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Desafios para Museus de Arte no Brasil no Século XXI [resumo]

Mesa-redonda realizada no Instituto Goethe em 02 de setembro de 2004 com Paulo Sérgio Duarte (Fundação Iberê Camargo), Paulo Herkenhoff (Museu Nacional de Belas Artes), Moacir dos Anjos (Museu de Arte Moderna Aluísio Magalhães) e Marcelo Araújo (Pinacoteca do Estado de S. Paulo), mediada por Martin Grossmann (USP).

[versão integral]

Paulo Sérgio Duarte, Paulo Herkenhoff, Martin Grossmann,
Moacir dos Anjos e Marcelo Araújo

 

A constelação do Fórum Permanente -- que inclui a Vitae, o Instituto Goethe, diversos consulados e instituições de arte, uma platéia muito representativa da comunidade cultural e mais recentemente o DEMA, Departamento de Museus e Arquivos da Secretaria do Estado da Cultura, e a Incubadora Virtual / TIDIA da FAPESP -- permitiu reunir quatro dos principais diretores de museus de arte do país para um dia de reflexão e debate acerca do futuro dessa instituição no Brasil. A partir da fala do diretor do MAMAM- Recife, Moacir dos Anjos, a mesa elencou potenciais ações para a crise dos museus de arte brasileiros.

Moacir dos Anjos iniciou sua fala tentando definir esta noção vaga da “crise dos museus”. Segundo ele, há razões específicas para a ausência de projetos coerentes de gestão de museus -- a chamada “crise” – em uma época em que , paradoxalmente, o sistema cultural atinge um pico de público e investimentos financeiros. Ora, é neste aparente sucesso do setor cultural dos últimos 15 anos que estão as razões da falta de projetos institucionais: o modelo de financiamento de projetos culturais da Lei Rouanet, baseado em renúncia fiscal, exige a itinerância de exposições. Com isso, instituições de cidades como o Recife, Fortaleza, e Vila Velha passam a integrar o circuito cultural e a receber estas mostras temporárias produzidas, em sua grande maioria, por instituições particulares e por intermediários/produtores culturais . Esta aparente inclusão, longe de ser um benefício inquestionável, é apenas um sintoma de uma rede de interesses: a itinerância garante a aprovação do projeto na Lei Rouanet (é necessário que a exposição passe por ao menos duas localidades), amortiza os custos da exposição, e divulga para um público mais amplo as logomarcas dos patrocinadores. A instituição, no entanto, priva-se da responsabilidade de desenvolver seu próprio discurso crítico e educativo – e, eu acrescento, reduz seu corpo de funcionários a tarefas operacionais de recepção de uma exposição temporária, exigindo assim pouco envolvimento criativo ou acadêmico dos recursos humanos da instituição, prejudicando o preparo de uma nova geração para cuidar de nossos acervos e atividades museais.

Lembrando que o montante arrecadado através da renúncia fiscal é um recurso público, Moacir propôs que se financie diretamente projetos das instituições, evitando o atual sistema de intermediação (uma empresa deixa de entregar ao governo uma certa quantia devida em impostos, e com esta quantia financia um projeto cultural avulso de sua escolha, que terminará exposto em ao menos duas instituições de arte). No modelo proposto por Moacir, este montante deveria financiar um projeto de uma instituição. Qual instituição? Aquela que obedecesse a critérios de excelência. Este sistema de avaliação de qualidade, semelhante ao sistema de financiamento de pesquisas acadêmicas, geraria uma malha de instituições de referência, modelos a serem seguidos e almejados por outras instituições. Os critérios de êxito estariam assim bem definidos e se livrariam da atual ênfase em cifras de público: uma exposição de arte não pode e não deve competir com o alcance de público da indústria fonográfica e cinematográfica.

Moacir vê com otimismo o recente Edital do Museus do governo federal, que reserva 1 milhão de reais para a capacitação física e de pessoal dos museus públicos. Ainda que seja um montante modesto, o edital é uma forte sinalização de que o governo apóia benefícios diretos a museus. O diretor do MAMAM-Recife propôs ainda um intercâmbio entre instituições, com troca de acervos, – e eu pergunto por que não também intercâmbio de pessoal? – uma solução cara em termos de transporte e seguro, mas efetiva enquanto não houver recursos para a formação de acervos regionais.

