas do novo” e “vanguarda” que dificultam a reflexão sobre arte e instituições de arte hoje em dia. Para evitar esse sentimento de sentir-se “lost in translation”, Huijts defende uma discussão específica para cada instituição. Cada uma é uma. E nessa discussão feita sob medida, deve-se levar em conta as tarefas individuais daquela instituição, do caso individual, do contexto em que ela, individualmente, opera. E deve-se ser específico nos termos que essa discussão usará, nas definições que carregarão o debate adiante. Por exemplo, ele dá algumas definições:para Huits, arte visual é uma categoria de cultura visual; museus são instituições científicas com uma tarefa pública e não vice-versa (ou seja, o museu não é uma instituição pública com tarefa científica), etc... Se estamos falando de uma instituição com acervo, então o museu terá que se manifestar como uma interface, operarando como tradutor para diferentes grupos que temos como audiência. Além do clássico papel de memória da sociedade, o museu (dotado de coleção) terá que aceitar o desafio de ser a consciência da sociedade e apresentar, de tempos em tempos, novas histórias da arte.
Helmut Friedel, diretor há 15 anos da Lenbachhaus, em Munique (http://www.lenbachhaus.de) iniciou sua fala com um breve histórico de sua instituição, que ocupa desde 1926 a casa-ateliê de Franz von Lenbach (1836 - 1904), pintor acadêmico alemão que em 1860 estabeleceu-se em Munique e desfrutou de grande fama como retratista. A instituição possui muitas obras do grupo Der Blaue Reiter [a história do Expressionismo Alemão é marcada por uma série de “secessões”, grupos que se organizaram em Munique e Berlim contra o academicismo em vigor no final do século 19 na Alemanha. As secessões por vezes passavam por disputas internas que geravam novos grupos de artistas organizados em torno de exposições e publicações. Der Blaue Reiter (O Cavaleiro Azul) originou-se de uma dissidência liderada por Kandinsky em 1911 que rompeu com a NKV – Neue Künstler Vereinigung (Nova Associação de Artistas), que já era por sua vez uma ramo dissidente da Secessão de Munique. Acompanhando Kandinky, integraram Der Blau Reiter desde sua fundação Gabriele Münter e Franz Marc.]. A grande coleção de obras de Kandinsky foi doada à Lenbachhaus por Gabriele Münter, companheira de Kandinsky que escondeu por muitos anos várias telas do pintor no porão de sua casa, fazendo-as sobreviver à perseguição do regime nazista à chamada “arte degenerada”. Integram ainda o acervo da Lenbachhaus trabalhos de outras vertentes da arte alemã, como os da Neue Sachlichkeit (Nova Objetividade), e obras da arte contemporânea internacional, adquiridas graças a uma política de exposição de artistas jovens (e assim o museu adquiriu nas últimas décadas obras de pintores atualmente muito renomados como Sigmar Polke e Sean Scully). A Lenbachhaus possui uma ligação subterrânea com o metrô que foi transformada em espaço de exposição de arte contemporânea, a Kunstbau, que a instituição utiliza como um espaço mais experimental, fugindo dos nomes famosos da arte alemã que o público já bem conhece. Friedel citou Dan Flavin como um dos artistas que já expôs neste espaço que liga o museu com seu exterior.
Como um museu municipal, a Lenbachhaus recebe financiamento para o funcionamento das atividades e exposições desenvolvidas no prédio principal e com o acervo. Outros projetos necessitam de um sistema de captação de recursos com a sociedade, os Amigos do Museu. Helmut vê como papel importante do museu, além da manutenção desses projetos próprios que exigem recursos extras, um trabalho com os colecionadores, para convencê-los a doar suas obras para a instituição – mantendo assim o espírito de participação da sociedade ilustrado pela atuação de Gabrile Münter na formação do acervo da Lenbachhaus.
