Não toque nas obras (mas as obras podem te tocar)
Viviane Panelli Sarraf
Março/2007
Em 25 de janeiro de 2007 foi aberta ao público a exposição Ascension do artista Anish Kapoor, no Centro Cultural Banco do Brasil em São Paulo. A exposição composta por esculturas e instalações ocupava dois andares do prédio e mais um espaço temporário em baixo do Viaduto do Chá.
As obras apresentadas nestes espaços mexiam com nossos sentidos, principalmente com a visão, com o tato e com a sinestesia. Cores, brilhos, transparências, superfícies polidas e cintilantes e protuberâncias nos chamavam a investigar com nossos sentidos as mensagens contidas nas propostas de Kapoor.
Na obra “Quando estou grávido” uma das formas de perceber/encontrar a instalação era ser atingido pela “barriga” que emergia do reboco da parede branca do espaço. Faço esta afirmação, porque foi o que aconteceu comigo. Quase dei uma cabeçada na barriga, minha visão foi enganada, como em um jogo de cabra-cega ao contrário, já que alí a luz estava presente.
No mesmo momento o aviso no início da sala “Não toque nas obras” me veio na memória. Afinal, eu não podia tocar na obra, mas ela podia me tocar, se minha visão me enganou sou inocente. Acabamos nos sentindo criminosos ao sermos surpreendidos pelo toque da obra, pois aí existe um tabu.
Se uma pessoa com deficiência visual, exercendo seu direito garantido por lei, resolvesse visitar a exposição, seria proibido de ver a obra com seus olhos, que neste contexto eram as mãos e também a percepção sinestésica.
Um outro exemplo pode ser dado na obra que dá nome à exposição. A coluna de fumaça não apenas nos tocava, como nos descabelava. Por que censurar as pessoas de se misturarem à fumaça e brincarem com seus redemoinhos. Este é o tipo de obra que exige o uso de outros sentidos além da visão na interação com a mesma.
Em uma exposição onde era possível sair com um galo na cabeça e despenteado pelo contato com as obras, por que pessoas que não enxergam eram privadas de utilizar seus outros sentidos na fruição.
Se o problema desta questão fosse a conservação das obras que no caso de Kapoor são compostas por materiais como metal polido, pinturas cromadas, laca com processos de acabamento industrial, seria possível afirmar que apesar do enorme trabalho do artista para alcançar o resultado esperado, estes não são materiais frágeis e de fácil deterioração pelo toque. Também podemos crer que como os demais artistas contemporâneos, Kapoor não adota conceitos de “obra-prima”, “virtuosi” e “marca do artista”, pois os acabamentos impecáveis das superfícies espelhadas e recobertas de laca são fruto de equipamentos manipulados por profissionais da indústria siderúrgica.
Voltando ao ponto da Conservação Museológica da obra, podemos também questionar como se guarda uma coluna de fumaça ou uma parede “grávida” em uma Reserva Técnica. E a restauração desses trabalhos? Geralmente o “restauro” de uma parede é feito por um pintor ou um pedreiro e a de uma coluna de fumaça como a apresentada por um encanador ou especialista em coifas.
Talvés a incognita desta equação seja encontrada nas políticas culturais. Se existisse uma sólida política cultural de acessibilidade nos museus e centros culturais de arte, tocar em obras não seria um tabu, um problema, e sim um procedimento muito comum acompanhado por especialistas, produtores culturais e equipes de logística museológica.
Se uma política institucional não mede esforços para atrair o público utilizando estratégias de marketing, publicidade e mass media, podemos considerar que se a acessibilidade fosse plenamente incorporada nas políticas, estas mesmas instituições não mediriam esforços para permitir o toque nas obras ou desenvolver recursos sensoriais equivalentes.
Não é mesmo muito comum encontrar uma política cultural que considere que pessoas com deficiência fazem parte do público alvo. No entanto ao considerarmos as diferentes percepções sensoriais podemos contemplar pessoas como Degas, Turner, Cézanne, Monet. Todos estes artistas que marcaram seus respectivos períodos da Hisória da Arte e são até hoje referências para a arte contemporânea, tinham ou adquiriram deficiências visuais.
Huysmans afirmava sobre Cézanne: “Um artista com retina doente, que exasperado pela visão deficiente, descobriu as bases de uma nova arte” (HUYSMANS apud ACKERMANN, 1992: 316).
Muitos de nós nunca imaginamos que Cézanne possuia uma deficiência e é difícil acreditar que Degas sofria de uma forte miopia que Trevor-Roper define com esta passagem:
“Com o passar do tempo, ele começou a pintar mais em pastel, por ser o meio mais fácil para sua visão que começara a falhar. Mais tarde, descobriu que usar as fotografias dos modelos e dos cavalos que desejava pintar era mais confortável dentro de seu raio focal limitado. E no final, voltou-se cada vez mais para a escultura, onde, pelo menos, podia ter a certeza do seu sentido do tato, que permanecia íntegro, dizendo “preciso agora aprender o ofício de um cego”, apesar de ter sempre se interessado pela modelagem.” (TREVOR-HOPER apud ACKERMANN, 1992: 318)
A possibilidade de não enxergar ou experimentar sensações do mundo sem a visão também despertava o interesse de artistas como Anita Malfatti, que durante a juventude realizou experiências sensoriais como fazer atividades com os olhos vendados. Evgen Bavcar, fotógrafo esloveno cego, iniciou sua produção artística depois de ter adquirido a cegueira em acidentes de infância, suas imagens percorrem o mundo e intrigam o público com o paradoxo da não visão.
