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Perspectivas para o museu no século XXI

O museu que responde às demandas discursivas da arte contemporânea é tanto um parceiro quanto um conceito na produção de obras de arte. Ricardo Basbaum analisa esse duplo papel do museu através da retrospectiva de Matthew Barney no Guggenheim de Nova York e da instalação de Anish Kapoor no Turbine Hall da Tate Modern.

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Anish Kapoor e sua escultura na Tate Modern
Photo: Marcus Leith and Andrew Dunkley, © Tate Photography
Source: http://news.bbc.co.uk/1/hi/entertainment/arts/2309817.stm

 

Não é simples para um artista atuante falar de museus: ainda paira sobre essa instituição a aura de algo morto, parado, distante da dinâmica das obras vivas e ativas. A noção de se construir alguma forma de proteção para as coisas da cultura, salvando-as de sua destruição e ao mesmo tempo integrando-as em um conjunto de objetos representativos, está na origem do espaço museológico: mas esta operação de inclusão tem um preço, que em geral se contabiliza no custo de se arrancar a obra de arte de seu contato direto com as dinâmicas da vida e da sociedade, para lançá-la dentro do espaço artificialmente construído da instituição. Pode-se dizer que a origem do museu é moderna (se tivermos como referências a Renascença, a invenção da imprensa e as conquistas do novo mundo), enciclopédica: se avançarmos para além dos gabinetes de curiosidades e chegarmos até a revolução burguesa, veremos que uma das vertentes que conduzem à formação da idéia de museu é exatamente o impulso em conceituar com clareza uma ordem das coisas e do mundo, em que uma forma de pensamento conduz à verdade – e a obra de arte é uma das expressões desta procura e deste encontro, articulando de forma singular autonomia plástica e recortes de possibilidade discursiva.

Não é difícil perceber a formulação deste paradigma, uma vez que de certo modo se encontra em vigência até hoje – nos é curiosamente familiar a idéia de que o que está incluído no museu é de algum modo 'exemplar', 'representativo' e, em conseqüência disso, 'melhor'. Ou seja, desde o seu início esteve em jogo a construção do museu como máquina de produção e atribuição de valor à obra de arte, instrumento de produção de cultura. Neste caso, a presença da obra no museu não estaria associada ao anestesiamento (perda progressiva induzida de sensibilidade) – decorrente de sua extração do contexto no qual ou para o qual foi projetada e no qual funciona – mas a uma potencialização, pois sua presença no museu a elevaria a um patamar de 'exemplaridade', tornando-a representativa de uma ordem de pensamento que deve ser enfatizada, promovida, tornada visível, da qual o museu é um dos principais espaços de agenciamento. Percebe-se que este modelo de museu só foi possível a partir de uma concepção de obra de arte e jogos de linguagem que se adeqüem a ele: lógica da representação, mímesis – protocolo de linguagem associado à pintura/escultura que se desenvolve da Renascença ao Romantismo, e que se constitui através da mesma epistemologia: universalidade, ponto de vista central (presença de Deus), linearidade nas relações causa-efeito, naturalismo na construção da visualidade (conceber as imagens de acordo com o mundo visível concreto, campo do olho natural e da óptica geométrica). Importa perceber a relação de mútua implicação que existe entre o desenvolvimento das linguagens artísticas e da concepção da obra de arte e o desenvolvimento dos modelos museológicos.

