Justapondo e combinando obras de arte: tarefa para um olhar aguçado (não muito influenciado pelo conhecimento)
Maarten Bertheux foi apresentado ao público por Martin Grossmann como diretor assistente de uma instituição que foi referência para artistas nos anos 1960 e 70. Esta forte presença do museu na arte contemporânea nesse período de grandes transformações culturais,
comparável à do MOMA-NY, foi estabelecida por Willem Sandberg, diretor
do Stedelijk entre 1945 e 1963. No penoso período do pós-guerra,
Sandberg ofereceu a jovens artistas espaço para suas primeiras
exposições e, adquirindo algumas das obras expostas, constituiu um
importante acervo de arte mínimal e conceitual. Embora hoje outras
instituições européias possuam coleções mais relevantes da arte
produzida após os anos 1980, o Stedelijk é imbatível na preservação da
arte das duas décadas anteriores. Com efeito, a política cultural
estabelecida por Willem Sandberg surtiu efeito também no Brasil pois,
como lembrado por Regina Silveira durante o debate, inspirou a ação de
Walter Zanini, cuja gestão no MAC-USP (1963-1978) também pautou-se pelo
experimentalismo e fomento a novas criações.
Ao lado desta coleção de arte dos anos 1960 e 70, o Stedelijk possui importantes peças de Mondrian (que nos anos 1920 organizava no Stedelijk exposições de arte contemporânea exibindo obras dos jovens artistas franceses), outras produções do grupo De Stijl, obras de Malevich e trabalhos expressionistas banidos da Alemanha durante o regime nazista e incorporados à coleção por Sandberg[1].
Com o crescimento da coleção, o Stedelijk acompanha o surto de reformas e aumento de área física que contagiou outros museus como o MOMA-NY e a Tate Gallery. O prédio do museu, construído em 1895 e já ampliado pela ala de vidro construída em 1953, ficará fechado até 2008. A coleção encontra-se atualmente exposta em uma sede temporária ou circulando por outras instituições. Neste trânsito de obras, a Pinacoteca de São Paulo receberá em julho algumas peças do Stedelijk, e Maarten Bertheux salientou sua preocupação em exibí-las de forma não enciclopédica, pouco histórica, evitando conceitos, mas valorizando os aspectos estéticos das obras. Para ele, a arte visual precisa intrigar o espectador primeiro por seus aspectos plásticos. Assim, Maarten trabalha com a exibição de duas obras em paralelo, buscando estabelecer conexões formais entre elas, como por exemplo salientar o uso de linhas e campos de cor em uma pintura de Kandinsky e em um trabalho do final dos anos 1960 de Robert Mangold.
Esta ênfase nos aspectos fenomenológicos da obra de arte e a intenção de evitar a interferência do conceito e da história da arte na mediação entre obra e espectador foi mote para um laboratório de idéias, dirigido pelo debatedor da noite, Teixeira Coelho. E naquele laboratório não faltaram pequenas explosões: é realmente possível evitar a interferência da história da arte numa prática como a curadoria de arte que pressupõe uma tese, pesquisa, etiquetas nas obras, arranjos e seleções subjetivas feitas por um especialista? A própria formação da coleção de um museu já não pressupõe um "inevitável" cunho histórico? Ou seria possível um plano de atuação onde nada é inevitável, as coleções não precisam ser coerentes com a obrigatoriedade de preencher lacunas, e um espectador pode mergulhar em uma exposição de arte como o faz com um livro, sem ter sua leitura interrompida por uma análise especializada sobre aspectos psicológicos dos personagens?
Teixeira Coelho defendeu a importância de livrarmo-nos da herança iluminista que tenta ordenar um mundo não tão ordenado, e salientou que, apesar da preocupação em fornecer um embate com a materialidade da obra de arte, a exposição proposta por Maarten Bertheux não fuge de um molde segmentário pois os pares de obras a serem justapostos estão organizados em três módulos, nomeados por Bertheux como Abstração, Expressionismo e Invenção Conceitual. Bertheux argumentou que não pretende eliminar a história, mas sim defender a possibilidade de várias histórias. Um curador, segundo ele, trabalha com uma coleção e com a memória coletiva, e é seu papel recontar histórias para manter esta memória. Recorrendo a outro gênero da arte, Bertheux comparou sua atuação à de um diretor de teatro que encena uma peça de Shakespeare segundo sua leitura particular do texto e influenciado pelas questões de seu tempo. Numa imagem divertida, Teixeira Coelho descreveu o curador como um diretor de teatro que durante a peça faz surgir flechas no ar que evidenciam um gesto do ator e carregam pequenas legendas orientando o espectador a compreender melhor uma sutileza de interpretação ou uma marcação de palco específica.
Criticando essa tendência educativa da atividade curatorial, Teixeira Coelho reiterou sua preocupação com a "domesticação" da arte, já enunciada em artigo na Revista Bravo! de junho: por que as verbas públicas só são liberadas para eventos que tenham um resultado educativo, socialmente inclusivo, ou de promoção da cultura brasileira? Teixeira Coelho considera essa domesticação da arte -- um fazer perdulário e inútil por natureza -- como a outra ponta de um sistema que, após impor à arte o papel de produto e providenciar até o marketing cultural, exige agora que a arte mescle-se ao terceiro setor.
O debate terminou com uma menção à expansão dos museus para abrigar as crescentes coleções: como descolecionar? Como des-adquirir e manter coleções enxutas e compatíveis com a capacidade física e expositiva de uma instituição? Colecionar e preservar obras consideradas relevantes para o futuro é função de um museu, mas Teixiera Coelho lembrou que colecionar é também uma patologia, e que os produtores culturais -- diretores, curadores, artistas -- detêm o verdadeiro poder que constrói esse sistema mediador e domesticador, considerado muitas vezes externo. Esse poder perverso, longe de ser "inevitável" ou de emanar de uma entidade externa, reside em cada unidade do sistema, em cada pessoa: a palavra "inevitável" é uma fabricação.
[por Paula Braga]
[1] Sobre o assunto da proveniência de obras adquiridas por museus europeus durante e após a II Guerra Mundial, é fundamental a discussão que Ulrich Krempel suscitou em sua participação no Fórum Permanente.