Na discussão com a platéia, Friedel foi interpelado por Nelson Aguilar a respeito da atuação da Lenbachhaus durante o período nazista. Friedel contou com pesar que o então diretor da instituição foi um dos organizadores da "degenerada" exposição de “arte degenerada” [Para mais informações sobre esse contexto, veja na série obra em contexto do MAC-USP A 'Arte Degenerada' de Paul Klee]. Ricardo Mendes, fotógrafo e Roberto Kepler, artista plástico expuseram aos palestrantes suas preocupações em relação a participação da instituição em seus campos de atuação profissional: Mendes discorreu brevemente sobre a cisão entre fotografia documental e fotografia artística, solicitando a opinião de Huits sobre o assunto. A resposta foi que Huijts preocupa-se mais com o que o artista pode fazer com a fotografia como mídia e não com especificidades da mídia. Kepler lembrou a atuação de Walter Zanini nos anos 1970 no Brasil, manifestando-se contra o papel do museu como sorvedouro e guardião apenas e salientando a necessidade de instituições que dêem visibilidade à produção contemporânea. Respondendo a esta demanda, Huijts diz que procura expor aquilo que está “no canto do olho”. Didonet Thomaz, da platéia, solicitou que esta expressão fosse esclarecida e Huijts definiu-a como sendo aquilo que está na periferia do olhar, fora da instituição, sem tanta visibilidade, e citou como exemplo seu interesse em contactar a dupla de artistas urbanos Gêmeos (ao final da palestra várias pessoas da platéia prontificaram-se a colocar o diretor do Het Domein em contato com a jovem dupla de artistas paulistanos).
Nelson Aguilar respondeu às colocações de Roberto Kepler defendendo que o artista é um resistente e precisa tomar para si a tarefa de defender e dar visibilidade a seu trabalho, em uma posição independente da instituição (de certa forma, Nelson Aguilar corroborou o que José Roberto Aguilar dissera dois dias antes no evento promovido pela Revista Número) e citou Paulo Brusky, cujo ateliê foi remontado na bienal, como um resistente.
Ricardo Basbaum retomou a idéia de Stijn Huijts sobre o amálgama da cultura com o capital e citando Hans Haacke perguntou aos palestrantes como suas instituições lidavam com financiamento privado. Suely Rolnik complementou a colaboração de Basbaum lembrando que o amálgama entre arte e capital invalida a noção do artista maldito, resistente, defendida por Nelson Aguilar, e sugeriu que entre o “berçário”, espaço do artista que exige os “cuidados” da instituição, e o “maldito”, para quem a instituição é um entrave, crie-se um novo espaço de atuação artística. Mais adiante, Rolnik lembrou que estar ou não na instituição é um falso problema pois qualquer espaço é espaço de elaboração artística.
Huijts respondeu a esta série de comentários reiterando que o museu precisa ser a memória e a consciência da sociedade. A produção artística precisa ser independente, mas o poder econômico exige a arte vendável. Ele soluciona este dilema “empacotando” seus projetos artísticos de forma atraente para os investidores – mas sem abrir mão da integridade do conteúdo do pacote. Na mesma linha de raciocínio, Ricardo Basbaum afirmou que existe uma rede que gera a produção artística da qual precisamos estar conscientes e que a independência e autonomia total não existem mais. Stijn concordou, e voltando à necessidade de definições precisas, definiu indenpendência como uma tomada de posição e autonomia como sendo a capacidade e possibilidade de fazer o que se quer fazer. Martin Grossmann citou então um texto inédito de Ricardo Basbaum que discorre sobre o artista que trabalha em parceria com a instituição, como por exemplo, Mathew Barney, em contraposição ao artista “maldito”. Stijn apontou para outro tema interessante para futuras discussões que é a atual nostalgia pelo artista “maldito” dos anos 60 e 70.
A primeira mesa da jornada de debates com comissários da bienal foi, em suma, um laboratório de idéias graças a uma platéia provocativa e aos palestrantes que estavam munidos dos elementos essenciais para reflexões sobre o museu: ampla experiência institucional, conhecimento histórico e um modo de pensar filosófico que não se desvia da crítica total ao sistema da arte, nem mesmo da crítica às palavras que constróem a discussão sobre o pensamento visual.
(Paula Braga)