À medida que se transforma o paradigma da obra de arte, também se modifica o perfil do museu que pretende abrigá-la: ao se mirar, de modo amplo, as transformações pelas quais passou a obra de arte nos últimos 200 anos (ou seja, a conquista de sua condição moderna e seu deslocamento para aquela pós-moderna ou contemporânea) – que arriscamos resumir aqui de maneira bastante compacta como (a) 'conquista de autonomia' (academicismo e romantismo até Cézanne), (b) 'ruptura com a tradição e utopias' (cubismo e vanguradas até Pollock), (c) 'constituição de um circuito de arte' (das vanguardas às neo-vanguardas, sobretudo a arte conceitual), (d) 'relações com o real' (a partir da Pop arte e Fluxus), (e) 'virtualidade imagética e conceitual e espetacularização' (a partir de fins do século XX) 1 – percebe-se o museu a se transformar de maneira homóloga. Assim, também a dinâmica própria à sua formação traz saltos, mudanças e modificações similares: assistimos nos mesmos períodos (a) à constituição inicial do museu como edifício arquitetônico com ambição universalizante, moral e atemporal, propositor de verdades estáticas e finais (os primeiros a serem concebidos enquanto tal, que ultrapassam a condição de gabinete de curiosidades e exotismos), que vai, aos poucos, se conformando à noção de uma obra autônoma, passando então (b, c) por sua progressiva aceleração (sob pressão das vanguardas históricas e seu historicismo finalista e idealista) em direção a uma concepção arquitetônica moderna, que visa a acolher sem impedimentos a potência desse novo objeto sensível do século XX – nesse momento (a referência é a inauguração do MoMA, em Nova York, em 1937) se consolida a idéia de um 'cubo branco', espaço que pretende atender a tais demandas de transformação histórica. Em seguida, (c, d) esta instituição é percebida como diretamente conectada a um contexto concreto econômico e cultural que não pode ser ignorado ou idealizado, e isto conduz (d) à elaboração das noções que apontam para o museu de arte contemporânea, com sua ampla variação de concepção arquitetônica, mas que deverá responder a um circuito de arte e seus vários segmentos (sobretudo ao saber acumulado da arte moderna, às tecnologias de manejo museológico e curatorial e às relações com o público), assim como à materialidade da presença de relações socioeconômicas concretas. Finalmente, (e) observa-se a efetivação de um conjunto de transformações do aparato museológico em direta relação com as mudanças do chamado capitalismo tecnológico do final do século XX e suas demandas de globalização e espetacularização 2 – claro que estas mudanças em direção à atualidade ainda são experimentadas e vivenciadas como estando em processo no mundo de hoje.

Queremos chamar a atenção, através deste ligeiro paralelo, ao fato de que as mudanças de concepção museológica basicamente acompanham as transformações artísticas, indicando o deslocamento das questões conceituais e de linguagem, que informam e conformam as obras, para os parâmetros conceituais e arquitetônicos que constituem o museu. Claro que não se pode acreditar aqui de modo absoluto na simplificação e linearidade deste processo, já que sobretudo a arquitetura possui sua dimensão investigativa e conceitual propriamente autônoma, assim como já se estabeleceu um corpo de estudos museológicos e curatoriais capaz de se emancipar em relação à obra de arte enquanto finalidade fechada; e, sobretudo, pode-se alinhar exemplos em que as conquistas do espaço arquitetônico e concepção museológica trouxeram à cena novos espaços e ferramentas para que certas obras fossem efetivadas, invertendo a unidirecionalidade do processo. Mas, entretanto, é preciso ter clara a existência de uma especificidade do museu em responder às transformações prioritárias das obras enquanto mudanças conceituais e discursivas que irão informar o quadro teórico geral da arte – sendo, portanto, seguidas pelas outras disciplinas (daí a importância de se referir sempre, de modo concreto, às obras). Certamente, seria mais exato perceber que obra e museu estabelecem uma relação dinâmica, de mútua implicação: sob uma perspectiva contemporânea (isto é, após 1945), o ambiente do circuito de arte é aquele que também constitui a espacialidade própria para a obra; se pensarmos o museu como importante parte do circuito, percebe-se como muitas obras são produzidas para o museu – de modo que, de maneira ampla, trata-se de uma dupla implicação.

Neste sentido, seria interessante mencionar aqui um caso recente das relações entre arte e museu, para trazer alguns comentários que contribuam para tal discussão: tanto a recente retrospectiva no Museu Guggenheim de Nova York do artista norte-americano Matthew Barney, como os projetos desenvolvidos pela Tate Modern (Londres) em seu Turbine Hall – sobretudo a intervenção de Anish Kapoor – trazem elementos para se perceber características da relação entre obra de arte e museu no contexto da atualidade. Parece evidente, como veremos, que tal condição revele alguns impasses, assim como potencialidades, para o fazer-pensar da arte contemporânea.

