Apresentação da Mesa-redonda 3: O artista e as instituições de arte
Os artistas e a instituição
Mediação mesa-redonda para a 26ª Bienal de São Paulo
Por Lisette Lagnado
Boa tarde e agradecimentos.
O tema que nos reúne hoje tem pelo menos três nomes clássicos "pairando
sobre nossa cabeça": Marcel Broodthaers, Daniel Buren e Hans Haacke. Quando
digo que estão "pairando", quero invocar a dificuldade de abordar a
relação entre artista e instituição sem, em algum momento, contar com a
contribuição deles no espaço público. Esta poderia ser uma explanação possível,
uma explanação digamos "histórica", mas optei por uma apresentação da
situação da realidade brasileira. Nessa 26ª Bienal, temos dois expoentes de
luxo para dar conta do problema arte versus
instituição: Paulo Brusky e Artur Barrio.
No
Brasil, o assunto "crítica institucional" não tem vocação para
constituir uma tendência per se. Já
prestei atenção nesse fenômeno antes mesmo do convite para a mesa presente. Essa
questão atravessa algumas obras de alguns artistas importantes, mas isso não
faz com que ela seja um campo autônomo de investigação. A posição neocolonial
contribui em parte: são séculos de herança adquirida e transmitida, séculos
falando "tudo bem" a leis e estruturas sociais que nem sempre
traduzem um bem-estar coletivo, ao contrário. A outra contribuição para essa
tendência, bem mais popular em países como o Canadá e os Estados Unidos, além e gozar
de pouco "interesse" por aqui, e de já vir carregada de uma aura
"estrangeira", provém do fato de que o exercício da "crítica"
não é bem o nosso forte. Nossa capacidade de pensar, julgar e decidir, acaba
sempre resvalando no ataque de cunho pessoal ou, pior ainda, na instauração da
censura. A crítica, no Brasil, é intolerável.
Mas poderíamos levantar uma terceira hipótese, que não diz respeito nem à
história colonial do Brasil nem ao personalismo da crítica, e que me parece o
dado mais feliz a ser ressaltado: há uma confiança na criação que faz com que
essa força seja suficiente em si.
Isto não isenta alguns artistas de questionar o sistema vigente (aliás, na
minha acepção do que faz um artista ser artista, o poder de crítica é sine qua non), mas vamos concordar que um
Cildo Meireles trabalha com um repertório mais amplo de que simplesmente o
circuito institucional - suas "Inserções em circuitos ideológicos",
nos anos 1970, correspondiam muito bem a esse objetivo.
Já sabemos que Hélio Oiticica, com seu "Programa ambiental", tinha em
mente algo que transcendesse os muros institucionais e que fosse da ordem do
comportamento, mas o fato é que ele morre em 1980 sem conseguir implantar o que
seria um "programa para a vida". A iniciativa de abrir ao público o
ateliê de Bruscky representa um dos maiores acertos desta Bienal e, de certo
modo, um encontro com o modo de "apresentação institucional" com o
qual HO teria, digamos, encontrado sentido. Por muitos motivos que vou tentar
sintetizar em tópicos:
1.
Qual
a capacidade do público conhecer o mundo do artista? Como a instituição
consegue mostrar o ambiente de trabalho, de vida e de reflexão, de um artista
quando toda sua estratégia é montada sobre o fato de efetuar
"recortes" (sejam eles históricos ou temáticos)? Era mais o menos
esta a crítica de HO ao instalar seu Éden
na Whitechapel Gallery de Londres, em 1969.
2.
Quando
a característica predominante do artista consiste justamente na manipulação
simultânea de muitos meios, estilos, tecnologias, como enfrentar essa
"totalidade" sem decupá-la, sem trair seus hibridismos?
3.
Para
um artista com o porte histórico de Paulo Bruscky, a outra opção, não fosse o
recorte, seria recorrer à chamada "retrospectiva". Ora, uma
retrospectiva é um ponto de vista que congela uma única e exclusiva leitura,
proporcionando uma imagem de um autor (Foucault) bem-acabada e, digamos,
"concluída". Petrificado numa perspectiva "retrô", o
artista pressente que esse tipo de leitura mutila qualquer chance de propor um
"depois".
4.
O
"estúdio" do artista é mais que um depósito: é uma substância viva,
em constante fluxo. E não é a coleção de artistas do grupo "Fluxus"
justamente o grande patrimônio que Bruscky manteve durante décadas em Recife?
O ateliê público
Na última Documenta, uma das coisas que
mais me chamou a atenção era justamente a quantidade de salas cuja montagem não
obedecia o rigor instalativo de um museu. Ivan Kozaric, artista que mora em
Zagreb (Croatia, 1921), tinha uma sala imperdível. Em sua biografia, consta que
ele fez mais de 60 000 individuais e participou de 200 coletivas "at home
and abroad"!
Receoso das retrospectivas museológicas, o artista, cuja trajetória
cruzou de fato o movimento Fluxus, transplantou seu ateliê (espaço privado) na
Documenta (espaço público). Eram mais de 500 esculturas, 50 pinturas, 300
gravuras, 500 desenhos, 20 fotografias e toda sorte de objetos identificáveis
ou não, mas sobretudo uma multitude de esboços e estudos em andamento, sem
aquelas vitrines super limpas, higienizantes etc.