Se a carência da visão possibilitou que artistas como Degas, Cézanne e Evgen Bavcar desenvolvessem obras tão importantes, por que as políticas culturais das exposições de arte e dos museus apresentam tanto receio em acolher pessoas com deficiência visual?
Se o toque pode deteriorar uma obra, a exposição à luz, ao ar, o manuseio e o transporte também podem. No entanto existem sólidas políticas culturais de exposição de acervo nos museus e de itinerância das exposições temporárias. Os museus, neste sentido, afirmam que apesar na necessidade urgente de conservação, não podem manter os acervos fechados em Reservas Técnicas, pois precisam criar interfaces com o público e atraí-lo para o seio da instituição. Mas por que as pessoas com deficiência visual não são considerados nesta afirmação?
Evgen Bavcar tira suas fotos com base em sua noção de horizonte (“até onde minhas mãos podem alcançar”) – neste sentido – ao negarmos que uma pessoa com deficiência visual toque uma obra de Anish Kapoor, por exemplo, estamos colocando uma barreira no que pode ser um processo criativo e é efetivamente um contato com a arte, uma fruição, uma aquisição de conhecimento e um processo de aprendizagem.
O momento atual é tomado por uma falta de tato crônica. Quando utilizamos a palavra tato em sentido figurado, geralmente nos referimos à sensibilidade.
Esta afirmação pode ser exemplificada no enredo do filme “Crash, no limite” de Paul Haggis , 2004. A cena de abertura do filme traz a reflexão de um dos protagonistas:
“It’s the sense of touch, In a real city you walk. You brush past and people. People bump into you. In L.A. nobody touches tou. We are always behind this metal and glass. I think we miss that touch so much that we crash into each other just so we can feel something.” ( Ë o sentido do toque. Numa cidade de verdade você anda esbarra nas pessoas, elas topam com você. Em Los Angeles, ninguém toca em você. Estamos sempre atrás de metal e vidro. Acho que sentimos muita falta do toque. Damos encontrões uns nos outros para sentirmos alguma coisa).
Este filme representa o estado de urgência que vive a cidade de Los Angeles em relação aos conflitos sociais que causam a violência. O protagonista da trama que apresenta a reflexão citada é o polícial negro, que vivencia pessoalmente e profissionalmente a maioria destes conflitos.
O filme nos mostra o que já é evidente para muitos - ao anularem sua sensibilidade, as pessoas perdem esta mesma capacidade para analisarem as situações cotidianas, causando reações limítrofes.
Se o tato é um sentido tão necessário para nossas relações humanas, por que o negamos, o intimidamos? Para um deficiente visual o tato não é apenas uma forma de contato humano e sensível, além disso é a porta de sua percepção do mundo. Em relação a arte, podemos concluir que nem todos os tipos de suporte e categoria impulsionam pessoas com deficiência visual a utilizarem o toque.
Uma pintura, por exemplo, não apresenta grande apelo tátil para um deficiente visual, mas uma escultura que vem de encontro com sua cabeça e outra que o deixa descabelado, sim, pois estas mexem com sua sinestesia que é a noção de espaço.
As políticas culturais buscam trazer as pessoas para o convívio com as instituições culturais a fim de justificar e perpetuar sua existência. Uma obra de arte não tem sentido quando não estabelece contato com as pessoas e nas reações e interrogações que nelas despertam.
Dessa forma podemos afirmar que existe uma deficiência nas políticas culturais contemporâneas, pois estas não enxergam uma parcela da população que quer fazer parte deste público alvo. Esta limitação pode ser transformada de um problema para uma solução, afinal não é o que fazem os processos de reabilitação e educação das pessoas com deficiência?
Nós público, especialistas, servidores, artistas, colaboradores, diretores, conselheiros precisamos criar um movimento de reabilitação em nossas políticas institucionais, do contário as mesmas sofrem o risco de serem excluídas, já que outras áreas como saúde, educação, emprego, transporte, esporte e outras já se encontram em reabilitação.
A arte e a cultura sempre puderam se orgulhar de acompanhar as vanguardas, no entanto no que se refere à acessibilidade e inclusão de pessoas com deficiência é necessário correr, pegar o bonde e tentar um lugar na janelinha.
Mesmo com toda informação a respeito deste problema é comum receber indagações do tipo: como fazer se ainda não existe uma política pública que motive os museus a acolherem os deficientes visuais?
Uma solução é começar, o que já fizeram algumas instituições, que são a fonte de inspiração para este texto e para que continuemos insistindo neste ponto.
Bibliografia e Filmografia:
ACKERMAN, Diane. Uma História Natural dos Sentidos. 1 ed. – Rio de Janeiro: Editora Bertrand Brasil, 1992.
HAGGIS, Paul. Crash, no limite. Alemanha: Image Films, 2005.
DANTAS, Marcelo. Ascension – Anish Kapoor. (Folder da Exposição). – São Paulo: Centro Cultural Banco do Brasil, 2007.