Convém lembrar que o Museu Guggenheim e a Tate Gallery constituem instituições de grande porte (privada a primeira, pública a segunda), cada qual a seu modo respondendo à demanda moderna por um colecionismo aberto, compreensivo da condição autônoma e transformativa da arte em seu processo histórico: ambas possuem valiosos acervos modernos (e relativamente contemporâneos), que constituem sua riqueza. Entretanto, ambas também submeteram-se a significativas transformações nos anos recentes, de modo a se adaptarem às demandas do final do século XX: é nesse quadro que podem ser vistas – em paralelo – as modificações do Museu Guggenheim sob direção de Thomas Krens (desde 1988) e a criação da Tate Modern (em 2000), na gestão de Nicholas Serrota (iniciada em 1986).

 

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Matthew Barney, Cremaster 3 ,2002
©2002 Matthew Barney, Photos: arcspace, Chris Winget, Courtesy Barbara Gladstone
sourcse: http://www.arcspace.com/kk_ann/2003_03/
http://www.art.csul.edu/StudioTalk/reviews/barney.html


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Matthew Barney, Cremaster 3 ,2002 - y©2002 Matthew Barney
Photo: Chris Winget, Courtesy Barbara Gladstone
sources: http://www.dvdpure.net/arviot/arvio_cremaster.php
sources: http://www.filmforum.com/cremaster/pages/Cremaster3Image5.html
http://www.economist.com/cities/displayObject.cfm? obj_id=3061976&city_id=NY

Resumidamente, trata-se de uma reação – e consequente adaptação – das duas instituições frente à diferente localização do campo da cultura, em nossa época, em relação ao novo quadro socioeconômico correspondente às mutações recentes do capitalismo: sob impacto da informática e globalização, grandes somas de capital têm migrado para as atividades culturais, em busca de materialização e cristalização de sentido simbólico para operações financeiras que se tornam virtualmente imateriais, ao se processarem em tempo real em toda a superfície do globo. Em uma economia que se distancia cada vez mais das estruturas Estatais e tem como protagonistas as grandes corporações (sobretudo financeiras), passa a ser fundamental que a voracidade e velocidade de tal capital imaterial seja trazida ao mundo concreto das coisas através de superfície material, sensível e persuasiva que seja corporificada de modo acessível e flexível e combinada com a produção de sentido: nesta equação, o campo da arte se presta com perfeição às manobras necessárias de relocalização desse capital, detentor que é de um conjunto de conceitos e ferramentas desenvolvidos pela arte moderna e contemporânea em suas pesquisas e investigações do sensível como produção de sentido – método de investigação que ainda mal dominamos, mas que se estabelece na atualidade como uma das mais agudas formas de problematização do real.

Tanto o atual Museu Guggenheim (e sua política de expansão a vários países através de franquia) quanto a presente Tate Modern têm se configurado como espaços que já se convencionou comparar aos Shopping Centers, com sua dimensão de comércio e entretenimento, sob o gerenciamento de uma construção de imagem que pouco se diferencia da campanha publicitária de uma empresa qualquer. Claro que não se pode simplificar tal quadro, nem reduzi-lo à questão de um 'comercialismo cultural'; entretanto, esta atual condição do jogo da cultura não pode ser menosprezada sem correr o risco de se prosseguir trabalhando tendo como referência um quadro contextual desatualizado. Se tivermos em conta a tradição moderna do artista que marca fortemente sua diferença em relação à sociedade e ao senso comum – ou seja, busca alguma forma de problematização ou interferência no estado corrente das coisas 3 – então o atual momento institucional da arte deve ser foco de intensa investigação, pois também o tecido institucional (ao qual se integram as instituições de grande porte que estamos comentando) detém os mesmos processos de saber e os gerencia ao seu modo, construindo (ou modelando, indicando pistas) alguma imagem de artista que integre interferência, diferença e transgressão, ainda que (claro) nos limites de seu próprio gerenciamento. Ou seja, o lugar do artista contemporâneo está claramente construído, hoje, em direta relação com o tecido institucional do circuito – talvez nunca a relação artista/instituição tenha se dado de maneira tão direta e cúmplice: claramente, conceitos e ferramentas operacionais (ou seja, as características de uma 'tecnologia do fazer artístico') não se constituem como de 'propriedade exclusiva' do artista, se prestando mais a um manejo amplo por parte de um circuito fortemente estruturado (tratar-se-ia de recuperar, de algum modo, a 'fragilidade' da arte?).