Dando continuidade à fala de Moacir dos Anjos, Paulo Sérgio Duarte, além de brevemente elencar as principais características e objetivos da Fundação Iberê Camargo, instituição que representa ao integrar sua comissão de curadores, citou a exposição temporária Brasil 500 Anos como exemplo do desperdício do atual sistema: 40 milhões de dólares foram gastos no projeto, que apesar das cifras milionárias, não adquiriu nenhuma obra para integrar os acervos das instituições por onde itinerou.  Paulo Sérgio lembrou ainda que a Lei Rouanet permite o desconto integral do montante investido em uma exposição temporária do total do imposto devido pela empresa patrocinadora, ao passo que para projetos de natureza permanente, como a construção de um prédio para um museu, o desconto permitido no total do imposto devido é de apenas 70% do valor investido no projeto, uma distorção inexplicável. Esta cultura contábil que incentiva as empresas a patrocinarem as artes mediante renúncia fiscal impede a formação de um autêntico mecenato. A empresa não “doa” nada às arte. Simplesmemte decide pelo governo o que fazer com o dinheiro que deve em impostos e utiliza o projeto cultural de sua escolha como suporte para exibição de sua logomarca.

Paulo Herkenhoff também citou a exposição Brasil 500 Anos como um exemplo das inversões de valores causadas pelo atual sistema: o então presidente da república repassou ao presidente de um banco a tarefa de celebrar os 500 anos do Brasil. O diretor do Museu Nacional de Belas Artes também focou nos riscos que a falta de recursos físicos e humanos representam ao patrimônio público. Foi lembrado o triste caso do incêndio do MAM-RJ ocorrido em 1978 e que deixou perdas irreparáveis (obras-primas de Picasso como uma cabeça cubista e um famoso Retrato de Dora Maar, trabalhos de Miró, Salvador Dalí, Max Ernst, René Magritte, Ivan Serpa, Manabu Mabe, entre outros, e todos os trabalhos presentes em uma grande retrospectiva de Joaquin Torres García, que ocupava o museu no momento do incêndio). Herkenhoff definiu com beleza e precisão a ideal atuação de uma instituição, hoje impossível no cenário institucional brasileiro:  potencializar as pessoas.

Esta missão potencializadora e mantenedora de um patrimônio cultural justifica a importância dos museus em outras sociedades. Segundo dados de Marcelo Araújo, os museus são considerados nos Estados Unidos as instituições públicas mais confiáveis aos olhos da população, à frente até do corpo de bombeiros. Há naquele país o conceito do “public trust”: o diretor de um museu é reponsável legalmente pelo patrimônio por ele administrado. Mesmo os museus privados estão sujeitos a esta legislação.

Em uma analogia com o mundo empresarial, Araújo comentou que muitas gestões de museu no Brasil assemelham-se a uma diretoria de empresa que não sabe qual produto sua instituição produz. Não há um projeto claro na maioria das instituições, não se sabe em que direção caminhar nem quais objetivos (os produtos) a serem atingidos. Um dos elementos que impedem a definição de um projeto é a impossibilidade de definição de um plano diretor de longo prazo: o Ministério da Cultura reconhece o plano anual de trabalho de uma instituição como um projeto passível de se beneficiar da Lei Rouanet. Porém não reconhece planos trienais. E pior, findo o período de um ano, a instituição precisa  transferir os recursos não utilizados ao Fundo Nacional de Cultura, e não pode utilizar este recurso remanescente no projeto do ano seguinte, o que impede qualquer planejamento de médio prazo.

Araújo propôs contornar o problema de falta de verbas para formação de acervos com articulações com fundações que detêm acervos importantes, estabelecendo contratos de comodato. Foi assim que a Pinacoteca recebeu as Coleções Brasiliana (Vistas do Brasil) e Nemirovsky.  Mas o diretor da Pinacoteca considera que é uma responsabilidade do setor cultural reivindicar aumento do orçamento para museus, ação que já é feita pela classe teatral e cinematográfica. Ele encerrou sua fala lembrando que o museu é um bem público e que estamos muito tímidos face aos mal-tratos sofridos por esse bem.

Encerradas as apresentações, o público se manifestou a favor de ações concretas em benefício do patrimônio cultural resguardado com precariedade por nossas instituições. Foi citada a possibilidade de uma ação popular em defesa do acervo do MASP, impedindo assim que obras da coleção possam ser usadas como garantia de dívidas trabalhistas daquela instituição. Foi ainda ressaltada a importância de definição dos critérios de excelência defendidos na proposta de Moacir dos Anjos.

Foram também propostos os seguintes temas a serem tratados pelo Fórum Permanente no futuro: a) discussão do termo "public trust" não só pelo viés americano como também do europeu, b) apresentação  do projeto do Sistema Nacional de Museus do Ministério da Cultura em São Paulo, c) debate acerca do papel do Museu de Arte na formação cultural no Brasil.

Martin Grossmann encaminhou a discussão para o lançamento do site do Fórum Permanente, onde outras idéias e debates podem continuar a ocorrer, fomentados pela intensa reflexão iniciada naquela tarde no Instituto Goethe de São Paulo.


[por Paula Braga]

 

Veja também matéria de Maria Hirzman publicada no Caderno2 do Jornal O Estado de Sâo Paulo em 4 de setembro de 2004