É de Dieter Roth que a Documenta mostrava o golpe mais virulento contra as
obras "terminadas", contra o historicismo positivista, contra os
processos evolutivos da arte. A dinâmica interna de um ateliê começou a parecer
cada vez mais com as experiências feitas em laboratório. Este termo,
"laboratório", remete a um cosmos miniaturizado, onde podem ocorrer
acidentes naturais ou artificiais. Isso significa valorizar menos o
"artista-que-sabe" e mais o "artista-que-experimenta".
Ainda para ficarmos nos exemplos da Documenta 11, a presença do continente
africano tinha o mesmo tipo de apresentação, digamos, não-museológica. E, o
mais curioso, é que o material exposto era o material mais prezado por um
museu, isto é: uma coleção. A crítica ao colonialismo era direta, incisiva. Da
Costa do Marfim, Frédéric Bruly Bovaré (1923) organizou seu tesouro
anticivilizatório, construído ao longo do tempo. Suas frases emendavam um
desenho a outra, eram centenas e centenas, todos numerados, espécie de
literatura volante, com sentenças como "o dinheiro é satânico".
Havia também Meschac Gaba (Benin, 1961), o artista mais "cult" dessa
tendência. Radicado em Amsterdã, Gaba já mostrou vários recintos de seu museu
particular e seu último "salão" também passou pelo Palais de Tokyo,
em Paris. De Benin ainda, Georges Adéagbo (1942) expunha a narrativa sem fim
dos dossiês que ele monta a partir de recortes de jornais, revistas e livros. Em
suma: todos esses artistas eram portadores de uma identidade que sofreu com os
danos da colonização.
A Bienal de São Paulo não é um museu
O que me parece interessante discutir é: quais são as
modalidades de apresentação que um artista pode inventar quando convidado para
uma mostra como uma Bienal? Tudo bem: pode encarar isto como um convite para
realizar um trabalho novo e isto é, em si, ótimo. Mas o que distinguiria então
a Bienal, ou a Documenta, de uma mostra individual do artista? Será que o
artista deve encarar estes dois tipos de convite da mesma maneira?
Não pretendo desenvolver aqui (talvez isso surja durante o debate) a questão dos "núcleos históricos". Apenas quero registrar sua ausência nessa 26ª Bienal e cumprimentar essa opção, mostrando que é possível mostrar artistas históricos sem brincar de ser um "museu fora de lugar".
Com Bruscky agora e com Barrio desde sempre, entramos diretamente em sua oficina de trabalho. É impossível chamar o espaço deles de "instalação". Barrio usa o termo "situação" há muitos anos, mas eu me pergunto se a ressonância do situacionismo não atrapalharia um pouco a localização histórica dele, confundindo seu percurso com um movimento datado.
O fato é que o público em geral depara com um lugar que parece não ter sido "arrumado" para ser visto. Não se sabe ao certo a natureza desse lugar, algo entre um ateliê, uma reserva técnica ou um depósito. Barrio não somente costuma disparar contra "as categorias de arte, contra os salões, contra a crítica de arte" (isso desde seu Manifesto de 1969), mas sua "situação" mais recente, em Porto Alegre, como convidado de Alfons Hug, atacava até a famosa frase de Duchamp de que "são os Oelheiros/ regardeurs que fazem a obra", escrevendo na parede: "o espectador não faz a obra".
Tampouco é uma "réplica" do ateliê. A arquivologia que marca nossa época ‹ e sobre este assunto Derrida chegou a dedicar um livro> reaviva o debate do revisionismo (com os cortes da historiografia), das relações entre memória e história. Os artistas apresentam conjuntos de acumulação sob as formas mais díspares, ora rigorosamente catalogados em sistemas (é o caso do museu que Broodthaers criou), ora caotizados. Os alvos são múltiplos e mudam de época para época, mas na origem a crítica institucional se dirige à autoridade das técnicas e práticas do museu e da formação de suas coleções. Aventa-se um museu transdisciplinar, sem acervo, sem paredes, virtual, personalizado, mutável, sem endereço geográfico.
Se o museu não for até a vida, a vida tem se encarregado de ir até o museu, pervertendo seu discurso iluminista e reivindicando que ele pode atuar como um "arquivo vivo". A manutenção de trabalhos "orgânicos", suscetíveis de transformações e decomposições, desafia a duração de uma obra de arte. A mise-en-ruines desse grande modelo histórico de instituição preside alguns excelentes trabalhos. Como classificar uma obra contemporânea? É possível deixar instruções para sua conservação? Períodos históricos são "isoláveis"?
Ora, se para um museu brasileiro todas as questões acima merecem mil e um cuidados (afinal, a primeira tarefa, a de cuidar dos acervos constituídos, se encontra numa situação precária), me parece que a Bienal de São Paulo tem todas as condições de assumir esta plataforma.
Acompanhe a entrevista concedida por Lisette Lagnado ao Fórum Permanente.