A exposição The Cremaster Cycle, de Matthew Barney, esteve em cartaz entre 21/02 e 11/06/03 no Museu Guggenheim, Nova York. É bastante significativo o trecho final do texto de introdução da curadora Nancy Spector, que reproduzimos abaixo:

A exposição ocupa o museu com uma instalação site-specific, projetada pelo artista para englobar as cinco partes do ciclo, combinando todos os seus variados componentes em uma totalidade única e coesa. (…) O trabalho central da instalação é uma peça de vídeo em cinco canais, suspensa no meio da Rotunda. Cada tela exibe diferentes segmentos de "The Order", uma seqüência de Cremaster 3 gravada no Guggenheim. (…) "The Order" distribui os cinco níveis das rampas espirais do Guggenheim em uma alegoria que representa os cinco capítulos do ciclo. A exposição espelha esta estrutura – os elementos instalados de Cremaster progridem em ordem ascendente, desde o piso da Rotunda, rampas acima, até a Galeria do Anexo, no topo. As esculturas apresentadas em "The Order" como símbolos de cada filme da série Cremaster são exibidas no contexto de seus respectivos capítulos, em conjunto com trabalhos anteriores, em um ritmo cronológico que reflete o fluxo em looping do próprio ciclo. 4

De modo a estabelecer uma leitura paralela, segue igualmente rápida referência ao projeto Marsyas, de Anish Kapoor, exibido entre 09/10/02 e 06/04/03 no espaço conhecido como Turbine Hall, na Tate Modern, Londres, como parte da Unilever Series 5:

Esta é a primeira vez, dentro de The Unilever Series, que um artista utiliza toda a extensão do imponente Turbine Hall da Tate Modern, medindo 155m de comprimento, 23m de largura e 35m de altura. Marsyas compreende três anéis de aço, amarrados em conjunto por uma única peça de membrana de PVC. Dois deles são posicionados verticalmente, em cada uma das extremidades do espaço, enquanto um terceiro é suspenso em paralelo com a passarela do Turbine Hall. Aparentemente encaixada no local, tomando a forma de uma cunha, a geometria gerada por estas três rígidas estruturas de aço determina a forma geral da escultura, um deslocamento que se faz da vertical para a horizontal, e que retorna novamente para a vertical. Kapoor iniciou o projeto em janeiro de 2002. Ao referir-se ao convite para conceber a escultura, comentou que "o Turbine Hall da Tate Modern é um espaço imenso e difícil, e seu principal problema é que demanda verticalidade. Isto é absolutamente contrário à noção de escultura que tenho desenvolvido em meu trabalho. Percebi que a única maneira de lidar com a verticalidade seria trabalhar com uma horizontalidade total." A membrana de PVC que se estende pelo Turbine Hall possui uma qualidade corpórea, que Kapoor descreve como "aproximando-se de uma pele arrancada". O título faz referência a Marsyas, um sátiro da mitologia grega que foi despelado vivo pelo Deus Apolo. A cor vermelho escura da escultura sugere algo relacionado ao corpo. Marsyas envolve o espectador em um campo de cor monocromático. É impossível ter uma visão completa da escultura de qualquer posição, de modo que é deixada ao espectador a tarefa de imaginar sua totalidade. 6

 

 


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Anish Kapoor, "Marsyas" 2002. The Unilever Series. Installation at Tate Modern.
Photos: Marcus Leith and Andrew Dunkley. © Tate Photography
source: www.24hourmuseum.org.uk

Não é difícil de se perceber traços comuns aos dois projetos, destacando-se a grandiosidade, que em ambos os casos se justificaria pela especificidade de construção para aquele local preciso – tanto a filmagem de Barney quanto a escultura de Kapoor foram planejadas e executadas em direta relação com os espaços de exposição. Se tivermos em conta os comentários estabelecidos por Miwon Kwon em torno da recente transformação do conceito de site-specificity, percebe-se que o que está em jogo não é uma simples adequação aos espaços físicos das instituições: como bem aponta Kwon, as recentes reavaliações – à luz da recepção do minimalismo, assim como da crise provocada pela remoção do Tilted Arc de Richard Serra – indicam que o conceito de local específico abandonou sua caracterização enquanto ligação com os aspectos meramente físicos do espaço (como propunham, a grosso modo, os minimalistas) para estabelecer uma dimensão discursiva de especificidade, em que o local tem sua singularidade determinada principalmente a partir das narrativas e conceitos que compõem, integram e dinamizam uma rede de relações que o caracteriza.7 Assim, torna-se efetivamente claro que tanto The Cremaster Cycle quanto Marsyas constroem sua especificidade ao local manejando de forma consciente as narrativas institucionais que informam os dois mega museus: tanto Barney quanto Kapoor desenvolvem sua propostas incorporando em seus projetos de linguagem traços da espetacularidade e entretenimento que constituem o perfil de cada instituição. Ambos os artistas, pode-se dizer, desenvolvem recursos de linguagem frente a um capitalismo avançado, ligeiro, de fluxo, e buscam propostas de trabalho que possam circular dentro desta dinâmica – isto é extremamente claro no modo de trabalho de Matthew Barney, mais próximo dos padrões de uma superprodução cinematográfica (Los Angeles, Hollywood) do que de um evento standard de arte contemporânea.

Cada um deste exemplos adquire dimensão impressiva ao se posicionar praticamente numa escala 1 : 1 frente à instituição; entretanto, como se trata – nos dois casos – de instituições ampliadas, hiperinstitucionalizadas, espectaculares, temos projetos que se colocam então em dimensão ainda mais ampla. Não há como se considerar que estas duas hiper-obras sejam simples resultados do gesto criativo de uma subjetividade singular; trata-se sobretudo de parcerias consistentes ao nível empresarial-institucional-industrial entre diversas personas corporativas: colaboração de tipo 'artista + museu', somada aos recursos de produção de alto nível tecnológico. Olhando-se tanto num sentido como noutro, o que teríamos aqui de surpreendente seria, por um lado, o artista capaz de estruturar uma subjetividade corporativo-empresarial para ousar um lance 'criativo' em escala nitidamente pós-humana, 8 e por outro a instituição aparelhada de modo a agenciar o projeto artístico em seu detalhamento necessário para viabilizá-lo: mais certo seria que The Cremaster Cycle trouxesse a assinatura (ou grife?) Barney-Guggenheim, enquanto Marsyas teria a autoria creditada a Kapoor-Tate.

Frente a esta situação, seria interessante elaborar comparação com outra série de trabalhos também realizados em grande escala e igualmente fruto de uma aliança entre artista e instituição: refiro-me aos três projetos de Walter de Maria exibidos de forma permanente pela DIA Art Foundation, de Nova York: The Lightning Field (1977), The New York Earth Room (1977) e The Broken Kilometer (1979). Trata-se de artista notadamente avesso às transformações da arte das últimas duas décadas, e a experiência de fruição destes trabalhos é claramente destiuída de espetacularidade (no sentido das obras citadas anteriormente); certamente, uma visita ao deserto do Novo México, para conhecer The Lightning Field, reveste-se de inúmeros riscos, inexistentes na segurança de shopping-center dos Museus Guggenheim e Tate Modern. Se alinharmos de Maria, Barney e Kapoor, teremos três diferentes estratégias de resistência ao quadro atual das relações entre arte e instituição: o primeiro, através de uma política pessoal de silêncio voluntário, realiza obras que procuram elaborar alguma forma de distanciamento ao atual modelo; já os dois outros acreditam estar elaborando algum processo de resistência na articulação interna de suas linguagens a partir da incorporação, no ato mesmo de projetar e construir, dos elementos discursivos próprios do espaço de exibição conforme hoje se apresenta – Barney e Kapoor assumem posição ingênua ao estabelecerem que a obra de arte em sua potencialidade e força estética deflagaria naturalmente tal espessura crítica; é preciso não esquecer que a obra de arte está, frente à natureza, alinhada junto aos dispositivos do artifício. Logo, é necessário ter atenção, no quadro atual, com o processo de se "transformar crítica em espetáculo", 9 uma vez que entre a construção da obra e seu agenciamento pela instiuição parece não haver mais lacunas ou espaço livre para a construção de uma atitude crítica – certamente não no sentido tradicional do que compreendemos como crítica (à qual é preciso acrescentar os campos da teoria e da história da arte).

De nada adianta se pensar nos museus no século XXI a partir de qualquer exercício de futurologia: para se manter – no presente! – as possibilidades de um fluxo de pensamento, intervenção e mobilização crítica é necessário agir com pragmatismo, no sentido de desenvolver estratégias para-institucionais acopladas às linguagens e conceitos com os quais opera o artista. Ou seja, tanto aceitar as ofertas de ocupar o espaço institucional, procurando compreender as sutilezas de sua atual estruturação e mobilizando ferramentas de linguagem que possam oferecer algum grau de resistência (atentando de modo agudo às especificidades discursivas), quanto prosseguir na invenção de outros formatos de agenciamento – que hoje, em uma de suas frentes, se apresentam como centros de pesquisa autônomos e espaços independentes geridos por artistas.

1. Estas transformações não estão aqui indicadas como períodos seqüenciais (uma vez que há superposições) mas como fases amplas (ganhos de complexidade) que assinalam algumas das principais mutações da arte moderna/pós-moderna. [voltar para o texto]
2. Não estamos considerando aqui – ainda que possam ser incluídas nesse último tópico – aquelas proposições que desmaterializam o museu frente ao arquivo e o banco de dados, tais como precocemente formularam Aby Warburg e André Malraux. [voltar para o texto]
3. Bastante ilustrativa de tal atitude é a proposição de Roland Barthes: "a vitória do artista é a derrota da sociedade". [voltar para o texto]
4. Nancy Spector, "The Cremaster Cycle – Introduction", Disponível em http://www.guggenheim.org/exhibitions/past_exhibitions/barney/introduction/index.html [voltar para o texto]
5. Assim se refere o press-release: "O apoio da Unilever, perfazendo um total de £1.25 milhão ao longo de 5 anos, permitirá à Tate comissionar para o Turbine Hall um novo trabalho em grande escala por ano, até 2004." Disponível em http://www.tate.org.uk/home/news/kapoor_unilever.htm [voltar para o texto]
6. http://www.tate.org.uk/home/news/kapoor_unilever.htm [voltar para o texto]
7. "A noção de site-specificity costumava implicar algo preso ao chão, amarrado às leis da física. (…) Porém, à medida que esta investigação prosseguiu ao longo dos anos 1980, passou a articular sua crítica a partir de uma referência cada vez menor aos parâmetros físicos da galeria/museu, ou de qualquer outro local de exposição. (…) O lugar é agora estruturado (inter) textualmente, mais do que espacialmente." Miwon Kwon, One Place after another – site specificity and locational identity, Cambridge, The MIT Press, 2002, pp. 11-31. [voltar para o texto]
8. No sentido que propõe Gilles Deleuze, quando escreve que "a instituição se apresenta sempre como um sistema organizado de meios", "elaborando meios de satisfação artificiais que liberam o organismo da natureza (…) introduzindo-o em um novo meio". Ver "Instincts et Instituitions", in L'île déserte et autre textes, Paris, Les Éditions de Minuit, 2002, pp. 24-27. [voltar para o texto]
9. Miwon Kwon, op. cit., p. 47. [voltar para o texto]

 

Ricardo Basbaum é artista, escritor, crítico e curador (artista-etc). Professor do Instituto de Artes / UERJ.

 

Em O Museu de Arte hoje, Martin Grossmann traz a pertinente crítica institucional às noções museológicas e parâmetros assentados historicamente. Por outro lado, interessante o papel que desempenha o trabalho de Barney quando participante casual do jogo local: A reeleição de Julio Neves para o MASP, Matthew Barney, Etecetera..., por Paula Braga.